quarta-feira, dezembro 28, 2005

VIII

a poesia sempre foi ébria. minto. a poesia era o puro álcool até se estatelar
no chão como vidro barato. era o vaso antigo
e julgava-se o néctar.
de que se imaginava então ébria a poesia... ébria
de sentido, talvez. o poeta, estalajadeiro insensato, deixou dormir incautamente as palavras, e o vinho adocicado do lirismo embalou-as a contragosto
numa dança vital mas deprimente. as palavras não se suportam já
umas às outras. enojam-se. vomitam-se.
o poema escurece
nas mãos de bagaço que o sentido exala. o poeta é mórbido na indiferença.
vende o sentido em promessas de delírio, êxtase, sonho. e a poesia
que lembra a sobriedade perdida do tempo puro
começa a chorar. e são rimas as lágrimas que recordam. e pé métrico é o ranho que assoa ao lenço branco do papel pautado. a poesia queria recuperar a inocência mas o seu sangue tem mais sentido do que alguma vez julgou possível absorver. o poeta sorri maliciosamente. como se a bebedeira
das palavras fizesse de si um ser mais sóbrio, mais lúcido, menos conspurcado pela sede de saber e criar. a poesia quebrou-se, contudo, porque era frágil e efémera. o sentido não estava dentro do verso. mas envolvia-o como um manto, como uma redoma, como um abraço fraterno. quebrou-se
ao cair no chão real. quebrou-se pela luz de soprano agudo do dia claro.
partiu-se pela própria consciência da sua fragilidade. o poeta não sabe chorar esta perda. o poeta disfarça a dor que o esmaga. sorri, como se sorri num funeral, exorcizando o pavor e o nojo da evidência. as palavras quedam-se, mudas, numa miríade de pérolas sujas pela lama da realidade, depois do inverno ontológico que as nevou.
nevam palavras sobre os estilhaços ainda. como uma corrente que não se extingue, com um fogo que não seca. o lirismo todo dentro dos verbos e dos nomes de tudo, evaporou-se no hálito de uma estrofe grotesca.

desfilam pelo delírio fora animais marinhos, monstros da infância com as caras mais conhecidas. há uma palavra que cheira a jeropiga, avó.
e os teus olhos são outras palavras que as lentes grossas fazem dizer
farol morcego lampião espanto medo lucidez menina carapaus maçã trapos tristeza ternura quase amor
quase tanto que ainda foge
por detrás das lentes grossas que fazem os olhos dizer
tanta coisa. e de certeza que a tua conversa com a morte foi cheia de palavras ébrias de sentido. ninguém está sóbrio quando fala
com a morte. só quando se fala da morte.

que poeta vendeu às palavras o sentido da tua morte
os teus olhos eloquentes por detrás da aparente cegueira quedaram-se
como ventos dentro de ti, como ar dentro das flores, como sílabas no chão de nada. pensei que falava de palavras e falava de ti, ‘vó. como são as coisas...
se calhar também falavas de ti quando pensávamos que confundias
as personagens das novelas da manhã com as da noite. ou quando parecias falar com alguém de outro tempo. ou quando não dizias nada.
o teu silêncio era o teu nome, não era o adormecimento dos afectos. eras tu
a desfiar a tua solidão em lençóis de faltas de perdas de esquecimentos.
não sei porque é que as palavras ébrias se transformaram sem que eu quisesse na tua tristeza, no teu sonho enjeitado. não sei. talvez não estivesse a falar de ti, afinal, mas do que aprendi com a tua morte. do que aprendi quando morreu a tua casa. a minha casa que morreu contigo. quebraste-te
em migalhas pintadas de ruindade e deixaste a marca indelével da ternura
no coração das minhas palavras. e não provaste nunca
o sabor inebriante da poesia.
ou talvez a prova de que o tenhas feito sejam as palavras que fizeste nascer aqui no meio do sentido das que chamo minhas.

dez.10.MMV

quinta-feira, dezembro 22, 2005

II

por quanto tempo mais dormirás

quando o vento embater no escuro será
de dia como é dia a noite para o
reverso das pétalas das flores que fogem
do olhar da coruja artista pintora da
perspectiva aérea dos vultos dos telhados e
dos sonhos deitados fora pela ignorância

é banal a inquietude gratuita que
exibe vergonhosamente um preço falso
para fugir aos impostos que o tempo
cobra até aos menos aventureiros
e vulgar é o refúgio na confissão
da derrota, da desistência, da modesta
entrega nas mãos da dor inocente

quando tu morreres não será dia
nem poderei mentir mais sem
beber o tempo com a sabor a mofo
nem alterar o meu desejo de
morrer antes de ti para ti por ti

não será possível escapar à medíocre
vulgaridade da dor à paralisia
estereotipada da ausência da náusea
do nojo de tudo o que respirar
ainda em mim, de todo o pulsar
de todo o rugir marulhante do
sangue insensível e louco

quanto durará a minha vigília

os prédios parecem ter tanta gente
lá dentro, e nos passeios à volta,
a trabalhar, a foder, a criar, a fingir
uma vida dentro e fora dos prédios
que num segundo se podem tornar
tijolo só, pó compactado, destroços
num naufrágio fantasma, sem mais
mortes a anunciar que não a nossa

o teu sono é o meu respirar
noite em ti que aqui emerge luz

ao acordares o vento terá na voz
um nome novo para nós, e as
flores não irão cheirar a nada mais
para além do nome que já tinham

será ensurdecedor adormecer assim
com os gritos dos nomes de tudo o
que ainda existir sem ti

amo-te não rimará com mais
nada
e o poema adormece

nov.23.MMV

domingo, dezembro 18, 2005

sem título

sem título, 2005
carvão comprimido
s/ papel Clairefontaine, 180 g (27,2x40cm)
tu não vieste
e a sede de ti
fez-se leito de
alguma parte
do meu desejo

quarta-feira, dezembro 14, 2005

III

não tenho na boca o sabor dos abrunhos
mas tenho o nome dela gravado sob a
imagem das suas pernas nuas, de infanta,
maria-rapaz, menina viril e forte,
pernas arranhadas pela pele áspera do
abrunheiro velho, pernas que as minhas
mãos desenham no branco do desejo sem
nome ainda, mas com sabor já,
diferente do sabor dos abrunhos maduros
de que perdi o rasto dentro da minha boca

o sexo não é este sexo, nem pulsa
ao ritmo da evidência, nem geme ao
som do silêncio de uma boca que
absorve o travo acre do fruto virgem,
nem se atravessa à frente do próprio
desejo, nem consome a angústia em
amplexos mais amplos que o gesto
que o faz nascer, que o faz morrer
como quem nasce, ou ao contrário -
distinção que o sexo não conhece

desaparece da boca a sede quando
a volúpia inocente chega para brincar,
e não são dedos os dedos – os olhos
com que as mãos cantam alto os
contornos do outro corpo antes de
ouvirem falar a língua do sexo mudo
- como não são seios as colinas trémulas
moldadas em artes de oleiro sem
mestre, pelas palmas das mãos que
asfixiam numa ansiedade adocicada

a infância eram palavras que enchiam
o desejo todo, e fotografias interditas
que o espalhavam ao longo das
horas oníricas entre instantes de
líbido acesa pela incógnita do possível;
eram palavras mais do que os corpos
ou as partes dos corpos que descreviam;
eram a própria essência da pulsão vil
e torpe enclausurada em sílabas soltas
e solta na palavra gemida, gritada

tenho na boca os sabores todos
nos nomes e nas formas decifradas
no escuro ou na luz viva e inocente
da memória frágil que se apaga a cada
aroma a cada cor, devolvidos p’lo tempo
ao fundo branco do espírito que
absorveu o sentido dos impulsos em
golfadas de vida suspensa entre
ritos e sonhos, entre margens cheias
do mesmo sangue, outro ar, sempre


dez.03.MMV

sexta-feira, dezembro 09, 2005

I


há um lugar onde as flores não têm nome
flores não é o seu nome
flores não é o que o vento sopra
os beijos do vento cantam na nossa língua
a nossa surdez faz-nos duvidar do amor do vento
traduzimos a ignorância em nomes para as flores


nov.22.MMV

segunda-feira, dezembro 05, 2005

VI

ou a influência íntima do azul

não há palavras gigantes nem sonhos de nylon
vir é sinónimo de ter sido como um gato o é da melancolia
e todos os felinos sabem cair
senão for a eternidade, outro sabor exibirá o troféu
sobre o gosto e a diagonal dos membros desarticulados
em circunvoluções cerebrais pintadas a acrílico sobre
um fundo negro e denso de ópio em flor

os ramos nus das cigarras despertas pelo
pincel de dali soam a mel, e o sentido das sentenças
é desenhado a sanguina real, como os brasões ilustram
no fogo de cobre hipócrita e snob, qualidades polvilhadas como
farinha amparo sobre aristocratas de flanela e morais de plasticina

dez.05.MMV