quinta-feira, abril 21, 2005

o velho paradoxo

Equilibrar a vida como ponta de cigarro. Quanto maior o prazer da aspiração saborosa de índole melancólica e triste, mais perto do filtro e do cinzeiro, mais frágil o balancear do cinzento ainda agora rubro, mais precária a expectativa de rever as volutas de fumo no ar já saturado. Pelo caminho cronológico dos dias, também a alma adquire a exaustão de um bar de putas, de um salão de bilhar depois da meia-noite, de uma sala de jogo clandestino roubada a um filme a preto e branco. Também o espírito ardente de sapiência latejante se definha no segundo seguinte, na década que se avizinha, no último dia, com a força morta do seu próprio ilusionismo. E a paixão, ah, a paixão, essa mata-hari de todos os declives existenciais...
Sem a hipótese do livre arbítrio quanto ao ter acendido esse cigarro, não poder dizer à partida “não, obrigado, eu não vivo”, como vencer a tentação de lamentar o poder do seu sabor ao preço que o tempo cobra?
Haverá vida de enrolar em mortalha? Existência de rapé? O que será um cachimbo? O próprio mundo que aguarda a erva aromática do nosso sangue, da nossa mente? Para desfrute de que fumador compulsivo?

Abr.02.MMV

(in a geometria da inexistência)

segunda-feira, abril 18, 2005

ex-libris da tugosfera

Foi pela mão da Moriana que a iniciativa chegou até mim. Não consigo já descrever o percurso anterior desde a inicial ideia. Sei que me deu prazer passar o testemunho também. Aqui fica a minha contribuição para este "levantamento bio-bibliográfico tugosférico"

_______


Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?

Um livro em branco aos olhos do poder – um poema para os despertos.

Já alguma vez ficaste apanhadinha(o) por um personagem de ficção?

Desejei muito que a Agnés da “Imortalidade” existisse de facto. Não me apaixonei por ela, mas pelo que o Kundera nela viu. “Adriano” passou a significar algo de muito intenso depois da Yourcenar. Clarissa, Laura e Virginia, marcaram, colorindo, um olhar sobre A Mulher pela mão de Cunningham.

Qual foi o último livro que compraste?

Casa na Duna, de Carlos de Oliveira; A Mancha Humana, de Philip Roth; Camões: Labirintos e Fascínios, de Aguiar e Silva

Qual o último livro que leste?

Os Demónios de Kraven, de Alan Isler

Que livros estás a ler?

Casos do Beco das Sardinheiras, de Mário de Carvalho; Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro; Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco; A Vaga de Calor, de Urbano Tavares Rodrigues; Granta nº 87; Discurso da Narrativa, de Gérard Genette; O Rei, o Sábio e o Bobo, de Shafique Keshavjee; A Angústia da Influência, de Harold Bloom;...

Que livros (5) levarias para uma ilha deserta?

1) A poesia e a ficção de Jorge Luis Borges, a poesia de Pedro Tamen (e, quem sabe, a sua tradução de Proust, dado o tempo que provavelmente teria), a poesia de Al Berto.

2) As Cidades Invisíveis, e demais fantasias de Italo Calvino (devia haver edições com a obra completa num só volume para o caso de emergências como esta).

3) Os romances do Umberto Eco, para reler um após outro (acho que escondia os Limites da Interpretação no meio dos romances).

4) O Ser e o Nada do Sartre, Ser e Tempo do Heidegger, Verdade e Método do Gadamer, Investigações Filosóficas do Wittgenstein e Diferença e Repetição do Deleuze, preencheriam com toda a certeza as horas mais longas.

5) Cadernos em branco, para expandir os livros que levasse para outras páginas, para outros sonhos.


A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?

À Azul, pela cumplicidade de tantas leituras, pela partilha de tantas ideias, pelo fascínio de tantos anos.

À Helena, pela empatia das palavras que lhe leio, pela beleza e profundidade do que nos comunica.

Ao Alexandre, que nos leva com ele para tantos recantos do mundo, como livros para uma ilha deserta.

sexta-feira, abril 15, 2005

díptico para Deus - harmonia celeste

II
Ufano na solidão
em que me defino
sem definhar ao
castigo que clamaste
no momento ímpar
da sóbria separação,
escorro angústia
ao invés de sal
pelas órbitas
insanas, irreais;
mas é contudo
alegria revolta
paz insatisfeita
que se esvai de mim
assim, neste fluir
escuro por que me
tentas a voltar.

Numa ilha sem ti
rodeado de ti só
alcanço o limite
o cume a franja
do sentido da tua
ausência incerta;
e mascaro de fome
o sabor a nada,
e digo sequioso
quando trago
voluptuosamente
afinal o néctar
o sangue esperma
teu e de todos os
corpos que aceitas.

O nome é então
o que resta do verbo
e o som do estertor
é tempestade que
ressoa já na minha
inexistência triunfal;
o poder é o nome
do som inexistente,
a dor do espírito
que não sente já
o peso da tua mão
a afagar-me sem dó.

quinta-feira, abril 14, 2005

retrato esboçado ao luar



não é a morte mais silente
que o dia sem ti

nem a noite imponente deslumbre maior
que o céu que dorme nos teus braços

nem o mar véu mais puro
que a tua pele nua

24.01.04
(in horizontes de ouro, 2004)

sábado, abril 02, 2005

XII

adio a verdadeira auto-revelação feita escrita
lúgubre sobre o que intuo me invadir derradeiramente.
sei a cor do débil apagar de todas as velas e
comprometo a minha inteligência em cada olhar
sorridente sobre um poema assinado – prova irrefutável
da sede de paz enganadora e triste. adio o afecto
que adivinho nascer nesse momento em que convergem
as fés e as descrenças, em que brilha o sol
e a lua simultaneamente, em que caem as estrelas
duas a duas (porque o mal se partilha também no
universo inerte). adio o deslumbramento doloroso, não
por parca audácia mas por me quedar a olhar demasiado
tempo o rio de águas paradas (translúcidas, porém) da
vida que me banha.

27.05.03

(in o mundo e um pouco mais, 2003)

indícios de nós

Corpo nome memória
o espaço que as palavras deixam escorrer
por entre as respirações. Talvez
angústiaéotraçodoesboçodenósquenãoconsenteplenitude
se perfile na consciência como um exército contra
o sentido perdido. Memória tempo pulsação
cada vez mais vida a viver-se fora de nós. Todos os sinais
da nossa presença soam a rufos de circo
TRRRrrrrrrrrrrrrrrrrrLadiesAndGentlemenrrrrrrrrrrrr
rrrrrrrrrrrrrrrrParaTodosVósrrrrrrrrrrrrrrr
rrrrrODerradeirorrrrrrrrrrrEstertorRRRRRRRTCHSSSHHhhh...
Pulsação ritmo eternidade

Abr.01.MMV

(in a geometria da inexistência)

díptico para Deus - harmonia celeste

I

Pedes-me cinco sons
e os sentidos parecem
não ser capaz de evocar
um acorde temperado;
não consigo aniquilar
o ruído das preces
o arrulho de dores
da fé, a rugosidade
de tudo, a finitude.

Dou-te o medo, o
desajeitado medo de
quase nada, para que
com o branco brinques;
a cor do teu abraço
é escura já demais
para o vento que dizes
colher na túnica
dos profetas cegos.

Exiges o grito incerto
e não afino no parcial
harmónico que te doa,
que te quebre, magoe.

Cerras-me os olhos
com a força convicta
da unidade demiúrgica
com que os abriras;
esqueces a promessa
do infinito escuro
contido no deserto
em que as lágrimas
se vertem, desaguam.

Abro a garganta no
silêncio simulado
da oração hipócrita
com que te desgosto;
invoco todos os nomes
de impossibilidades
que te anunciem a dor
com que sucumbo
à realidade sem nós.

(in livro xiii)

Nota: este díptico, ainda em elaboração, de que é agora apresentada o primeiro poema da primeira parte, fechará o volume livro xiii, em contraponto com o tríptico para o Diabo que o tinha encetado, e que pode ser consultado nos arquivos.
r.e.

(dia 24 de junho, 2028)

IV


Levanto-me e a manhã sabe-me a cinza, a pó. Talvez seja da madeira do chão, do tecto, ou apenas de mim. Tenho frio. Ouço passos; estou sozinho. Ouço passos novamente. Sobre a cadeira a roupa remexe-se desalinhada, como que acordada de um sonho em que vestia um príncipe. Os passos eram dele, e agora que saiu, ajudo a roupa a encontrar-se consigo mesma, vestindo-a no meu corpo.
Olho para a janela fechada e penso vagamente na hipótese de nada existir para além dela... nem sequer o vazio. Aproximo-me da porta e esta limitação espacial irrita-me. Preferia Ser sem Espaço, ou pelo menos sem Forma, o que já seria suficientemente delimitador. Com um sorriso, ironicamente, a porta convida-me a sair ...
Aceito.
No corredor a ausência de plantas surpreende-me.
Regresso e penso ...