quarta-feira, dezembro 28, 2005

VIII

a poesia sempre foi ébria. minto. a poesia era o puro álcool até se estatelar
no chão como vidro barato. era o vaso antigo
e julgava-se o néctar.
de que se imaginava então ébria a poesia... ébria
de sentido, talvez. o poeta, estalajadeiro insensato, deixou dormir incautamente as palavras, e o vinho adocicado do lirismo embalou-as a contragosto
numa dança vital mas deprimente. as palavras não se suportam já
umas às outras. enojam-se. vomitam-se.
o poema escurece
nas mãos de bagaço que o sentido exala. o poeta é mórbido na indiferença.
vende o sentido em promessas de delírio, êxtase, sonho. e a poesia
que lembra a sobriedade perdida do tempo puro
começa a chorar. e são rimas as lágrimas que recordam. e pé métrico é o ranho que assoa ao lenço branco do papel pautado. a poesia queria recuperar a inocência mas o seu sangue tem mais sentido do que alguma vez julgou possível absorver. o poeta sorri maliciosamente. como se a bebedeira
das palavras fizesse de si um ser mais sóbrio, mais lúcido, menos conspurcado pela sede de saber e criar. a poesia quebrou-se, contudo, porque era frágil e efémera. o sentido não estava dentro do verso. mas envolvia-o como um manto, como uma redoma, como um abraço fraterno. quebrou-se
ao cair no chão real. quebrou-se pela luz de soprano agudo do dia claro.
partiu-se pela própria consciência da sua fragilidade. o poeta não sabe chorar esta perda. o poeta disfarça a dor que o esmaga. sorri, como se sorri num funeral, exorcizando o pavor e o nojo da evidência. as palavras quedam-se, mudas, numa miríade de pérolas sujas pela lama da realidade, depois do inverno ontológico que as nevou.
nevam palavras sobre os estilhaços ainda. como uma corrente que não se extingue, com um fogo que não seca. o lirismo todo dentro dos verbos e dos nomes de tudo, evaporou-se no hálito de uma estrofe grotesca.

desfilam pelo delírio fora animais marinhos, monstros da infância com as caras mais conhecidas. há uma palavra que cheira a jeropiga, avó.
e os teus olhos são outras palavras que as lentes grossas fazem dizer
farol morcego lampião espanto medo lucidez menina carapaus maçã trapos tristeza ternura quase amor
quase tanto que ainda foge
por detrás das lentes grossas que fazem os olhos dizer
tanta coisa. e de certeza que a tua conversa com a morte foi cheia de palavras ébrias de sentido. ninguém está sóbrio quando fala
com a morte. só quando se fala da morte.

que poeta vendeu às palavras o sentido da tua morte
os teus olhos eloquentes por detrás da aparente cegueira quedaram-se
como ventos dentro de ti, como ar dentro das flores, como sílabas no chão de nada. pensei que falava de palavras e falava de ti, ‘vó. como são as coisas...
se calhar também falavas de ti quando pensávamos que confundias
as personagens das novelas da manhã com as da noite. ou quando parecias falar com alguém de outro tempo. ou quando não dizias nada.
o teu silêncio era o teu nome, não era o adormecimento dos afectos. eras tu
a desfiar a tua solidão em lençóis de faltas de perdas de esquecimentos.
não sei porque é que as palavras ébrias se transformaram sem que eu quisesse na tua tristeza, no teu sonho enjeitado. não sei. talvez não estivesse a falar de ti, afinal, mas do que aprendi com a tua morte. do que aprendi quando morreu a tua casa. a minha casa que morreu contigo. quebraste-te
em migalhas pintadas de ruindade e deixaste a marca indelével da ternura
no coração das minhas palavras. e não provaste nunca
o sabor inebriante da poesia.
ou talvez a prova de que o tenhas feito sejam as palavras que fizeste nascer aqui no meio do sentido das que chamo minhas.

dez.10.MMV

quinta-feira, dezembro 22, 2005

II

por quanto tempo mais dormirás

quando o vento embater no escuro será
de dia como é dia a noite para o
reverso das pétalas das flores que fogem
do olhar da coruja artista pintora da
perspectiva aérea dos vultos dos telhados e
dos sonhos deitados fora pela ignorância

é banal a inquietude gratuita que
exibe vergonhosamente um preço falso
para fugir aos impostos que o tempo
cobra até aos menos aventureiros
e vulgar é o refúgio na confissão
da derrota, da desistência, da modesta
entrega nas mãos da dor inocente

quando tu morreres não será dia
nem poderei mentir mais sem
beber o tempo com a sabor a mofo
nem alterar o meu desejo de
morrer antes de ti para ti por ti

não será possível escapar à medíocre
vulgaridade da dor à paralisia
estereotipada da ausência da náusea
do nojo de tudo o que respirar
ainda em mim, de todo o pulsar
de todo o rugir marulhante do
sangue insensível e louco

quanto durará a minha vigília

os prédios parecem ter tanta gente
lá dentro, e nos passeios à volta,
a trabalhar, a foder, a criar, a fingir
uma vida dentro e fora dos prédios
que num segundo se podem tornar
tijolo só, pó compactado, destroços
num naufrágio fantasma, sem mais
mortes a anunciar que não a nossa

o teu sono é o meu respirar
noite em ti que aqui emerge luz

ao acordares o vento terá na voz
um nome novo para nós, e as
flores não irão cheirar a nada mais
para além do nome que já tinham

será ensurdecedor adormecer assim
com os gritos dos nomes de tudo o
que ainda existir sem ti

amo-te não rimará com mais
nada
e o poema adormece

nov.23.MMV

domingo, dezembro 18, 2005

sem título

sem título, 2005
carvão comprimido
s/ papel Clairefontaine, 180 g (27,2x40cm)
tu não vieste
e a sede de ti
fez-se leito de
alguma parte
do meu desejo

quarta-feira, dezembro 14, 2005

III

não tenho na boca o sabor dos abrunhos
mas tenho o nome dela gravado sob a
imagem das suas pernas nuas, de infanta,
maria-rapaz, menina viril e forte,
pernas arranhadas pela pele áspera do
abrunheiro velho, pernas que as minhas
mãos desenham no branco do desejo sem
nome ainda, mas com sabor já,
diferente do sabor dos abrunhos maduros
de que perdi o rasto dentro da minha boca

o sexo não é este sexo, nem pulsa
ao ritmo da evidência, nem geme ao
som do silêncio de uma boca que
absorve o travo acre do fruto virgem,
nem se atravessa à frente do próprio
desejo, nem consome a angústia em
amplexos mais amplos que o gesto
que o faz nascer, que o faz morrer
como quem nasce, ou ao contrário -
distinção que o sexo não conhece

desaparece da boca a sede quando
a volúpia inocente chega para brincar,
e não são dedos os dedos – os olhos
com que as mãos cantam alto os
contornos do outro corpo antes de
ouvirem falar a língua do sexo mudo
- como não são seios as colinas trémulas
moldadas em artes de oleiro sem
mestre, pelas palmas das mãos que
asfixiam numa ansiedade adocicada

a infância eram palavras que enchiam
o desejo todo, e fotografias interditas
que o espalhavam ao longo das
horas oníricas entre instantes de
líbido acesa pela incógnita do possível;
eram palavras mais do que os corpos
ou as partes dos corpos que descreviam;
eram a própria essência da pulsão vil
e torpe enclausurada em sílabas soltas
e solta na palavra gemida, gritada

tenho na boca os sabores todos
nos nomes e nas formas decifradas
no escuro ou na luz viva e inocente
da memória frágil que se apaga a cada
aroma a cada cor, devolvidos p’lo tempo
ao fundo branco do espírito que
absorveu o sentido dos impulsos em
golfadas de vida suspensa entre
ritos e sonhos, entre margens cheias
do mesmo sangue, outro ar, sempre


dez.03.MMV

sexta-feira, dezembro 09, 2005

I


há um lugar onde as flores não têm nome
flores não é o seu nome
flores não é o que o vento sopra
os beijos do vento cantam na nossa língua
a nossa surdez faz-nos duvidar do amor do vento
traduzimos a ignorância em nomes para as flores


nov.22.MMV

segunda-feira, dezembro 05, 2005

VI

ou a influência íntima do azul

não há palavras gigantes nem sonhos de nylon
vir é sinónimo de ter sido como um gato o é da melancolia
e todos os felinos sabem cair
senão for a eternidade, outro sabor exibirá o troféu
sobre o gosto e a diagonal dos membros desarticulados
em circunvoluções cerebrais pintadas a acrílico sobre
um fundo negro e denso de ópio em flor

os ramos nus das cigarras despertas pelo
pincel de dali soam a mel, e o sentido das sentenças
é desenhado a sanguina real, como os brasões ilustram
no fogo de cobre hipócrita e snob, qualidades polvilhadas como
farinha amparo sobre aristocratas de flanela e morais de plasticina

dez.05.MMV

domingo, novembro 27, 2005

iniludível vileza

persistiu) em tempos a

máscara de virtude disfarce de nobreza subtil representação de dignidade caricatura de inteligência amplitude grandiosa de gestos desinteressados ternura contida desejo guardado miséria enriquecida de humildade misericórdia ignorada azedume feito silêncio ouro inventado em tons falsos calor sob a voz que embala o abraço que manipula a arte engendrada no vapor da auto-comiseração o infinito prensado num pensamento a genialidade esquecida na escuridão doente vaidade adiada derretido na indiferença o orgulho fantasia de futuro a enfeitar os instantes borracha purificadora do tempo metamorfoses do ego em lágrimas vãs tristes melodias em delírio de ritmos obcecados mística humana desenhada a inveja e crueldade apetite pela derrocada do sentido sede de noite e eternidade ímpeto de quase tudo no tempo de praticamente nada excitação fulgurante e fugaz tenacidade forjada no limbo do bem-querer dedicado poemas iluminados pela lucidez inocente da ignorância e a

ilusão persistiu) em tempos

Nov.18.MMV

(in geometria da inexistência, 2005)

quarta-feira, novembro 23, 2005

sem título


sem título, 2005
Tizas Faber-Castell, branca e sanguina
s/ papel Mi-Teintes, 160grs
o fogo submerso
não ilumina
caminha sozinho
por entre os espaços
frios que a vida
tece entre desejos
e medos

sexta-feira, novembro 18, 2005

sem título

“Onde?” é resposta,
desejo de obnubilar
e olvido desejado.

replico: “Onde?” à
ontológica busca.

Onde sou, fui
ou (des)conheci?
Onde, para quê
ou por que ouro
falso me ocultei?
Onde me espero
d’olhos fechados,
senão nos ontens
odiados, amados,
infinitos e ocos?

21.11.03

(in a língua secreta do egoísmo, 2003)

terça-feira, novembro 15, 2005

Ribatejo seen from the car


Ribatejo seen from the car, 2005
Pastel de Óleo (Faber-Castell)
s/ papel Canson 21 x 29,7 cm, 90 g/m2
inspirado em
"Alentejo seen from the train"
de Fernando Pessoa

Nothing with nothing aroung it
And a few trees in between
one of which very clearly green,
Where no river or flower pays a visit.
If there be a hell, I've found it,
For if ain't here, where the Devil is it?

quinta-feira, novembro 10, 2005

15

dilúvio que invade a própria sede
brado que ao surdo ensurdece
numa pequena esfera de sentido

caminho que apaga a passada
sinfonia sonata concerto silente
que ecoa numa redoma de seda

vento que desfigura o mar calmo
e o sol, ah!, anjo inocente caído
por detrás do tempo cansado

virtude ensinada em vil ardósia
podridão e vício servidos em mel
catacumbas de vitrais vendados

lucidez humilhada pela realidade
infinito aprender da descrença

amor, o incognoscível feiticeiro.


Set.28.MMV

(in encontro entre as pedras suaves, 2005)

segunda-feira, novembro 07, 2005

sem título

o crepúsculo desvenda-se sobre a
ânsia de regresso – metamorfose
do inverno entoado entre as folhas
sobreviventes

14.04.03

(in a incerta permanência da dúvida, 2003)

segunda-feira, outubro 31, 2005

vã acuidade



vejo inutilmente o sentido
do possível deslizamento
ao alcance de nenhuma
força minha
das sedimentárias
agressões arenosas
da estupidez insensível

(sorrio como um rato
aos miseráveis que
pagaram mais uma
volta da roda colorida)

22.09.03

(in 2 /3 e outros poemas, 2003)

terça-feira, outubro 25, 2005

o azul era vento

o azul era vento, 2005

aguarela (Winson & Newton, Cotman series)

s/ papel Fabriano, 18 x 24 cm, 200 g/m2


quinta-feira, outubro 20, 2005

26


para ti, Céu
como tudo o que sou
é teu
de mais a menos infinito,
qual "animal aflito"


encontrei-te
suspensa
na flor em que
te perdi.

vem
de olhos fechados
pelo vento
nas minhas asas
trémulas
de colibri.

não deixes
que o tempo
se esfume,
agora,
numa nuvem
escura arrastada
pela inércia
pura.

desce dessa
para outra flor
e renasce
nos olhos
ardentes do
colibri que te
segura.

10.06.03
(in
um barco de papel para Afrodite, 2003)

segunda-feira, outubro 17, 2005

sem título


o murmúrio do meu roçagar por ti adentro, imita o arco-íris de uma ave-do-paraíso,
e desfaz-se em silêncio tumultuoso, como dança nupcial ou espasmo pírrico.

24.01.04

(in horizontes de ouro, 2004)

quarta-feira, outubro 12, 2005

cena em tempo lento


demorei um milímetro a sentir
o perfume de uma queda
(angústia sem porosidade a registar)

vi-te da cor do fundo de mim
e não chorei

caí, depois.


20.01.04
(in horizontes de ouro, 2004)

domingo, outubro 09, 2005

XXII

envolto em cores de cipreste,
coberto pelo manto do silêncio
envergonhado
(- a mortalidade é o pior dos defeitos)
o coveiro acende o cigarro
e espanta olhares curiosos
com um cabecear amalucado

por dentro pensa no infinito,
pinta-o de cores brilhantes
falsificadas
(- nunca o preto foi verdadeiro)
e enterra corpos como farpas
na alma da terra humedecida
pelo suor de escaravelhos e larvas

08.06.03
(in o mundo e um pouco mais, 2003)

sexta-feira, outubro 07, 2005

13

queria dizer árvore e não capto
mais que a luz que não há
por detrás daquela folha que não vejo

disse árvore e o vento saudou o ar
embatendo na luz que me devolveu
o verde entranhado nos veios

digo árvore e é o sol que desenho
quebrado pela sombra de um galho
partido que deixei suspenso no sonho

Jul.30.MMV

quarta-feira, outubro 05, 2005

XX

num afago ansioso de
memórias da cor dos unicórnios
o mundo engendra
uma teia de sonhos nas folhas
virgens do meu desassossego
enleio-me nos seus
bosques sem clareiras como
se me dissecasse –
barriga aberta ao vento
peito entregue à brisa quente
da imaginação
uma viagem de tempo
entre dois crepúsculos
banha-me de perspectivas
vazias sobre o anúncio da
minha morte, historicamente
tão perto, e presente como
o cheiro a ratos no sótão

01.06.03
(in o mundo e um pouco mais, 2003)

domingo, outubro 02, 2005

14


novos diálogos adâmicos


e deus disse:

faça-se
a (tua) morte
à imagem
da (minha) vida


e o homem disse:

seja feita
a minha vontade
assim em mim
como no fundo de ti


e deus viu que isso era bom


e o homem disse:

faça-se
a (minha) vida
à imagem
da (tua) morte


e deus disse:

seja feita
a tua vontade
assim em mim
como no fundo de ti


e o homem viu que isso era bom


15.02.04
(in imanências, 2004)

quarta-feira, setembro 28, 2005

11

é um espaço apenas
simples ao olhar confiante
entre as coisas
algumas metades de coisas
espaço que é também algo
entre espaços medidos pelo olhar
confiança de que o nada tenha partido para o sonho
e de entre as coisas apenas a distância possa
gritar
sim, a distância entre espaços
é uma outra
coisa.


Jun.13.MMV

domingo, setembro 25, 2005

madrugada inquieta

madrugada inquieta, 2005
pastel s/ papel canson mi-teintes 160grs preto

primeira tentativa de utilização de pastel seco.
não partilho o resultado da primeira experiência com pastel de óleo :)

r.e.

quarta-feira, setembro 21, 2005

IX

Lisboa parada à espera...
à minha espera, como
uma mãe que se tivesse
esquecido de um berço
num hipermercado e só
agora, trinta anos idos,
lembrasse os parabéns
que não me deu.

caminhos conhecidos
que hoje me confundem
e que fizeram o rol
dos mistérios com que
cresci...

Lisboa à espera do sol...
ninfa inquieta deitada
na relva, de dorso nu
à beira de um rio,
diferente do de lágrimas
que a tristeza faz agora
desaguar rosto abaixo
por razão nenhuma

23.05.03
(in o mundo e um pouco mais, 2003)

segunda-feira, setembro 12, 2005

mediocridade a carvão

Perder o sentido orientador da central mediania
da perfeição
derrubou do topo da memória os laivos
de passos sensatos que a intuição
planeara. Resta a desordem?
O lugar do futuro está sublinhado
a diamante. É um cubo perfeito. O centro é oco. Como guiar
a passada larga pela ilusória vacuidade do mundo?
Ultrapassar a nobre vileza da condição
oferecida a troco de vida
conduz a liberdade à clausura de se redefinir
a troco de quase nada. Que sobra?
Centros. Metades. Fulcros. Zénites.
Vácuos. Pontos insuspeitos.
Nós cegos.

Ago.29.MMV

sexta-feira, setembro 09, 2005

13. metáfora líquida

O branco repousa num milagre de leveza. Uma montanha, uma serra...
uma cordilheira de água plana sobre nada. Assenta num limite invisível, num traço...
numa superfície imaginada pela nossa incredulidade. Água, sobre uma fina fronteira de
textura e substância. Todas as configurações parecem ter abdicado de uma face da sua individualidade. Como alguém que decidisse ser plano ou côncavo ou amorfo num dos lados do seu corpo. As nuvens repousam sem memória da forma antiga. A lâmina que as separa do céu invisível é fatal - ou foi, no instante do embate. As almas abdicaram também de uma dimensão. Existência, sobre uma fina fronteira de vida e morte.
As almas assentam numa colina invertida - o abrigo do mundo ao contrário...
o véu que desvenda, o tecto que descobre, o refúgio que desampara. As águas elevadas
moldam-se a um destino anterior. Repousam num milagre, e movem-se numa osmose lenta
e solitária. A densidade das almas comprova-se p’la observância de similar paradigma. Isolamos o âmago do resto do nosso espírito, como por uma membrana amniótica criativa.

10.04.03
(in a densidade das almas, 2003)

segunda-feira, setembro 05, 2005

sem título

não tinham de ser lilases as flores,
podiam ter escolhido outra luz até.
importava apenas tornar lúgubre a
falta de fé com que me libertavam.

16.11.03
(in a língua secreta do egoísmo, 2003)

sexta-feira, setembro 02, 2005

12



plena noite quase luz
num ontem qualquer

pereces ao chamar do sol inquieto
fica o deleite de te eternizar –
lágrima estrela por cair

Jun.15.MMV

segunda-feira, agosto 29, 2005

pelas corujas, o fascínio

sonho que me abraçaria num piar selvagem e perigoso
se me entrasse noite escura pela janela semi-aberta
a coruja com que sonho
(a fraternidade dos noctívagos, apesar da luz ameaçadora)


07.05.03

(in a incerta permanência da dúvida, 2003)

(coruja desenhada a carvão, há muito tempo, por r.e.)

esquissos de ti

Espera. Aumenta o volume. Não te vejo. Fala-me de ti. Não. Espera. Repete. Aumenta o volume da tua presença. A nitidez. O contraste. Fala-me de ti. Descreve o que vestes. Não. Espera. Assim, não. Descreve antes o que pensas. Não. O que sentes. Aumenta o volume da tua fragrância por mim adentro. Sim. Por mim adentro. Pela minha alma fora. Aumenta o volume da tua loucura para que te veja. Sim. Agora. Não quando morreres. Agora que a tua cor é Azul. É agora que te quero sentir por dentro de mim. No meu peito. Aumenta o volume da tua insensatez. Aumenta o volume dos teus dedos no meu cabelo. Sim. Descreve o que vês. Espera. Fecha os olhos e descreve o que vês. Não. De olhos fechados. Escuta-me o respirar irregular, num ritmo entre os teus dedos. Abre os olhos e cheira-nos. Olha para o nosso sabor. Vês a que sabemos? Aumenta o volume dos teus lábios sobre a barriga. Ouves? Sentes o sangue a dançar ao som da tua língua? Espera. Aumenta o volume da tua vida. Enche-nos de nós. Nós. Arrepia-te. Abre os olhos. Invade a vida.

Ago.28.MMV
(in a geometria da inexistência)

domingo, agosto 28, 2005

Incognoscibilidade (vários meses antes)

Depressa o sol a cobriu de um tom que evidenciava a textura sedosa da pele, e o Luís recordou a última vez que a tinha visto, ainda durante o Outono do ano anterior. Olhou-a com desejo. Diferente, desta vez. O sentido de missão impera muitas vezes sobre os instintos. Outras não. Desta vez, desnudou-a simplesmente com o olhar fechado, sem revelar o que lhe passava a uma dupla velocidade pela mente. Ela retribuiu o olhar frio de quem reconhece o destino à porta.


Caminharam em silêncio durante vários minutos, alguns quilómetros de dúvidas e receios. A primeira coisa que ela lhe disse foi: «estás preparado?». «Ainda não», disse Luís, com um travo amargo na boca. Ela deu-lhe a mão. Entraram numa zona sombria da cidade, por debaixo dos arcos antigos e sujos pelos pombos, e a cor dela mudou. Deixou de brilhar. Apareceu ao olhos dele com a secura e a debilidade alva que a morte imprime a tudo o que toca. «Vamos?, sugeriu-lhe ele, sem a olhar de frente, sentindo apenas a pressão da mão dela sobre a dele. Subiram até ao local da performance.
Perto do castelo, magnânime como se tivesse descido do céu e instalado em cima das árvores, existe uma praça quase sempre vazia. O Luís conduzi-a até ao meio da praça. Segurou-lhe com uma mão um dos braços, violentamente, obrigando-a a curvar-se para tentar fugir à dor. De uma ou outra janela surgiram rostos. Alguns regressaram aos seus quotidianos, porque a cena não parecia merecer maior atenção. Outros permaneceram. Havia público. Sara perscrutou os seus rostos e exagerou um pouco mais a dor realmente sentida. O Luís gritou-lhe algo que se tornou imperceptível para quem não estivesse ao nível térreo. A lâmina brilhou como que por milagre, sob as copas cerradas das árvores que deixavam a praça coberta de um fresco incómodo. Mas brilhou. E brilharam os olhos à janela. O sangue começou a notar-se por debaixo da camisola, na zona lombar. Ela recurvou-se muito mais do que pareceria necessário a quem do outro lado não pudesse ver o que se passava. A sua posição insólita, dobrada sobre si mesma, já quando ela a largava, chamou a atenção de uma mulher que a tentou alcançar para a ajudar a levantar-se. A mão da mulher ficou tingida e o grito dela foi o sinal para que o Luís desatasse a correr como um fugitivo. Ainda antes de contornar derradeiramente a esquina da praça, olhou para Sara e sorriu-lhe. Ela retribuiu o sorriso, como se o sangue que se libertava do seu corpo fosse o de Rute ou de outra actriz qualquer. Mas era o dela. Ele sabia que ela estaria a pensar na Rute. Apesar de nesse dia ele ainda não a ter conhecido, sabia que os seus destinos estavam desenhados no meio de tantos outros.


Sara fechou os olhos. Uma vez mais. Rute acordará um dia. Uma vez mais.

sábado, agosto 27, 2005

10

espraia-se a vontade pelas coisas inúteis
ou seria desejo místico se a conquistavam outras coisas –
ânsia de sublime imerecido, perspectiva de um sorriso divino
.
pela inutilidade o investimento é devolvido sem pressa
mas cheio da fragrância da auto-comiseração que entope a estima
mas refulge no escuro – líquido fedorento sob nariz obstruído
.
a vontade, a boa, cresce em tons de lágrima sonora
e tempera de moral o deserto, pintalga de fé a sede, equilibra
o poder o real o admissível a vergonha – mata o sonho de ser mau
.

Jun.07.MMV

segunda-feira, agosto 22, 2005

é a alma um polígono frio e débil

é a alma um polígono frio e débil
– desfaz-se em pó azul escuro
quando um pingo de medo desliza
pelo declive polido de cada aresta
permeável à dor.

privada de um véu diáfano que
lhe perpetue a fragilidade, é cristal
mais puro que o desenho ingénuo
do mundo possível que deus desejaria
ter perspectivado.

se a luz a penetra ou a ocultam
sombreados de prata, reflecte
a condição póstuma com que
preencherá o espaço dos futuros
prenhes de morbidez.

quando de placidez a inundo,
deixa-se esventrar pelo corte oblíquo
do tédio e da palavra surda e morta,
num deambular íntimo sem peso
nem forma primordial.


25.11.03
(in a língua secreta do egoísmo, 2003)

domingo, agosto 14, 2005

5



que se universe o teu corpo

a língua, minha, cometa de
cauda líquida sobre firmamentos
desenhados, barriga acima
peito abaixo,
anunciando turbilhões à
flor da pele
(êxtases suspensos)


o reboliço de dedos no
interior, no magma salgado
do teu núcleo, do teu
centro acedido por
brechas e falhas tectónicas
(...sexo boca mãos sexo...)
entreabertas


o meu olhar circum-navegante
(fazendo durar a noite
o tempo da noite e o
dia a escuridão restante)
rodeando de sol desejante
cada planície colina vale
de pernas ventre seios
de uma à outra aurora
(sobre as costas planas
horizontes perfeitos)



14.05.03
(in um barco de papel para Afrodite, 2003)

sábado, agosto 13, 2005

eu não sou o sonho

eu não sou o sonho
sou o estímulo

e a sede que fica
a arder na garganta
quando é parca
a nascente e longínquo
o oceano adormecido

eu não sou o deserto
mas a vontade de viajar
no sentido irreversível
dos caminhos

nem tão-pouco o néctar...
sou a própria idade da colheita

e não fosse eu o espírito
seria a arte de o inventar
para quando o sonho
fosse quase nada

15.04.03
(in a incerta permanência da dúvida)

terça-feira, agosto 09, 2005

(dia 31 de outubro, 2041)

IV
Não encontrei uma porta aberta e continuei sozinho, a percorrer caminhos escuros que o hábito clareia, como se a memória não penetrasse mais além do nível básico da orientação abstracta, como se só funcionasse relativamente ao que a rodeia e nunca ao que a fundamenta. A noite envolve as pessoas que gritam silenciosamente, envolve os pássaros distantes e inexistentes. Não me envolve. Penetra-me. Tentadora, poderosa e submissa. Testa-me a capacidade de não recordar a luz do fim da tarde, a capacidade de reconhecer o belo na escuridão do desamparo.
Percorro as ruas nuas de luz, ou apenas vestidas com os farrapos degradantes dos candeeiros envergonhados e tristes. Uma musa desnudada seria prostituta em bairro de deuses e artistas. A sua poesia seria pó nas mesas sujas de vinho, ode à reveladora decadência do espírito soturno e amargo.

quinta-feira, agosto 04, 2005

XVI. (estudos e interlúdios)

demiúrgico
na placidez da espera
do instante preciso
de fazer nascer
o tremor de vida
que numa lágrima ou
num suspiro
se deixe aprisionar

demiúrgico, sim
na magia de sentir
a morte do silêncio
na vontade de respirar
à pulsação
de um gongo ou um tam-tam

louco, talvez
pela inelutável fuga
do tempo com que nos deixas sonhar
estriado em figuras quase humanas
no previsível como no não-esperado

demiúrgico, repito
na derrota do instante vulgar
transfigurado em suspensão silente
imaculado de novo pelo teu virtuoso aceno
à imortalidade

03.03.02
(in instantes de perplexa aprendizagem, 2002,
poemas para António Pinho Vargas)

domingo, julho 31, 2005

Outro ar, outro lume

Não era ainda verão no seu olhar, mas o murmúrio do tempo tinha já adocicado o timbre da voz e o restolhar das pétalas indefiníveis sob os seus pés descalços. Não era ela a mulher mais louca da cidade, mas muitos achavam-se menos do que na realidade eram. Por isso, contas feitas, ela seria a mais doce encarnação da sanidade, num mundo e num tempo propício à desmesura e à crueza das expectativas.
Chamavam-lhe o pássaro sem morte. Nem todos a apelidavam assim. Apenas os que a tinham amado. Incondicionalmente. Quase todos os outros diziam apenas “ali vai ela”, e nessa aparente familiaridade, de nomear como quem aponta com o dedo hipócrita, não sabiam que só denunciavam o contraste da sua própria mediocridade com a elevação do seu espírito leve e imperscrutável.

Há algumas semanas atrás, o taberneiro galhofava com os menos sóbrios acerca das mulheres sem nome. Todos as conheciam por tudo menos pelo bilhete de identidade, diziam sorrindo com a boca desfigurada pela falta de controle muscular que o vinho expõe (mas que não está nunca ausente dos rostos idiotas destes homens, mesmo ao acordar). O taberneiro insistia que o vinho e as putas eram as provas irrefutáveis da presença de Deus, nestes ou noutros termos menos coloquiais. “Sem umas pernas onde esconder a bebedeira, um homem pareceria um louco ou um parvalhão”, sentença auto-analítica de profundidade insuspeitada na boca que a proferia. O Casimiro, do poleiro dos 57 anos, cacareja incompreensivelmente um remate para a ordinarice anterior, mas o vinho canta mais alto e sai apenas um arroto surdo e nojento, que promove as gargalhadas imbecis dos comparsas. O que ele pretenderia dizer fica para dias que não vão chegar. A morte não é tão complacente que permita que todos os disparates sejam soltos sem mais nem menos. Em menos de um ano, este e outros dois ou três como ele farão rezar missas hipócritas. São os ritmos de todos os interiores. Mais evidentes que nas capitais, onde o vinho veste fato, e a morte é acompanhada pelos coros de Mozart.
Nessa tarde, um ruído estrepitoso chamou os olhares à porta escancarada da tasca, mas o olhar não chega e os corpos tentam a dança risível de se levantarem rapidamente. Só quem nunca tentou levar um bêbado pelo braço até casa é que poderá não saber o quadro em movimento parodístico que aqui se refere. Um dos mais velhos ainda se agarrou a uma cadeira manca antes de cair, ele e a cadeira, e os dois copos que o desequilíbrio atira ao chão. Mas ninguém reparou, porque quase todos se esmagavam à porta para poder ver mais, ver antes, como se o seu estado permitisse distinguir lucidamente o que realmente aconteceu.

Não foi apenas o cantar do vinho que foi atropelado pelo barulho disfarçado de trovão envergonhado que soou pela rua toda. Também as conversas cacarejadas na Lina foram silenciadas pelo susto. Com maior aparato na cabeleireira do que na tasca, o silêncio chega sempre como um rebentar de onda no meio da noite. Quando as mulheres falam querendo que a sua versão da história ganhe coerência e verosimilhança, sobe o estrépito das vogais e o arrastar irritante das consoantes. O silêncio forçado varre esta amálgama de banalidades como um estalo num petiz surpreendido num devaneio mais adulto que os seus seis anos.
A Lina saiu primeiro, como senhora de um templo cuja profanação teria de ser esmiuçada inquisitorialmente. As madames impedidas pelos secadores alienígenas não conseguiam engolir os grunhidos da frustração de estar a perder um evento provavelmente imperdível. Mas dor maior era terem de se sujeitar à novela em que a Lina transformaria até o mais desinteressante episódio trivial. Se bem que trivial não era aquele estrondo perigosamente familiar. A Célia seguiu a patroa, o que deixou enfurecidas as clientes que, entregues a si mesmas, se tornavam de repente umas estranhas insuportáveis mutuamente. Toda a gente se (re)conhece sempre por intermédio de um elo inconsciente que alguém representa, cabeleireira ou padre, juiz ou taberneiro. Sem os vínculos subtis de uma compreensão global somos tão irreconhecíveis como um estrangeiro mudo e cego.

O pássaro sem morte jazia no chão.

A perspectiva mais ampla sobre a praça seria a da varanda do Arnaldo, mas não estava ninguém em casa para a desfrutar. Mas de qualquer janela à volta se via parte do cenário, interrompida a visão apenas pelas copas das árvores providenciais contra a curiosidade quotidiana. Dos escritórios da Cont@r as três secretárias e os dois técnicos não conseguiram reproduzir sequer um som que dignificasse o espanto e o horror simultaneamente. Viam, mais próximo do que desejariam, o corpo de um homem. Parecia vivo. Parecia irreal. Parecia familiar.
O cheiro da detonação chegava até aos andares mais altos, quase todos habitados por velhas solitárias cuja surdez natural fez do estoiro um banal ruído de rua, talvez mais um dos diários toques de pára-choques, talvez mesmo um balão a rebentar ou um caixote da casa de mudanças tratado com menor cuidado. Apenas uma das inquilinas do nº 25 se preocupou com o pior, talvez por ser a mais nova, ainda a raspar a margem esquerda dos setenta. E foi dela o primeiro grito, porque o corpo que viu foi o de uma criança, que dali lhe pareceu a neta da Laurinda. Mas não podia ser porque estavam todos a passar esta semana na serra. Mas era uma criança, de qualquer forma, e estar ali deitada de barriga para baixo com o vestido enrodilhado não podia deixar de arrepiar, mesmo à distância de cinco andares.

Jazia no chão, com as mãos abertas e o corpo torcido numa coreografia interrompida.

Os três corpos exibiam imobilidades diferentes. Dois respiravam imperceptivelmente. Um apenas respirava já outro ar. O ar que o pássaro sem morte respirava era ainda o mesmo. Apenas o lume que a queimava era já outro. O de uma tranquilidade imposta à alma pela violência de todos os actos justos e inadiáveis. A sua filha foi a primeira a sair do escuro que envolveu o seu olhar no instante em que o tremor e o medo a fizeram refugiar-se na inconsciência de um desmaio. A primeira pessoa que viu foi o pai. Controlou o grito impulsionado pelo choque do contraste entre a imobilidade presente e todos os gestos passados, que na sua mente voaram num frenesim de luz e som, como numa alucinação. Correu imediatamente para a mãe, abanou-a, chamou-a, e só parou de soluçar convulsivamente quando esta lhe apertou a mão com força, ainda antes de abrir os olhos. A arma estava ainda ao alcance de um braço que intencionalmente se movesse nessa direcção. Só a polícia a tirou de lá, alguns minutos mais tarde.
“Nenhum homem te tocará sem amor nas polpas dos dedos, nem a luz do respeito no olhar, enquanto arder em mim este fogo, querida”, foram as palavras que lhe ouviram quando as separaram para averiguar os detalhes do sucedido. A filha olhou ainda uma vez mais para o pai, com o alívio e o nojo misturado com um sabor ainda indefinível que só muitos anos mais tarde definiria para si mesma.

A rapidez com que o quotidiano se instalou de novo na praça apenas denunciou a hipocrisia de nenhum dos acontecimentos passados e presentes ter constituído surpresa ou novidade. Há lugares assim, onde até a tragédia parece fazer parte do destino colectivo, e o silêncio é a mais cruel das tiranias. Poucas pessoas continuaram a dizer “ali vai ela”. Nem só quem a amou incondicionalmente a passou a chamar também o pássaro em chamas.

sexta-feira, julho 29, 2005

(dia 31 de outubro, 2041)

III
... com a morte vê-se o silêncio ...
Agora, perto do rio, olho para trás como para um altar, ladeado por Queirós, santo que enamorado se enlaça num corpo nu ... bonito ... de ninfa ...
Lembro-me novamente dos pássaros que “silenciosos” me procuram e penso subir de novo ao seu encontro, apesar de a tarde anunciar não só o seu silêncio, mas também o meu cansaço. Subo. Caminho lentamente, para não chorar. Cumprimento, com um toque de volúpia, a ninfa nua que me olha discretamente. Perto da igreja, decido não olhar na sua direcção e sigo em frente. Ando mecanicamente, como quem não conhece por onde vai. Acho que se encontrasse uma porta aberta, uma porta qualquer, entraria, apenas para me sentir acompanhado pela solidão de um edifício desconhecido, e não por esta multidão que tão bem conheço e desprezo. É quase noite, finalmente.

quinta-feira, julho 28, 2005

sombras

ainda o verão não saiu
dos teus olhos e já escureces,
nuvem, sobre o meu altar
de folhas cansadas neste
jardim sem nome

e é a cor do teu sorriso
triste, que me ensina a
amar o inverno eterno

25.09.03
(in 2 / 3 e outros poemas, 2003)

quarta-feira, julho 27, 2005

as nervuras simétricas da alma



a meio do labirinto
um poema conhecido, recitado de olhos fechados
na penumbra de um sorriso

em marés de vento, lúcido,
um cego tacteia a fronte amiga
e descobre o azul, nas maçãs desse rosto de pedra

enfim, a deambular na luminosidade da lua
um corvo morre, sim,
não sei a que horas, mas tarde


29.04.02
(in prosa perdida, 2002)

segunda-feira, julho 25, 2005

andorinha sem paixão

há muito a morte chamo
mas é tão grande o pavor
da imensidão de vazio e de mais nada
tivesse agora uma religião
em que cego mergulhasse
o temor não seria tanto
para isso servem Deus
e os anjos e os sonhos
cegam e abrem porta de perdição
com fé nada ficaria
desse temor bisonho
desse obstáculo à coragem
a queda seria corrida
em direcção ao infinito
o vazio eterno planície
nessa morte não receada
os olhos adormeceriam
a alma já lá estava
tão rápida a transição
do medo ao desejo
nem um feixe de luz
poderoso esse Deus
“amarás o que temes
morrerás enquanto sonhas”
que a fé venha longe
cavalo sem asas
andorinha sem paixão.

07.01.00

(in despojos de lume e de medo, 2000)

sexta-feira, julho 22, 2005

7. maldição

As águas retornam.
O princípio da nostalgia é o instante em que nos envergonhamos de ter elaborado
uma teoria da eternidade. Saudamo-nos com reserva, humildemente. Vai-se o tempo
de mãos dadas com a nossa ignorância, e fica ao nosso lado, como um demónio benevolente
e inútil, a consciência de tudo o que nos declara menos que quase nada. As águas infiltram-se
por cada fenda de luz. O princípio do desespero é o cintilante quebrar de todos os fragmentos
construídos pelos poetas para os inocentes. O tempo desequilibra-se e tenta puxar-nos também
para lá de todos os nossos limites espirituais. As águas param, o milagre da palavra...
As águas retornam.
O limbo da condição moderna destaca-se a pontilhado da nossa imagem de colagens. Pedaço a pedaço, vão-se esfumando os restos de cola entre cada espelho. A ironia isola-nos como pode
da verdadeira esfera que nos envolve, e por onde escorrem as águas ideais.

10.02.03
(in a densidade das almas, 2003)

quinta-feira, julho 21, 2005

Incognoscibilidade (uns dias antes)

23:36
Saberei um dia que a vida é quase tudo o que não pensámos que fosse. Mas entre um e outro olhar mundividente podia haver uma centelha de sabedoria que prevalecesse sobre o desânimo.


0:15
Dói-me o corpo.

2:24
Ele sabe mais do que eu sobre o fim. Mas eu sei mais do que ele sobre ele. Não consigo perceber se ganho ou perco na véspera, mas sei que perco no próprio dia. O meu silêncio tem um preço mais alto do que a minha sabedoria toda sobre ele e do que a dele sobre o fim.

2:53
Posso ir embora?
Não.
Posso desistir?
Sim.
Posso chorar?
Não.
Posso amar?
Sim.
Posso viver?

4:22
Não sei se ele percebeu quando me matou pela primeira vez. Não sei se eles viram o que nos estavam a fazer aos dois. Não sei se eu própria percebi quando morri para eles a primeira vez. Não quero acreditar que o destino pudesse ter sido só este. Não quero negar-me a probabilidade de poder ter inventado tudo de outra maneira. Não quero ter certezas a esta hora incerta.

5:01
A dor passou. Acho que amanhã vai chover, mas não é muito, afinal.

segunda-feira, julho 18, 2005

sem título

inócuo contemplar
ausência anódina
subjectividade anónima
vicissitudes do ínfimo olhar






(in mar branco, nudez insular)

sexta-feira, julho 15, 2005

esta eternidade

...?
(...de luz; poder olhar o tempo lado a lado, imitar-lhe
a dança em nós, fazer do seu corpo redondo um par
num ritmo esquivo e doente, sem sincronia ou elegância; mirar
a água e ver o reflexo aterrado pela ânsia
da evaporação invisível de todos os espelhos; desejar deixar
expresso simbolicamente os medo, os fascínios e chamar
literatura a essas infantilidades existenciais; amar
como o vinho, o sangue; quebrar em caleidoscópicas ilusões
todos os sonhos de cada madrugada; temer o escuro mesmo
disfarçado...)

Ah!, se não fôssemos imortais
condenados a esta inutilidade...

Jul.12.MMV
(in a geometria da inexistência)

terça-feira, julho 12, 2005

8

se o tempo não vê nem fere (não é
ninguém)
porque coibir a verdade da nudez
ansiada? – palidez, talvez, mas
mais que silêncio (dúvida
ou nada)

Abr.20.MMV

domingo, julho 10, 2005

6. vertigem


Sussurra-nos o futuro. Geme se não o acreditamos. Treme de angústia e raiva
por quem já o esqueceu. E tem razão. Preocupa-nos a miséria que nos grita
lá atrás. Envergonha-nos o pesadelo estúpido do que aconteceu sem nós. Até
a nossa leviandade em respeitar o presente parece fruto dessa vingança. Cada
dia que nos condena p’la nossa ausência reflecte a fúria de uma inexistente
relação entre aquele rio de tempo e o leito que nos molda a presença.
Uivam lá adiante, por detrás das colinas que distorcem a luz dos anos, cachos
de segundos apressados, infinitas memórias vazias de instantes guardados em
baús de mortos e loucos imortais. O imenso traço negro das noites sucessivas
deixa-se esculpir na nossa materialidade em contornos frágeis. E desse esboço
fazemos a nossa fronteira. Decidimos sobre que solo imaginário depositamos
os despojos de cada ciclo milenar.

17.01.03

(in a densidade das almas, 2003)

sábado, julho 09, 2005

7

já eu me não lembrava
da plenitude que será
amanhã voar.

Abr.18.MMV

quinta-feira, julho 07, 2005

IX

cai sobre a minha dor
um manto tão quente

01.12.02
(in infinitas impossibilidades, 2002)

quarta-feira, julho 06, 2005

III



a morte não existe senão no capítulo infindo da nossa angústia
a morte não existe senão no parágrafo visionário da capacidade de sonhar

a morte não é
a morte não se diz morte quando se nomeia
a morte não se nomeia quando se pensa
a morte não se pensa no momento em que existe

(porque a morte não existe...)

mas apenas naquele em que se impõe como metáfora

a morte é a nossa necessidade dela
a morte é a devolução do que lhe demos inconscientemente
(ao longo de uma noite de intensa solidão criativa
ou de uma vida de imenso vazio colorida)


27.10.02
(in infinitas impossibilidades, 2002)

domingo, julho 03, 2005

reflexo / dor / fluxo

Infirma-se a suspeita da unicidade. É um facto.
Mas porquê? Penetrar no real não devia ser simétrico a sair dele? Os gestos
não são contidos em dimensões paralelas?
(oblíquas nunca, porque a unidade não saberia como se multiplicar – assim,
pode o som ser ritmo exponenciado, e a luz
movimento invisível).
Magoam as ilusões mais que as desilusões. Embatemos impávidos contra a verdade mas sofremos por saber inquestionavelmente que é neblina sempre o que dizemos céu limpo.
Que perpassa enfim, por entre os dedos da alma, se nos atrevemos a escorrer raiva para fora do tempo, para dentro de nós? Que sabor tem o rio da desesperança? Não é amargo, como o lugar-comum apregoa. Não é doce, padre, não é doce.
Somos múltiplos sem desejo de tal mistério. Somos deliciosamente espectrais.

Jun.13.MMV
(in a geometria da inexistência)

quinta-feira, junho 30, 2005

6

está nu o meu desejo de infinito -
não o cobre a insanidade a crença a lucidez
- somente ainda, a veste risível da dor vã.

Abr.02.MMV

terça-feira, junho 28, 2005

Firmes Penas

I


o casario, a luz coada pela
neblina entre aqui e as paredes
sujas pelas tradições de janeiro,
as janelas que se deixaram abertas
por cansaço ou insuspeitada intenção,
ali espreita um rosto, duas casas adiante
apenas o vento a embater no escuro, sem rostos,
somente gatos, talvez, ou ainda os gemidos deles.


o casario não está ali,
chega-nos de longe, de onde um primo (
afastado?) se pôs à frente do carro (não,
não era primo, ou era?), uma perna
partida, acho que sem mais tragédia.


a vinha sem dias nem horas,
por detrás do curral, vazio também
como se nunca ali houvesse cheirado a
asno quando o havia, e só agora o animal
inexistente deixasse o seu rasto subtil, ou são
as velharias que o lembram saudosamente.


a vinha corta o tempo em cristais de cor,
primeiro o negro de melros a atrair o olhar,
as miras, depois, que mancham a lembrança
de vergonha por se lembrar do ar um dia sujo,
do chilriar calado, penas ensopadas em sangue,
depois ainda, o vento a dançar com as folhas
secas (que salvam tarde demais os pássaros
da queda prematura), os cães a viver o sol
raro, cães que as velhas alimentam como
parentes em desgraça caídos, acorrentados.


cheira a vinho, mesmo aqui em cima,
e não vem do casario apenas, impregna
a própria estrada, embebeda até as lagartixas
nas paredes húmidas, fascinantes, dos poços.


cheira a vinho tinto, é sempre tinto
o vinho que nos pinta a lembrança das
palavras gritadas de um ao outro lado
da mesa onde a família julga que está,
o pão é o que se imagina junto ao aroma
ácido, pão de tratamento carinhoso, mesmo
na angústia da fome, quando o houve,
todos os cheiros são familiares ainda, não
o sabíamos antes, nunca, ou teria sido guardado
mais longe na memória; recorda-se o mais
ínfimo detalhe da insignificância e da pobreza.

sábado, junho 25, 2005

a lição sem discípulo

Segura na mão
um instante.



__________? Não. Segura-o,
não o prendas, segura apenas -
não o deixes ser.
Segura o instante mesmo sabendo que ele
existe apesar do teu esforço.


Não abras os olhos. Segura
o instante, outro
sim, eu sei, não o de há pouco,
este agora,
como não fazer dele outro também?

Tenta.

Recomeça.
Se o vires pelo olfacto da alma,
se o pressentires seguro pelo osfacto da alma
se o instante submisso e feliz te fizer lembrar
um campo de relva acabada de cortar, então
abre os olhos.

Olha para ele.
Não, não abras a mão.
Olha através de ti para o instante que seguras.

____________!!! Sim, sim, eu sei.
É lindo o que vês de ti no caminho que
te leva a ele.



Vira-o lentamente.

Não sabes?
É apenas um pedaço de tempo!

Outro, já, infinitamente,
eu sei.
Virar um pedaço de tempo não é fácil –
requer tempo!
Irónico? Se não confiarmos no impossível.

Sabes para que lado está ele virado?

_____________? Sim, para onde olha ele
quando olha para ti?

Pronto. Agora, basta ignorares o espelho. Consegues
ver o movimento entre a criança e o vazio?


Amplia-o... pouco...

_____________? Não sei isso. Mas sei que se a alma
o desenhou bem, e não mentiste quando
disseste ter cheirado a relva acabada de cortar,
neste momento deves tê-lo a cerca de 90º.

Como que a espreitar, sim. Um olho em ti e
outro no vórtice de quase tudo.

Aperta a mão um pouco –
se conseguires que o tempo
sinta a pressão da tua existência,

conseguiste criá-lo.

________! É belo, sim, assustadoramente.


Jun.25.MMV

quarta-feira, junho 22, 2005

escolhe-se

escolhe-se
na encruzilhada, o
caminho, tão único
como o preterido e
abandonado

(nem existiu
sequer, esta
miragem das
(in)finitas (im)
possibilidades)


16.04.03
(in a incerta permanência da dúvida, 2003)

segunda-feira, junho 20, 2005

incognoscibilidade (talvez dois dias depois)

- Foda-se! A sério?
- Sim. Já te podiam ter dito antes. Mas também eu quis ter a certeza, por isso...
- Tanta coisa, para...
- Sim. É fodido. Alguém não aguentou a pressão.
- Há alguma investigação a decorrer já?
- Mais ou menos. É mais uma contra-investigação.
- Hmm... Como assim?
- O Luís confessou.
- Confessou o quê, caralho?
- Que a matou. Diz que sente ainda o cheiro do sangue. Passou-se!
- E tu, não dizes nada?
- Eu não posso fazer quase nada. Sou o único que podia tentar dizer que acredita que ele não a matou. Mas nem sequer posso aparecer, quanto mais fazer com que acreditem em mim. Mandei um mail ao tipo que está à frente da coisa. Relatei-lhe os telefonemas. Mas o Luís não desmente o que já disse. E há montes de referências à deambulação pela cidade, como em transe, já depois da hora em que conseguiram situar o crime.
- Que foda!
- É que eu até percebo. Um gajo tanto sonha com uma merda, que se isso acontece mesmo um tipo perde a noção se teria simplesmente sonhado.
- Bom... mais cedo ou mais tarde o Luís embrulhava-se todo. Aquela cena só ia durar até um deles quebrar. De qualquer forma, a coisa ia sempre virá-lo do avesso.
- É capaz de até ser melhor assim. Quer dizer... a nível global. Ele não deve aguentar muito mais que este mês, se eu bem o conheço. Por isso, a coisa salda-se com dois mortos só. Só que esta brincadeira ainda vai a meio... se...
- Que merda... Também quem a despachou podia ter feito a cena mais completa - um bilhete, uma história qualquer que arrumasse o caso sem confusões. Tudo feito à pressa...
- Pode ser que estejamos a falar afinal pela última vez, e nunca nos pudemos conhecer. Isso sim, sem dúvida que é um sinal positivo. As circunstâncias que nos fariam estar juntos no mesmo sítio seriam concerteza as que fariam um de nós estar de olhos bem fechados e o outro de olhos bem abertos.
- Podes crer. Que vida de merda!
- Vou desligar.
- Sim... eu tam...

sábado, junho 18, 2005

[des] {re} (cr) [tru] i (a) dor


inventei-me de novo,
crédulo, louco –
o sol, uma esférica convulsão de vermelhos,
e o ar impregnado de dúvidas.

dei-me outro nome,
troquei de olhar –
a rua, agora deserta, não me espera assim,
e procura por mim agitadamente.

reformulo a dúvida,
repenso tudo –
o mundo, ser vivo à beira da minha ausência,
arfante pelo medo de me perder.

25.01.04
(in horizontes de ouro, 2004)

segunda-feira, junho 13, 2005

Incognoscibilidade




Não escureceu por completo ainda. Vagueia-se sem hesitação, mesmo por ruas desconhecidas. A Rute não atendeu o telefone. O Luís não sabe que ela morreu. Os táxis parecem dormir sem motorista ao longo da avenida escura, também pela sombra que as árvores fazem, ocultando o último sol.

(

- Porque vais?
- Por não ter forma de me convencer a desistir e deixar de dizer o que penso.
- Porque não aceitas que tudo fica incompleto, mesmo assim?
- Porque não acredito em Deus. Não é dele o conceito de work in progress?


)


Foi. Veio. Chegou há minutos e já se dispersou pelas ideias de regresso. Não desfez as malas. Não hesitou em sair do quarto do hotel poucos minutos antes de ter largado as coisas ao acaso no chão. Só amanhã lhe telefonará, cedo, talvez dê para almoçarem juntos.

(

- Ela não atendeu.
- Não o adivinhavas já?
- Mas ela não.
- Talvez os sonhos tenham cumprido as suas funções.
- É tarde para acreditar nisso.
- Vem embora. Ou vais ligar de novo e arriscar que ela atenda?
- Não. Não posso arriscar. Se ela atendesse, tudo teria sido em vão, não?
- E não foi, mesmo assim?
- É impressão minha ou queres acabar com as minhas últimas ilusões?
- Não. Percebeste mal. Até amanhã.


)


A luz da aurora recente augura um dia amplo, limpo de pensamentos - a chuva é uma torrente infernal, o céu azul um mutismo interior. O Luís liga-lhe. Primeiro sinal. Segundo. Terceiro. Quarto. Quinto. Sex... Piiiii. A voz estúpida, estereotipada, do atendedor de chamadas. Ela não atendeu. É impossível não saber que é ele. Que está ali a menos de 500 metros dela. É impossível não saber que se tivesse atendido teria sido a última vez que falavam. São escolhas. Decisões. O Luís dá alguns passos na direcção onde a adivinha. Hesita. Senta-se no chão. Olha os pés que passam apressados. Limpa os olhos, levanta-se e dirige-se ao hotel. Afasta as malas que lhe parecem completamente ridículas. Deita-se. Telefona-me – “ela não atendeu”...

Depois de acordar, o Luís foi a um bar. Pensa-se melhor entre duas bebidas. Sai e chama um táxi. Não parou. É tarde. Devem haver zonas perigosas. Decide ir a pé. Entra noutro bar. Não quer passar mais uma noite a martirizar-se por não lhe ligado uma segunda vez. Refaz o percurso e vê o esboço de sol que espreita.

Jun.13.MMV

sábado, junho 11, 2005

VI

é a escuridão de cada beco e
travessa que me impulsiona
me suga para o seu centro
um conhecido desconhecido

vultos de outros pesadelos
são agora companheiros
cúmplices inocentes pela
primeira vez talvez

derrubo o medo e anseio
pelo perigoso frémito
de loucura irracional
de naquele mar navegar

dou dinheiro a quem passa
de olhar feito ameaça
e deleito-me como desistente
na certeza desta incerteza

o futuro é real aqui e agora
que deixa de ser vislumbrado
levianamente para ser apenas
uma luz morta sob a porta

uma madrugada de sol intenso
nos candeeiros urbanos banais
cobre-me a sorte de ilusão

e afasta-se a sorrir a morte

23.05.03
(in o mundo e um pouco mais, 2003)

terça-feira, junho 07, 2005

5

sobre o pano, inquieta, deleita-se rubra
a cor do vinho, o cheiro como um músculo
pulsa nos sentidos mesclados de ironias – são
os olhos, sabias?, que lhe afagam o odor e o
travo a passado, passas do ano esquecido.

o tempo arredonda-se, como uma chama
imperturbável na macieza com que engana
o rio da angústia que as imagens alimentam
dentro da insónia – colheita de demónios
em forma de esperanças com sabor a fruta.

a líquida metamorfose de mim em néctar
fez-se na madrugada do dia que não houve.

aspiro a crescer dentro da terra, a respirar
o lume ritual, a beber o mar que me embala
a queda no redentor manto fúnebre de algas,
com as sereias homéricas a confirmar os sons
do crepitar da pele, da sede pútrida dos vermes.

escuto ainda o restolho num sussurro falso
natureza a implorar clemência à raiva que
contida ainda no peito ameaça queimar os
rios quebrar nuvens em pedaços coloridos
e fazer do último arco-íris cama de bordel.

Abr.01.MMV

domingo, junho 05, 2005

XIV



viajante,
não repouses debaixo de uma sombra;
será sempre uma sombra,
representação da frescura
e nunca a carícia da água
ou o arrulho do vento franco

06.12.02

sexta-feira, junho 03, 2005

(dia 24 de junho, 2028)

VI

Não está tão escuro agora, mas o quarto não me parece o mesmo. Olho em meu redor, a cadeira, a cama... Queria sentir-me sozinho, mas assim...
os lençóis amarrotados mantém-me em contacto comigo mesmo, e quase desato a rir de me observar a dormir há pouco...

Perto da janela penso novamente que se a abrisse nem o eterno me iluminaria; o vazio não é infinito, então... e a consolação que daí advém remonta à ideia de que o meu autor se encontra lá, desse lado imaterial da janela. E não é coragem o que me falta para a abrir.
Talvez me falte dúvida. Talvez até me falte , mas quase que ao contrário - não tenho assim tamanha necessidade de olhar nos olhos azuis do fascínio pela angústia, e perguntar-lhe ternamente:
também me amas?

quinta-feira, junho 02, 2005

sem título

sorriso suspiro lamento
grito sussurro contido
murmúrio vagido
infortunado pensamento

quarta-feira, junho 01, 2005

4

constrange-me que
o mundo se veja
se deixe apalpar, não fuja
da perseguição dos sentidos;
aflige-me o contraste
entre o que há e o que
não há

Abr.01.MMV

terça-feira, maio 31, 2005

aforismos

Como lâminas transparentes, que se sobrepõem...
O mundo em nosso redor faz-se sentir único ao olhar de cada um, e confiamos que assim não é.
Chegamos a rezar para que assim não seja.

sábado, maio 28, 2005

3



nem o fluxo germinal imaginado
inibe o reflexo, muscular tumulto,
que ao desejado amplexo cede lugar

Mar.31.MMV

quinta-feira, maio 26, 2005

4. nuvem desancorada

A lua contorna-te, como um golfinho em torno do navio, e
deixas-te desenhar pelo seu capricho impressionista. Concede-te
apenas o poder do contraste. Podes exibir a tua nudez cinzenta, ou esconder
o teu exuberante negrume. Podes imprimir-lhe a ilusão de movimento, se abrires
muito os braços. Podes lançar-nos numa busca pelo seu olhar, se te deixares embalar
pelo vento. A lua controla-te, leme da nossa mestria em te imaginar solta. Deitada sobre
o seu horizonte, dança contigo no colo, e adormeces com o nosso choro de embalar. São
diamantes que os nossos olhos te oferecem, enquanto te sorriem terna e maternalmente as estrelas, que te vestem de lantejoulas a pele. Adensas-te lá adiante, espraias-te lá atrás numa
duna escura de há instantes passados. A lua arrasta-te, pesada e triste. Queres voar e o
branco não te deixa. É o branco que se prendeu às coisas bonitas que te envolve agora
numa agonia, âncora da tua solidão.

10.01.03
(in a densidade das almas, 2003)

segunda-feira, maio 23, 2005

22



insubmissão e revolta


é inútil o vazio como inútil é a fome




(surpresa envolta em clarões)


como pode a verdade estar mascarada de perfeição ou a perfeição em trajes de nulidade vã?

desfaz-se o sonho em cada manhã?
talvez não... talvez descanse apenas
e o som do sol a cair do outro lado
seja somente o eco desses sonhos...



(a dúvida que se impõe
é da cor das pupilas vítreas
de um mamífero desconhecido)



cai o véu do corpo da rarefação da alma
é desnudada assim na sua virginal beleza
esquálida, enfim, uma carcaça do deserto
que o tempo seco e pesado descarnou já




(grito por ver agora o ultraje
perpetrado pela verdade falsa)



ergo-me?
levanto os olhos?
caminho de rosto sombrio?
expulso a raiva num murro teológico?
Sim.




22.02.04

(in imanências, 2004)

domingo, maio 22, 2005

(dia 31 de outubro, 2041)

II

Nas ruas em que disperso o meu olhar pelas paredes e pelos telhados ...

“... I loafe and invite my soul ...”
(Walt Whitman)

e as pessoas parecem-me luzes que se procuram encontrar num escuro redentor. Desço e olho o rio, como que pela primeira vez. As tágides ainda não morreram ...
Olho para trás e espero um segundo de preciosa ansiedade. Por esta rua já desceram tantas pessoas, mas também tantas personagens, e era por ele que o meu pensamento ansiava, pois que nos seus derradeiros meses também ele, por interposta genialidade de José, procurou o seu eu/autor - e com ele, fantasma de companhia, morreu.


“Não sei de quem recordo meu passado
Que outrem fui quando o fui, nem me conheço
Como sentindo com a minha alma aquela
Alma que a sentir lembro.”
(Ricardo Reis)



Continuo a descer, agora que a emoção me escorre discretamente pela face, e atravesso a estrada, para virar naquela esquina, descer as escadas e parar sentado. Gostava que fosse noite, noite poética, noite dura, que cura. De noite este lamento seria ouvido, e por detrás da solidão, ouviria chamar o meu nome.

quarta-feira, maio 18, 2005

2

cantasse o poema os teus cabelos
deixariam de pulsar no mundo
motivos para outras epopeias


Mar.31.MMV

domingo, maio 15, 2005

1

o encontro entre as pedras suaves
enobrece a chuva, o sal do horizonte,
colhe-se o âmbar para a eternidade
que recebe desolado este olhar,
contemplar inerte, inane (imortais,
estes coros varonis sobre as ondas)


Mar.28.MMV

sexta-feira, maio 13, 2005

(dia 24 de junho, 2028)

V
O Triângulo apresenta contudo a grande desvantagem de não elaborar satisfatoriamente a ideia de não-retorno. Tento ainda imaginar um triângulo em espiral ...


(ver NOTA)


Mas a não-sobreposição no retorno, apesar de presente, não é definida pelo número de vértices, pois o problema é comum a todas as formas fechadas; é a própria ausência de sobreposição mais importante que a Forma. É pena, pois a ideia inicial agradava-me intuitivamente. Lembro-me do meu autor lá adiante (não sei em que direcção) e penso que a nossa sobreposição estaria sempre correlacionada com a sua morte, pois que eu lhe sobreviveria (como qualquer personagem). E neste momento? Poderia matar o meu autor com este pensamento? Sentirá ele na sua imaterial memória a ameaça da futura aniquilação dos sentimentos?




NOTA: no manuscrito que aqui se transcreve, existia um esquisso, algo rasurado (deduzimos que por hesitação teórica ou falta de firmeza no traço), em que o presumível autor deste fragmento tentou ilustrar o esquema mental a que se refere - uma espiral constituída, não por uma forma elíptica ou circular, mas por uma forma triangular. Diz-se agora que "existia" um esquisso, porque à data em que se tentam reunir os elementos que permitam entender de que forma estes fragmentos nos elucidam acerca do seu autor, descobrimos um pedaço deste mesmo texto, com data por confirmar ainda, no qual não parece ter havido lugar a tentativa alguma de ilustração gráfica. Ainda não foi possível determinar sequer se estamos em presença de momentos diversos do mesmo pensamento, ou simples tentativa de reformulação (na hipótese, plausível por agora, de que sejam do mesmo autor). Sobre a representação gráfica, e dada a quase ilegibilidade do traçado definitivo, perdido entre outros riscos aparentemente inúteis, decidimos omiti-la nesta transcrição, reservando essa divulgação para um momento mais avançado do estudo destes manuscritos.

terça-feira, maio 10, 2005

díptico para Deus - para Ti, punhais

I
Quando te esqueço
sofro da certeza impura
e danço quase quedo
num medo sólido e uno.

II
Danço num segredo
e guardo-me para ela –
a renúncia ao saber e
ao desassossego vão.

III
Sossego na ausência
dos teus braços de luz
isento da tributação da
alma antes penhorada.

IV
Um dia, sem tempo e
olhos nos olhos, infiel
à fé, pétrea a entrega,
a partir chamei chegar.

V
E porque ris, se não
estavas lá, oráculo ou
esfinge, e nem sabias
quem chegou partindo?

VI
Há um lugar visceral
dentro do teu nome
no qual habita inócua
a minha dúvida perdida

VII
Não é ainda triste
o aroma que a morte
exala, afinal, entre
um e outro suspiro teu.

VIII
Procuras, derradeira e
desesperada criação,
o coração das minhas
desapaixonadas trevas.

IX
Enfrentas o deserto
e a rocha, o oceano
pálido e o infindável
abismo do meu olhar.

X
Uma vela ao fundo,
um incenso por queimar,
talvez um cântico, hino
ao tempo? Aguarda.

XI
É mais bela a tua
solidão agora, espelho
- vislumbro o belo,
panegírico da liberdade.

XII
Imitas na tua queda
o outro declive, grave
destino sobre irmãos
na perdição, caídos, vis.

último punhal
Recuperas a noite
do teu nascimento
no silêncio que deixo
a embalar o teu sonho.


? - Abr.18.MMV

(in livro xiii, 2005)

Nota: como antes anunciado, este díptico para Deus que aqui termina faz o contraponto ao tríptico para o Diabo, que tinha aberto este volume intitulado livro xiii.
todas as partes foram editadas aqui, e podem ser lidas a partir dos arquivos.

domingo, maio 08, 2005

batem-me

batem-me, como roupa molhada nas
pedras que servem de berço aos rios
de uma infância banal qualquer, as
recordações póstumas de uma branda
quietude. batem-me com a violência
das evidências que balizam a nossa
credulidade no mundo infinito e belo,
apesar da crueldade bélica dos instintos.

01.09.03

(in a língua secreta do egoísmo, 2003)

Dádiva em Marília Campos

a Marília encontrou um lugar para estas palavras, mesmo ao lado do seu olhar.
Muito obrigado, Marília.

quinta-feira, maio 05, 2005

dádiva


é sempre daqui que se olha
para o reflexo
sempre donde não nos vemos
mas intuímos

e sempre nos surpreende
a brancura
sempre a luz nos ofusca
aura intensa

é sempre daqui que nascemos
para o mundo
sempre os olhos abertos inúteis
quase cegos

sempre que o céu cai digno
sobre a morte
e sempre que o som do grito
atroz ecoa.



01.02.04
(in horizontes de ouro, 2004)

terça-feira, maio 03, 2005

Ode a um amor diferente



ouvi sem ouvir o meu nome
que a tua voz sem voz já
deixou pairar silente entre
os teus olhos e a minha dor

ressonância adiada
temido eco odioso
desejado colhido no
prado do tempo sem
promessa esquecido

viajar pela tua memória não
me permiti nem o tempo a
mim concedeu nobreza que
antes iluminasse desejo tal

o vento nas flores
a água nos rebordos
vasos aves aroma a
banha sabor de fruta
o som da tarde

cantei-te sem melodia sonhos
em forma de oração pedaços
de crueldade sem rumo com a
coragem envenenada de amor

fio de rádio parodiantes
luz em fundo sombrio
frinchas de persianas
conversas perdidas na
vizinhança envelhecida

vagueias no limbo do que deixei
quando parti sem desejar voltar
repousas imagem inquieta hirta
imponente invulnerável e dócil

amor que não esbanjaste
mimo inviolado guardado
ignorado talvez revestido
da leveza que a maldade
parece dar ao olhar vazio

talvez muito de ti viva em mim
assim nesta clausura em que me
defino quando fecho os olhos e
um cheiro a mofo me inebria

uma velhice intemporal
meiguice uma subtileza
da voz com a chuva ao
fundo da rua na escada
na relva no teu quarto

não cheiravas a morte no último
dia nem a pele resistiu ao beijo
não foi inerte o olhar inerte nem
mudo o afecto que ecoou em nós

letras que não sabias
não sabendo ensinaste
e nem a amar podias
adivinhar que ensinavas
sendo ódio o dicionário

não partiste agora para mais longe
do que para onde a vida te afastara
estás no mesmo lugar sem morada
em que vivem os diferentes amores

in memoriam
Beatriz Oliveira Pereira
(17.01.1914 - 28.04.2005)
Mai.03.MMV

quinta-feira, abril 21, 2005

o velho paradoxo

Equilibrar a vida como ponta de cigarro. Quanto maior o prazer da aspiração saborosa de índole melancólica e triste, mais perto do filtro e do cinzeiro, mais frágil o balancear do cinzento ainda agora rubro, mais precária a expectativa de rever as volutas de fumo no ar já saturado. Pelo caminho cronológico dos dias, também a alma adquire a exaustão de um bar de putas, de um salão de bilhar depois da meia-noite, de uma sala de jogo clandestino roubada a um filme a preto e branco. Também o espírito ardente de sapiência latejante se definha no segundo seguinte, na década que se avizinha, no último dia, com a força morta do seu próprio ilusionismo. E a paixão, ah, a paixão, essa mata-hari de todos os declives existenciais...
Sem a hipótese do livre arbítrio quanto ao ter acendido esse cigarro, não poder dizer à partida “não, obrigado, eu não vivo”, como vencer a tentação de lamentar o poder do seu sabor ao preço que o tempo cobra?
Haverá vida de enrolar em mortalha? Existência de rapé? O que será um cachimbo? O próprio mundo que aguarda a erva aromática do nosso sangue, da nossa mente? Para desfrute de que fumador compulsivo?

Abr.02.MMV

(in a geometria da inexistência)

segunda-feira, abril 18, 2005

ex-libris da tugosfera

Foi pela mão da Moriana que a iniciativa chegou até mim. Não consigo já descrever o percurso anterior desde a inicial ideia. Sei que me deu prazer passar o testemunho também. Aqui fica a minha contribuição para este "levantamento bio-bibliográfico tugosférico"

_______


Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?

Um livro em branco aos olhos do poder – um poema para os despertos.

Já alguma vez ficaste apanhadinha(o) por um personagem de ficção?

Desejei muito que a Agnés da “Imortalidade” existisse de facto. Não me apaixonei por ela, mas pelo que o Kundera nela viu. “Adriano” passou a significar algo de muito intenso depois da Yourcenar. Clarissa, Laura e Virginia, marcaram, colorindo, um olhar sobre A Mulher pela mão de Cunningham.

Qual foi o último livro que compraste?

Casa na Duna, de Carlos de Oliveira; A Mancha Humana, de Philip Roth; Camões: Labirintos e Fascínios, de Aguiar e Silva

Qual o último livro que leste?

Os Demónios de Kraven, de Alan Isler

Que livros estás a ler?

Casos do Beco das Sardinheiras, de Mário de Carvalho; Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro; Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco; A Vaga de Calor, de Urbano Tavares Rodrigues; Granta nº 87; Discurso da Narrativa, de Gérard Genette; O Rei, o Sábio e o Bobo, de Shafique Keshavjee; A Angústia da Influência, de Harold Bloom;...

Que livros (5) levarias para uma ilha deserta?

1) A poesia e a ficção de Jorge Luis Borges, a poesia de Pedro Tamen (e, quem sabe, a sua tradução de Proust, dado o tempo que provavelmente teria), a poesia de Al Berto.

2) As Cidades Invisíveis, e demais fantasias de Italo Calvino (devia haver edições com a obra completa num só volume para o caso de emergências como esta).

3) Os romances do Umberto Eco, para reler um após outro (acho que escondia os Limites da Interpretação no meio dos romances).

4) O Ser e o Nada do Sartre, Ser e Tempo do Heidegger, Verdade e Método do Gadamer, Investigações Filosóficas do Wittgenstein e Diferença e Repetição do Deleuze, preencheriam com toda a certeza as horas mais longas.

5) Cadernos em branco, para expandir os livros que levasse para outras páginas, para outros sonhos.


A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?

À Azul, pela cumplicidade de tantas leituras, pela partilha de tantas ideias, pelo fascínio de tantos anos.

À Helena, pela empatia das palavras que lhe leio, pela beleza e profundidade do que nos comunica.

Ao Alexandre, que nos leva com ele para tantos recantos do mundo, como livros para uma ilha deserta.

sexta-feira, abril 15, 2005

díptico para Deus - harmonia celeste

II
Ufano na solidão
em que me defino
sem definhar ao
castigo que clamaste
no momento ímpar
da sóbria separação,
escorro angústia
ao invés de sal
pelas órbitas
insanas, irreais;
mas é contudo
alegria revolta
paz insatisfeita
que se esvai de mim
assim, neste fluir
escuro por que me
tentas a voltar.

Numa ilha sem ti
rodeado de ti só
alcanço o limite
o cume a franja
do sentido da tua
ausência incerta;
e mascaro de fome
o sabor a nada,
e digo sequioso
quando trago
voluptuosamente
afinal o néctar
o sangue esperma
teu e de todos os
corpos que aceitas.

O nome é então
o que resta do verbo
e o som do estertor
é tempestade que
ressoa já na minha
inexistência triunfal;
o poder é o nome
do som inexistente,
a dor do espírito
que não sente já
o peso da tua mão
a afagar-me sem dó.

quinta-feira, abril 14, 2005

retrato esboçado ao luar



não é a morte mais silente
que o dia sem ti

nem a noite imponente deslumbre maior
que o céu que dorme nos teus braços

nem o mar véu mais puro
que a tua pele nua

24.01.04
(in horizontes de ouro, 2004)

sábado, abril 02, 2005

XII

adio a verdadeira auto-revelação feita escrita
lúgubre sobre o que intuo me invadir derradeiramente.
sei a cor do débil apagar de todas as velas e
comprometo a minha inteligência em cada olhar
sorridente sobre um poema assinado – prova irrefutável
da sede de paz enganadora e triste. adio o afecto
que adivinho nascer nesse momento em que convergem
as fés e as descrenças, em que brilha o sol
e a lua simultaneamente, em que caem as estrelas
duas a duas (porque o mal se partilha também no
universo inerte). adio o deslumbramento doloroso, não
por parca audácia mas por me quedar a olhar demasiado
tempo o rio de águas paradas (translúcidas, porém) da
vida que me banha.

27.05.03

(in o mundo e um pouco mais, 2003)

indícios de nós

Corpo nome memória
o espaço que as palavras deixam escorrer
por entre as respirações. Talvez
angústiaéotraçodoesboçodenósquenãoconsenteplenitude
se perfile na consciência como um exército contra
o sentido perdido. Memória tempo pulsação
cada vez mais vida a viver-se fora de nós. Todos os sinais
da nossa presença soam a rufos de circo
TRRRrrrrrrrrrrrrrrrrrLadiesAndGentlemenrrrrrrrrrrrr
rrrrrrrrrrrrrrrrParaTodosVósrrrrrrrrrrrrrrr
rrrrrODerradeirorrrrrrrrrrrEstertorRRRRRRRTCHSSSHHhhh...
Pulsação ritmo eternidade

Abr.01.MMV

(in a geometria da inexistência)

díptico para Deus - harmonia celeste

I

Pedes-me cinco sons
e os sentidos parecem
não ser capaz de evocar
um acorde temperado;
não consigo aniquilar
o ruído das preces
o arrulho de dores
da fé, a rugosidade
de tudo, a finitude.

Dou-te o medo, o
desajeitado medo de
quase nada, para que
com o branco brinques;
a cor do teu abraço
é escura já demais
para o vento que dizes
colher na túnica
dos profetas cegos.

Exiges o grito incerto
e não afino no parcial
harmónico que te doa,
que te quebre, magoe.

Cerras-me os olhos
com a força convicta
da unidade demiúrgica
com que os abriras;
esqueces a promessa
do infinito escuro
contido no deserto
em que as lágrimas
se vertem, desaguam.

Abro a garganta no
silêncio simulado
da oração hipócrita
com que te desgosto;
invoco todos os nomes
de impossibilidades
que te anunciem a dor
com que sucumbo
à realidade sem nós.

(in livro xiii)

Nota: este díptico, ainda em elaboração, de que é agora apresentada o primeiro poema da primeira parte, fechará o volume livro xiii, em contraponto com o tríptico para o Diabo que o tinha encetado, e que pode ser consultado nos arquivos.
r.e.

(dia 24 de junho, 2028)

IV


Levanto-me e a manhã sabe-me a cinza, a pó. Talvez seja da madeira do chão, do tecto, ou apenas de mim. Tenho frio. Ouço passos; estou sozinho. Ouço passos novamente. Sobre a cadeira a roupa remexe-se desalinhada, como que acordada de um sonho em que vestia um príncipe. Os passos eram dele, e agora que saiu, ajudo a roupa a encontrar-se consigo mesma, vestindo-a no meu corpo.
Olho para a janela fechada e penso vagamente na hipótese de nada existir para além dela... nem sequer o vazio. Aproximo-me da porta e esta limitação espacial irrita-me. Preferia Ser sem Espaço, ou pelo menos sem Forma, o que já seria suficientemente delimitador. Com um sorriso, ironicamente, a porta convida-me a sair ...
Aceito.
No corredor a ausência de plantas surpreende-me.
Regresso e penso ...

quinta-feira, março 31, 2005

horizonte (vil)


“sim. porque não?
uma ave, também...
sorrir, alma diagonal;
... só de longe, nascer.


20.12.03
(in horizontes de ouro, 2003-2004)

segunda-feira, março 28, 2005

aforismos

Sonho com o dia em que a visão mística do som se confunda em tal medida com a realidade do que ouço,

que a morte me soe apenas como um pizzicato de contrabaixos,

em sinfonia rarefeita quasi weberniana

sábado, março 26, 2005

(dia 31 de outubro, 2041)

I

Não fosse o barulho da cidade em movimento, neste fim de tarde, suficientemente agressivo, o silêncio dos pássaros tornar-se-ia desesperadamente ensurdecedor. Olho-os, percorro o seu trajecto agitado, e não os ouço. E eles voam em torno das árvores, tantos ... e eu não os ouço ... seria hora de acordar aflito, se ...
... mas não sonho.
Esta angústia remonta a uma antiga intuição,


... com a obra morre a ideia ... ... com a morte vê-se o silêncio ...

“... são almas que choram, ...”


As pessoas que me evitam, apressadamente, afastam-me o pensamento dos pássaros e olho em redor. Encaminho-me para aquela igreja - na falta de uma gruta, uma catedral...
À porta, cumprimento o mendigo (há sempre um mendigo à porta das igrejas). Apetece-me sentar a seu lado e pedir-lhe um pouco de pão, pretexto que a seus olhos seria válido para legitimar, pela fome do corpo, a nossa irmandade na solidão do espírito.


Sento-me e não lhe peço nada ... mas anuncio-lhe com tristeza: "os pássaros morreram".
Ele já sabia, levanta-se e afasta-se apenas para não ter de enfrentar a minha inocência.

Não entro. Deixo-me ficar sentado, indiferente ao que as pessoas vão pensando enquanto por ali passam. Os nossos olhos cruzam-se por vezes, e apesar de a minha aparência não provocar o habitual desviar do olhar e da misericórdia, o insólito da minha postura inexpressiva traz à superfície aquele tipo de sentimentos que, como a compaixão, nunca vêm sós. E é numa mistura emocional que alguns aceleram o passo, enquanto outros, por associações tão pessoais que não se enumeram, não hesitam em contornar-me e, sem deixar de com o olhar mo agradecer, entram na igreja.

terça-feira, março 22, 2005

ars nova

revérberos antecipados
, fulgor por nascer –
opõe-se à memória
o limite (não foram
escuros os dias) –
não serão – as horas
– rendilhados de
espectros (cromáticos
e
) –


Mar.21.MMV

(in livro xiii)

domingo, março 20, 2005

(dia 24 de junho, 2028)

III
Em fase de revisão? De há quanto tempo, no futuro, me observo? Que pena um personagem não poder partilhar com o seu autor um só momento de mútua existência. Sobrepor-se-iam como dois espectros coloridos? Atravessar-se-iam como fantasmas? (de quem? Mais confusão, por agora não, obrigado) ... No entanto, a perspectiva de um encontro não deixa de ser mais angustiante do que a noção da irrealidade da nossa vida. Ser em alguém (mesmo num futuro interior) não será melhor que Ser em si ?
Futuro interior ... o Tempo aqui dentro bem junto ao nariz da alma, meu caro amigo...

sábado, março 19, 2005

heresias de sal

pela tarde
ardem sem lágrimas
os olhos

deuses da minha melancolia
salgados e tristes
de te ver

mar

29.12.00

(in despojos de lume e de medo, 2000-2002)

sexta-feira, março 18, 2005

sem título



inelutabilidade indolor
o limite adivinhado
desejo desenhado na sombra
inerte vazio de futuro

quinta-feira, março 17, 2005

para o TCA


feelings, by TCA




– Uma andorinha,
tal qual a do sonho
de ontem
– diz o
infante, da verdade
seguro.

Não pressente
o odor da resina nas
crinas em atrito
lento sobre um dó
grave de violoncelo.

Fosse universitário já
e talvez evocasse
o diálogo, no tempo
moldado, entre Goethe
e o Mestre.

– Azul –
dirá a infância de novo
– será o céu da tentação
de criar, sempre –
donde
nasce a lucidez?

Na idade do Verão era
o Vermelho o condor
da Liberdade, e seria
de amor o poema de
pastel.

Mas o risco
lento e doloroso
sobre todo o grão
de cor é, para ti, só
um grito, um canto.

Não fosse o silêncio
e era tal qual, dos
sonhos, as aves todas;
das crianças, todos
os amanhãs.


___

Um Obrigado muito especial ao TCA pela oportunidade que proporcionou para este trabalho conjunto. A minha admiração pelo seu talento faz da passagem pelo Abstracto Concreto um prazer diário de contemplação.

domingo, março 13, 2005

V

Sobrevoa o mundo um
alinhamento de asas – força aérea da
Natureza em demonstração acrobática.

Primeiro pensamento: afinal nem tudo eram fábulas –
Os pássaros voam, definitivamente; migram, mesmo; têm o seu ciclo
iniciático. A magia de um bando ao longe sai da memória e
habita o céu todo – todo o céu é o céu onde se recorta a negro
a formação em V.

(segundo pensamento: em que geometria, formação, bando, desapareço? Que lugar ocupo? Vértice ou curva impossível?)

Mar.12.MMV

(in a geometria da inexistência)

sábado, março 12, 2005

Manhã Fratricida

madrugada extensa,
não infinita, inexistente -
desprende-se dela a poeira
que o esquecimento absorve.

exala o perfume do real,
que se evola, silente;
a essência nela se queda,
por toda a extensão.

a luz de uma manhã
relança o olhar do real
sobre o sonho vivo -
aniquila o tempo onírico.

sexta-feira, março 11, 2005

a luz e a lisura



uma sombra
de rugosidade –
plausível? verosímil
?


o traçado minucioso
misterioso (delicado)
de uma lisura
perdida, de um
grão, de
um atrito.

é isso.

a sombra
lembrada
do próprio atrito
é isso –
a feliz
saudade.


Mar.10.MMV

(in livro xiii)

quinta-feira, março 10, 2005

3



as serpentes e os livros

em fios
ininterruptos
de sentidos
ocultos
me oculto

e vagueio como um bailarino surdo
por entre o mundo
e nos livros encontro o traçado
da coreografia imprevista
e sobre líricas sem balanço
me deito quando de mim me canso


(donde se extrai o veneno que fica
a arder nos lábios depois de Andrade
ou Sophia?)


e adormeço sobre o linóleo
da capa ou do epílogo
e vislumbro o sonho
do silêncio que nasce depois

em fios
de sentidos
me descubro

03.02.04

(in
imanências, 2004)

domingo, março 06, 2005

Retratos - I


Entrevista com
António Sereno Rodrigues


Conheci-o como António, o Milas. Num café em Lisboa. Há alguns anos já. No início, das primeiras vezes em que lá entrei, sem a cumplicidade que hoje me permite tratá-lo pelo epíteto anedótico, antipatizava com o seu ar, com os seus modos indiferentes. Não me tratava de forma distinta da que usava ao servir outros clientes, que eu deduzia serem já de longa data, dada a familiaridade do Milas com que o chamavam à mesa para um pedido ou dois dedos de conversa. Mas mesmo não me tratando com tal má cara que me tivesse feito deixar de frequentar o local, foi lenta a tomada de confiança mútua, ao longo de pequenas trocas de comentários banais e de repetidas situações que os meses foram somando, dando lugar a um sorriso sincero de cada vez que me trazia um café ou vinha, com cumplicidade, partilhar algum pormenor que imaginava ser do meu interesse sobre alguma cliente que se lhe afigurava “interessante”, ou sobre si mesmo. A partir de certa altura soube que teria de o incluir neste conjunto de entrevistas. Conhecer o Milas, conhecer o António.


ASR – Vamos lá ver o que sai daí... ainda não percebi muito bem o que queres que te diga. Já me conheces. Que mais posso dizer que te interesse?

RE – Calma, Milas. O que te disse é que gostava de te ouvir. Não quero saber nada especialmente. Quero que participes neste ciclo de entrevistas porque tens uma vida dentro de ti que não é menos vida que a de mais ninguém. Se quiseres, podes começar por dizer, a quem nos lê que não te conhece, quem és, o que dizes para te apresentar quando vais, sei lá... à repartição de finanças ou ao banco...

ASR – Vão todos chular para a estrada ou levar no cu à borla, que aqui pelo Milas é igual ao litro. (ri, com gosto, e alguma timidez à mistura, que poucos detectariam no quotidiano; acende um cigarro).

RE – Sim, senhor, estás apresentado! Quer dizer que a ti não enganam eles. Roubam, mas não saem em ombros.

ASR – Foda-se, era o que mais faltava era um gajo ser comido e calar. Da maneira que um tipo já anda feliz todo o dia, só estes caramelos às vezes para nos foderem os cornos com papelinhos e papeletas do arco da velha para no fim dizerem que estamos fodidos na mesma.

“Já pediram? Ainda não. Então o que vai ser? Para mim é uma água castelo com gelo e limão, e tu Milas, o que é que queres? Pode trazer-me, por favor, uma imperial. Muito bem. É pá, faz-me sempre uma confusão do caralho quando estou num café mas deste lado. Quando disseste que querias a água castelo, quase que gritei p’ó gajo do balcão “sai uma castelo”.(ri)


RE – Mas quem te vê muito calado e senhor de si, de mesa em mesa, “mais dois cafés, Rute”, “passa a quatro”, sem uma exaltação, sem um repente – pronto, confesso que às vezes és mesmo um bocado sisudo demais, mas isso não mata ninguém – quem te vê só ali toma-te um bocado por de-relações-cortadas-com-a-vida, se é que me entendes. Sentes isso na maneira como te falam?

ASR – Ó pá, quer dizer, sinto e não sinto. (coça a orelha, e evita o olhar). Às vezes é fodido não saber o que vai na cabeça de certas pessoas. Um tipo às vezes já vem virado do avesso de casa, quando chega ali e encontra a pasmaceira de todos os dias, e aparece algum marmelo que fala como se eu lhe tivesse cuspido ou mandado à merda, só me apetece mesmo mandar. Estou a fazer meu trabalho. O patrão não me pede que entretenha os clientes com palhaçadas, para que é que me hei-de andar a rir, né?


Ora aqui está a sua água. E a imperial fresquinha. Muito obrigado. Desejam mais alguma coisa? Por agora não, obrigado. (Só se fosse a ti, ‘mor.[murmura entredentes, e de olhar pegado ao rabo que se afasta]. Então, pá? Deixa lá a colega agora, e continua. É pá, é que aquele par...bom, adiante)


Estava eu a dizer que apesar de tudo também sei ser amigo do meu amigo quando as pessoas começam a ser mais porreiras ou quando passam a ser quase da casa, como é o teu caso. Ao princípio também não te topava muito bem, com a mania de ficar ali de livros na mesa uma hora ou duas, e a chamar ora para um café, ora para outro, e agora um copo de água, se faz favor, e podia trazer-me um cinzeiro, e mais um café... Mas é o ofício. Depois vi que não eras daqueles doutores de merda com o rei na barriga a puxar galões de inteligentes, como se toda a gente que não foi colega ou aluno deles fosse uma cambada de analfabetos. Esses a mim não me vêem os dentes.

RE – Que idade tens, Milas?

ASR – Vou fazer 47 agora em Março. Ainda falta tanto e já estou tão farto.

RE – Não percebi.

ASR – Se não me atropelarem para aí, ou isso, ainda sou novo, na volta morro quando já estiver p’ra aí para um lado qualquer a borrar-me todo e a chamar nomes à desgraçada da mulher, e por mim às vezes sinto que se morresse hoje já era tarde. Isto há dias em que um gajo pensa em tudo, né? Há alguns anos era pior. Foi uma altura complicada. Ainda não me conhecias. A miúda, a mais velha, começou a andar com um tipo... É pá, não me venham com merdas, há gajos que se vê à primeira que não valem nada. A malta fala fala mas quando é a nossa filha a coisa muda de figura. Às vezes lá no café bem topo os casalinhos, e vê-se logo quando é o tipo que vai aproveitando agora a sacudir umas migalhinhas da camisola na gaja, agora a pôr-lhe a mãozinha na perna, e elas a fazer que é tudo muito normal, mas a rir sem à-vontade nenhum.

RE – Mas estavas a falar da tua filha...

ASR – Quando ela conheceu o pai da Raquel, a minha neta, eu vi logo que aquilo ia dar molho. O gajo era do tipo arruaceiro, de botinhas para assustar palermas, de óculos apaneleirados, que a Sara achava que tinham estilo, de modos parvos e, pelo que eu via, era burro como as portas. Não tenho cursos mas sei distinguir um idiota de um paz de alma. O Paulo era um idiota. Ainda por cima, andava na altura com um grupinho que, meu deus, era bem de ver que boa coisa não faziam. Isto para dizer que o raio da miúda lá viu ali alguma coisa que a encantou, aquela liberdade toda, não sei – não é que lá em casa andassem como num quartel, que eu nunca me armei em general, nem para ela nem para o Renato, mas é sempre diferente, né? – sei que começaram as noites em casa dele, começou a ficar para os fins de semana, e ao fim de dois meses estava a viver lá, num trapel desgraçado, ela sem trabalho ainda e ele, sei eu lá bem o que ele fazia? A minha mulher a chatear-me os cornos que eu é que tinha sido sempre um bruto, e que agora é que se via o resultado, que se eu não fosse tão casmurro às vezes, a cachopa não se sentia tão deserta de sair dali pra fora. O puto a foder-me também a cabeça que a mana é que estava certa, que viver ali parecia que estavam todos os dias num velório sem morto. Um fedelho daqueles que tinha 15 anos na altura, já lá vão quase sete. Foram dos piores anos da minha vida. Nessa altura, com tudo a desandar dos carris, pensei muitas vezes a sério em estourar os miolos ou amandar-me lá do 5º andar abaixo. (acende outro cigarro, e bebe mais um golo)

RE – E no entanto a vida foi encarrilhando de novo, e aqui estás tu ainda a poder contar a história. Como é que as coisas estão agora com a Sara?

ASR – Como é que haviam de estar? Estão uma merda. Claro que podia ser pior. Ela abriu os olhos à custa dela. E da pequena, que não tem culpa nenhuma. O filho da puta pôs-se na alheta assim que viu que ter meninos não era tão económico como fazê-los. Ela voltou para casa. Entretanto o Renato também casou, mas esse tem tido mais tino e sorte. Sim, porque também é realmente preciso sorte com quem nos aparece à frente na vida. Hoje faz-me bem ter lá a pequenita em casa, a gatinhar por mim acima. Mas quando olho para trás e tento perceber o que podia ter feito de maneira diferente, é fodido, mas não consigo imaginar o que poderia ser. Se recuo muito vou sempre bater ao mesmo lado, só se não tivesse nascido é que alguma coisa teria sido diferente. Será assim com toda a gente?

RE – Não sei, Milas. Nunca dá para comparar. Mas tu e a morte nunca se deram nem muito bem nem muito mal. Ora ela parece chamar-te com ar de sonsa, ou tu a tratas como a uma puta. Já uma vez me chegou lá no café aos ouvidos que tu mesmo tinhas andado uma vez com um tipo debaixo de olho para o mandares fazer tijolo. Como é que essa cena aconteceu?

ASR – Foda-se, quem é que te foi contar essa merda?

RE – Calma, já sabes como é que estas coisas são, um dia uma boca, outro dia uma brincadeira, e mais dia menos dia de tudo se fala. Um não estavas lá, e a Rute e o Sérgio lembraram-se a propósito já nem sei de quê, do tipo que viu a vida mal parada. Quem era o gajo?

ASR – Sei lá eu quem era o gajo! Ele tinha-se mudado ali para o bairro à pouco tempo... Bem, aos anos que isso foi já! Deixa ver, é só fazer as contas... vai para 10 anos, mais coisa menos coisa. Eu nessa altura morava perto do café. Era melhor para mim à noite que não tinha de apanhar transportes à noite, e para a mulher era mais perto também da loja que ela limpava às manhãs. A Sara andava no 11º ano, já estás a ver ao tempo que isto foi. Bom, o tipo começou a aparecer por lá pelo café. Ao princípio era cara nova, a malta está sempre mais observadora. Comentámos que o tipo devia ser solteiro. Às vezes vinha assim para o desalinhado, não foi uma nem duas as vezes que vinha com peúgas desirmanadas, enfim, aquelas coisas que quem vive sozinho acaba por se desleixar. Ou na prisão, ou na tropa. Tu sabes. Quem seria, o que fazia na vida, nunca soube. E não se teria passado nada se ele um dia, já depois de umas semanas de lá ir beber o café depois de almoço, não tivesse dito à Guida, que já tu não conheceste lá, “ó menina, pode vir aqui fazer companhia um bocadinho?”. E isto vinha de onde? Ele tinha-me visto a trocar umas palavras noutra mesa (olha, com o Sr. Leonel que morreu o ano passado, esse tu lembras-te, coitado. Já lá está). Devia vir com o miolos queimados, queria que ali estivesse se calhar especado a olhar para ele à espera que sua excelência tivesse algum desejo. Conclusão, o cabrão estava a meter-se com a Guida (na altura um gaja espigada, e toda penteadinha, como na época não se via muitas, na idade dela), como se fosse serviço do café fazer companhia aos clientes. Eu topei o gajo, e vim perguntar-lhe se desejava alguma coisa. Ela ainda disse “deixa lá, Milas, que eu atendo o cavalheiro”. E logo ele “Milas ou Pilas? Não percebi”. Eu perguntei-lhe o que é que ele queria dizer com aquilo. Vá-se lá saber o que passa pela cabeça das pessoas, é o que eu digo. Sei que ele insistiu “Sei lá, pelo jeitinho até podia ser o Pilas. E pelos vistos é esquisito. Deve haver noutras mesas algo que satisfaça mais”. Diz-me lá se não estava a pedi-las. Até podia ter bebido. Ou era simplesmente anormal. Não me interessa. Perguntei-lhe se ele queria ajudar a mudar o nome de Milas para Pilas pela fama de lhe rebentar com o cu. Eu sei que isto não se faz, eu estava a trabalhar e tudo, arrisquei-me a ser corrido. Mas o Velho Antunes sabia mais da vida que nós todos. Ele mandou-me lá para dentro, que ele acabava de atender o tipo. Depois dessa vez, começou a deixar cartas debaixo da porta do café com ameaças. Ora a mim, ora indirectas com insinuações sobre a Guida. A gente acabou por se acostumar àquilo. Ele nunca mais entrou no café. As cartas deviam ser deixadas durante a madrugada. Um marado dos cornos qualquer que ali tinha vindo calhar, era o que era. Até que uma das cartas começava por perguntar-me se eu gostava de passar o testemunho da alcunha do Pilas para o Renato.

RE – Foda-se, a sério?

ASR – Podes crer. Até me caíram os tomates ao chão. O gajo devia seguir-me. A mim e aos miúdos, para lhe saber o nome, e assustei-me pela primeira vez na vida com uma merda assim. Estás a imaginar o que a cabeça começa a construir. É fodido, mas quanto mais tentava pensar que ele era só um maluquinho, mas medo tinha que ele fizesse alguma merda ao puto. Nessa altura comprei uma arma. Nunca tinha pensado até aí que pudesse ver-me metido numa destas. Corri a cidade. Durante a noite, fazia directas, de beco em beco, de bar em bar. Fui a bairros famosos pelas merdas mais fodidas. Tentei lembrar-me de merdas que ele tivesse dito que me dessem alguma pista. Mas nada. Nunca mais o vi. Mas foi melhor assim. Ele não se tinha safado, e agora não estava aqui a contar esta porcaria passados estes anos.

RE – Eu farejava uma boa história e ia entrevistar-te à prisão.

ASR – Não me terias chegado a conhecer (ri, satisfeito provavelmente por essa possibilidade mesmo, de poder estar a rir daquilo).

RE – Então, mas agora confundiste-me. É Milas ou Pilas, afinal?

ASR – Olha lá... Olha que eu desfiz-me da canhota, mas ainda te assentava um bom murro se não soubesse que estás a brincar.

RE – Mas já agora, e fora de brincadeiras, donde é que vem essa de te chamarem Milas?
(ri-se de repente, como se a própria pergunta já contivesse a piada que originara o nome)

Olhe, faz favor, podia trazer mais uma imperial? É só? O senhor não quer beber mais nada? Nem comer? Não, obrigado. Olhe, espere. Afinal, pode trazer-me um café, por favor. (Tens razão, foda-se, que belo par de mamas... bolas, tenho que te reconhecer o olho. Ó pá, passa lá p’lo café tanta coisa que um tipo acaba por apurar o gosto) [rimo-nos]


RE – Mas ias a dizer...

ASR – O Milas já vem do tempo da tropa. Fiz a recruta nas Caldas, e vinha aos fins de semana a casa... Alguns, que a maior parte das vezes acabava por ficar lá com eles, ora na jogatana ora a roçar o cu p’las paredes. Na altura.... Foda-se, é engraçado teres perguntado isso, porque ainda anteontem me lembrei do Valinhos, um gajo de Barcelos, que na altura era mais que meu irmão. Caramba, ao tempo que estas merdas foram, e como há caras que parece que estou a ver ainda... (acende um cigarro, e pisca-me o olho, imperceptivelmente)

O café e a imperial... Posso levar esta? Obrigado. [sorrimos, sem mais]


Bom, mas das vezes que íamos a casa, toda a malta tinha de trazer grandes histórias para contar. E, ou eram grandes misérias ou grandes tangas. Naquela época era difícil ir à terra, no cu de judas, e trazer na sacola uma história de encantar. Como eu nunca quis fazer da minha família motivo de conversas, inventava outras aventuras. E, naquela idade, quem passasse por mais “homem”, dominava a cena, tás a ver? Ainda deve ser um bocado assim hoje em dia, não é? A maior parte tinha sempre algo para alardear – e eram sempre mulheres o troféu a gabar. Ora era uma tia mais velha e toda p’as curvas, que os tinha apanhado a jeito e os tinha ensinado sobre o que é uma mulher; ou era a filha de um vizinho que tomava banho nalgum regato, e que eles miravam deliciados e de pau feito; ou para quem não tinha força de imaginação, como eu, eram putas. Porque essas, nas histórias faziam tudo o que nas fantasias sonhávamos. Comecei uma vez a falar de uma puta, que disse que era de lá da aldeia, e que se teria apaixonado por mim – chamei-lhe Mila. E do que contei, acho que ainda consegui que alguns mais ingénuos se tivessem apaixonado por ela. As semanas passavam, e os nomes iam rodando. Mas o nome Mila voltava sem que eu me apercebesse já. Os tipos um dia começaram em brincadeira a dizer que eu tinha ficado tão apanhadinho pela primeira puta, que agora só me vinha com gajas chamadas Camila, ou Ludomila ou outras Milas. E fiquei o Milas. É fodido como uma coisinha de nada, uma história de rapazolas, acompanha a vida toda de um gajo.

RE – E sempre é verdade?

ASR – Hã?

RE – Só com Milas? (ri-me)

ASR – Engraçadinho. (sorri)

RE – Sabes, António, agora sem nomes de putas aqui à mistura, por vezes quando te escuto, como hoje, não reconheço o empregado de mesa que convidei para esta entrevista. Há bocado, estava a pensar uma coisa absurda – que tu é que me tinhas enganado, e bem, fingindo ser empregado de mesa nos dias em que lá ia ao café, para me fazer vir até esta conversa. Mas então, teria de te imaginar com outra profissão. E não consigo.

ASR – Queres uma dica? Imagina-me polícia à paisana. Acho que foi das primeiras coisas que me lembro de em puto querer ser quando fosse grande, como se costuma dizer. Lembro-me do meu pai me apontar algumas vezes uns tipos, de ar discreto, de poucas falas, que apareciam lá na terra. “Olha, lá andam estes à caça do contrabando. Fixa-lhes as caras, porque nunca se sabe o dia de amanhã.”, dizia-me ele, ainda a resmungar algumas coisas lá para os seus botões, que eu não chegava já a entender. Só depois, se o ouvisse a falar com o meu tio, ou com algum vizinho – “a guarda anda por aí a meter o nariz”, “vasculhem aí, seus filhos da puta, o que vocês querem não hão-de encontrar nem que tivessem focinho de cão”. E eu ficava com a ideia que aquilo era assunto sério. Imaginei-me depois muitas vezes, já maiorzinho, a entrar numa aldeia, e a ser o alvo de comentários assim, de quem caga doutorices mas que o tem mais pequeno que o buraco de uma agulha. E vê tu onde cheguei! Às mesas, de saca-rolhas e caneta no bolso. Bem, é capaz de ter sido melhor assim.

RE – Foi com toda a certeza, senão em vez de te ir eu ver à prisão, se tivesses encontrado o outro filho da mãe, eras tu que me ias de vez em quando interrogar espremer para me sacar algum nome ou alguma informação que metesses na ideia que eu tivesse.

ASR – E toda esta conversa teria sido ao contrário.

RE – Com a diferença de que tu não sais todo negro daqui.

ASR – Por falar em sair... Já escureceu, já viste? Tenho de ir andando, se por ti não quiseres perguntar mais nada. Disse em casa que durante esta folga ia a uma entrevista, e ficaram a pensar que era para tentar mudar de emprego (ri-se). De polícia à paisana para empregado de mesa... se continuasse à procura ainda acabava a fazer entrevistas como tu a gajos como eu! (rimo-nos muito, enquanto nos levantamos para pagar)

RE – Obrigado pela tarde de folga que te fiz desperdiçar.

ASR – Deixa lá, não é todos os dias que alguém está sentado à mesa de um café este tempo todo só para me ouvir falar. Obrigado.