segunda-feira, abril 24, 2006

xxxi

na escuridão da verdade a morte é feita de luzeiros doces.

jan.26.MMVI

xxv

a rosa é um ritual estranho à felicidade
a rosa não é a flor nem o relâmpago dos sentidos todos
a rosa mentiu ao tempo
a rosa deixa no branco a impureza do destino impermeável à dor
a rosa escorre em latejos de pavor rubro
a rosa deita-se ao lado do outro e adormece longe
a rosa foi um poema

jan.19.MMVI

sábado, abril 22, 2006

#5

por exemplo, o cheiro a resina, o sabor a pão de deus com queijo, o cheiro a mofo, o sabor a castanhas piladas, a textura do molotof, o cheiro a ontem, o sabor de hoje, a textura do vazio.
por exemplo, o cheiro a resina, o jogo colorido sobre a caruma, o plástico em argolas, os cinco pinos com as cores respectivas, o lilás ao centro, o verde, o amarelo, o rosa, o azul, norte, sul, este, oeste, o lilás ao centro, eu.
por exemplo, o cheiro a fritos, a melancia, a resina, o sabor dos rissóis, das castanhas piladas, o cheiro a lilás, os gritos de crianças que brincam, que brincam e gritam porque brincam e gritam se não brincam, cheiro dos gritos a crianças que são estúpidas até que a idade as torne ainda mais crianças ou ainda mais estúpidas.
por exemplo, as conversas sem assunto e a cor das conversas que cheiram a nomes que ecoam entre os pinheiros, nomes de ontem, pinheiros de hoje com o cheiro dos nomes a ecoar entre os gritos e as conversas sem assunto.
por exemplo, o cheiro a mar que não há, o sabor do beijo que se esqueceu, a textura do tempo de mil folhas.

iv.21.MMVI

quinta-feira, abril 20, 2006

xvi

não há socalcos já dentro de ti.
ficaste pleno, plano, belo.
eras o verde irregular, de timbre em timbre, de tom em tom.
esqueceste a gradação e ficaste limpo, impuro, vivo.
os traçados da pele calejada pelo ócio desfiguram a tua não-idade.
és o tempo que se estendeu como manto sobre virgem.
o tempo é-te a própria virgindade.
perdeste o tempo estriado em esperança.
não há socalcos já no teu olhar.

jan.01.MMVI

quarta-feira, abril 19, 2006

xxxiv

esventrar deus não o derrubou da irrealidade
abaixo. não é vocabulário que saiba decifrar
e deus só está sujeito à sua hermenêutica pessoal
(no que de pessoal aqui fosse razoável aceitar)

mar.15.MMVI

domingo, abril 16, 2006

xxxiii

perduram dentro do ventre opaco e doce
memórias líquidas
resquícios permanentes de tempo
de que tempo?
flagrante é o não-sentido
nenhuma verdade se deixa reconhecer ao espelho
de que tempo?
resquícios de um futuro que o presente renuncia
a realidade está prenhe de mim
e deambulo sobre toda a água do mundo
menos sobre aquela que escorre nas sílabas
e nos acordes em suspensão
de que tempo?

fev.06.MMVI

quinta-feira, abril 13, 2006

#4


por exemplo, um delírio, um velório, um veleiro ao vento, um vislumbre de ti que inebria, um velório? que inebria? um vislumbre de ti que inebria. por exemplo, um quadro mal pintado, um vestígio de desejo, um vagido imaginado, um dia vital. um funeral? um dia que inebria? um vestígio de desejo. por exemplo, um sorriso disfarçado, uma paixão fora do tempo, um deus que morreu, um enterro? um deus que inebria? um sorriso disfarçado. por exemplo, uma cama na praia desnudada p’lo mar, um pinheiro derrubado num sonho antigo, uma queda, uma morte? inebriante? uma cama antiga num sonho derrubado. por exemplo, um nenúfar que não se pintou, um perfume misturado com maresia, uma pétala de mármore cinzelada com uma pena, uma pétala caída? inebriada por um poema? um perfume de mármore sobre a água calada. por exemplo, uma sinfonia por escrever, um cantar luminoso, um toque de harpa sobre o manto de silêncio da noite, um piar de corvos, de abutres? inebriante morbidez? silêncio por escrever na luz. por exemplo, um amor. por exemplo, uma eternidade.

iv.13.MMVI

segunda-feira, abril 10, 2006

#3

por exemplo, aqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio, pose de bailarinos decadentes, lentos, nostálgicos de um tempo glorioso que não existiu.
por vezes a memória do mundo falha ao seleccionar o menos real do passado e fazer dessa invenção inconsciente o paradigma do devir pessoal e histórico. por exemplo, aqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio não remetem para a ovação do fim do espectáculo, não fazem fechar os olhos pela saudade do sentimento de omnipotência que tinha ao voar sobre o linóleo preto de encontro aos braços seguros dele, não. aqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio são a própria ausência desse passado. a decrepitude do que não chegou a passar de um sonho feito mentira da vida a si mesma.
ele nunca olhou para este velho mesmo quando não era velho. ele não recebeu o meu voo quando eu era talvez até capaz de me dispersar pelo ar com o suor como chuva. ele não soube sequer que eu um dia quis ser bailarino. sou um velho. tenho oitenta e dois anos, quase oitenta e três, e aqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio não chegam sequer a ser um riso de escárnio pela mentira que agora renuncio.
sou infeliz. como sempre fui. e se nunca duvidei disso quando o via lançar-se, ele sim, no espaço infinito do palco, não vou duvidar agora da evidência da infelicidade de não poder ver o meu sonho naqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio.

iv.10.MMVI

sexta-feira, abril 07, 2006

#2

por exemplo, lembro com uma espécie de prazer estranho e viscoso o sabor do sangue ainda quente. e a desilusão perante a cor que ganhou ao secar, nada harmoniosa com a imagem mental associada ao sabor. não é imediato que se trate de um prazer sequer, falta de imediatez essa afinal que acontece com frequência em todas as memórias, ainda mais as sensoriais. mas não era também um sangue qualquer. uma vida que se tira é um rito de passagem. como a segunda vida que se habita. como a última luz que é contemplada. são ritos subliminares à existência e frustram qualquer tentativa de análise moral.
não me lembro por exemplo do nome dele. e sei que o soube. não matei nunca ninguém de quem não fosse íntima. no sentido mais visceral do termo (se bem que visceral adquiriu em mim ao longo destes séculos conotações múltiplas).
mas lembro-me por exemplo do perfume que ele usava nessa noite. sei que não foi fácil resistir à tentação de o poupar. a hesitação começou exactamente pelo perfume. não por desejar que ele vivesse mais tempo. não por permitir que me assolasse qualquer impedimento de ordem mundana ou racional. matá-lo-ia de qualquer forma, e beberia o sangue a seguir, como aconteceu. a hesitação percorreu-me o corpo, e não a mente. o perfume viciou-me os sentidos. deixei por instantes de viver antecipadamente o prazer do néctar rubro. desejei poder prolongar aquele quê de místico, porque aquele aroma tinha em mim mais de duzentos anos. não podia imaginar voltar a quebrar o ímpeto por tão pouco. mas a sede e a luxúria da morte é sempre maior.
bebi. li um dia que existiram em tempos no imaginário popular europeu alguns seres, vampiros, como lhes chamavam, que ficaram conhecidos por prazeres e necessidades tão próximas das minhas que percorro a minha memória em busca da noite em que teria devorado algum. e não encontro uma única ocasião em que se instale sequer a dúvida.
não existem vampiros.

iv.07.MMVI

quarta-feira, abril 05, 2006

#1

por exemplo, um recanto escuro numa oficina. um carro sobre suportes de madeira. sapatas. barrotes que são rodas postiças. portas que são biombos afinal. mesmo sem vidros. descarnadas. mais nuas que camas de ferro forjado. as portas da frente tão ausentes que o carro parece assim ter sido sempre. coxo. ou melhor, louco. não se vê daqui, mas o motor também não habita lá à frente. a língua de fora do capôt aberto esconde essa miséria humilhante em que se torna aquele espaço oco do motor que abandonou o corpo. como se fosse, não sendo, a alma. o motor não é a alma do carro. a alma do carro é aquele corpo nu, de pernas abertas como se a atitude mais natural de uma mulher fosse despir-se sem palavras, abrir as pernas afastando as cuecas ligeiramente para o lado, com ar de naughty girl, a tocar o teu sexo com os olhos lampejantes. o cheiro a óleo e a diluente é chanel de que só ouviste o nome mas que é já extasiante só de nomear. nada seria tão excitante se as cuecas e as mãos e os olhos e o corpo atrás do biombo das portas sem vidros atrás do capôt aberto de desejo o cheiro a óleo e diluente a inebriar e a iludir e o papel colorido e brilhante apesar de sujo de nódoas várias a já não parecer papel brilhante nem outro papel qualquer mas uma pele sedosa e perfumada, naughty girl, tua, só para ti, querido, toda, um dia quando já não tiveres onze anos salto do papel para fora e vais saber o que se esconde de mais viciante ainda por detrás da nudez

iii.29.MMVI

domingo, abril 02, 2006

xxxv

a beleza não é poliglota. o próprio murmúrio que faz
ao acordar é universal sem precisar de língua materna. aliás,
a beleza não tem sequer um código que chame a si mesmo
um batalhão de interpretações . a beleza quando nasce
é imediatamente deus.

mar.22.MMVI