domingo, maio 28, 2006

16

os corpos cantam
de memória já
a melopeia agreste
da procura fremente
um do outro

noite cheia
se envolvem sem
nostalgia nas mãos
e nos dedos apenas
desejos de travessia

mistura-se no
escuro o escuro dos
teus olhos com o das
roupas sobre o nosso
sono inquieto

retomamos a rota do
sonho interrompido
mas com o sabor
agri-doce da manhã
real que nos rapta

27.05.03
(in um barco de papel para Afrodite, 2003)

quarta-feira, maio 24, 2006

(dia 21 de novembro, 2048)


I

“Ich bin der Welt abhanden gekommen”
(Friedrich Rückert)


Longe, envolto em brumas, mais do que pude imaginar-te, criei-te.
Revejo-te nessa memória que dizes do futuro por me preveres cá atrás, bem longe do teu entendimento. Estranho ao mundo também ... na ausência do poder ... do sentir.
Mais do que possas um dia conceber, no fundo das pessoas reside sempre a angústia acalentadora de existirem sem vida, sem nada, mas também a ilusão comicamente tocante de nunca deixarem de pensar que essa é uma condição instável de que a humanidade se livrará escrevendo, criando mundos em que ...

Longe, envolto em brumas...
... criei mundos em que não morri antes de saber escrever o que era a morte. E tu, executor desse sonho, tentas vislumbrar-me absurdamente, não compreendendo... ou não aceitando...

quinta-feira, maio 11, 2006

# 6

Por exemplo, um lugarejo escondido fora do mapa, um cheiro a estrume que encanta e inebria porque é infância perdida de novo, as ervas altas a emoldurar as papoilas cobrem o horizonte quando nos sentamos no chão. Por exemplo, um melro, não... uma arvela ou um arvelim sedento, num piar de nostalgia, de saudades de mim, de ti, do tempo em que os matávamos com carinho. Nojo.
Os pequenos pescoços torcidos no torno invencível dos nós dos dedos num estrangular delicioso. Por exemplo, a veneração que protege inexplicavelmente as andorinhas, essas não, que são as galinhas de nossa senhora, argumento de deitar as mãos à cabeça agora e que tinha a força da profecia então, se matares uma andorinha, a primavera pode não acabar, mas farás nossa senhora chorar. Isso não. Mata antes uma carriça para treinar a pontaria ou um tordo, troféu miserável. Po exemplo, um cheiro, não a estrume já, mas a sangue. Sangue seco. Nos dedos pintados pelas penas inertes e ensopadas. O sangue que se saboreia como prova da conquista estúpida. Orgulho de estupor. Vergonha até a memória doer e ir embora chorar e limpar as lágrimas a uma parra qualquer.

v.10.MMVI

domingo, maio 07, 2006

quatro rimas perdidas


I
ontem não choveu
mas nos barrancos e nas encostas
dilataram-se pedras e rios

II
ruíram muros ancestrais
nas vizinhas planuras -
animais em fuga (já mortas as sombras)

III
sem gotas de água
caíram em aromas a pureza e a morte
sobre os limites do verde triste

IV
de longe vi o que pude,
aqui escrevo agora (invento)
o canto amargo do silêncio.
18.05.02

(in prosa perdida, 2002)

sexta-feira, maio 05, 2006

13

minha boca
perdida num
vale de joelhos
escarpados
naufrágio na
tentação

para lá do deserto
ventre duna
um oásis salgado
quente ilusão
húmida

25.05.03
(in um barco de papel para Afrodite, 2003)

segunda-feira, maio 01, 2006

xxvi

espernear é grito cómico. há até o delírio de espaço
como se as pernas alcançassem o éter e rebentassem de riso.
palhaços. mágicos sem jeito.

jan.20.MMVI