quinta-feira, dezembro 28, 2006

2º andamento

II

a manhã verte lume
no coração do medo (inóquo
e misterioso) de
um dia mais vazio
que o último.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

#16

por exemplo, caía uma árvore sem razão e deus ria-se. de quê?, ninguém se atrevia a saber; saberia-o a árvore se tivesse de o confessar, mas a solidão era um estigma silente. vinhas ao longe... não! já não vinhas. eram imagens, por exemplo, miragens, talvez, imaginário podre e incerto. por exemplo, a chuva suspendia o gesto hiperbólico e sorria no ar. não! deus não se ria agora. só o ser humano se ria da morte. deus só se ria da ordem do mundo, por exemplo, e da perfeição. aplanavam-se as colinas em forma de mulher robusta e deus corava. a memória de deus não era infinita mas pouco faltava para poder nomear todos os corpos esculpidos na orografia terrestre, por exemplo, ou cada um dos recantos sumptuosos e idílicos do fundo do mar. inundavam-se os recessos da alma com correntes de pensamentos livres e deus morria. verdejavam no labirinto verde do espírito ideias de mundos possíveis e deus morria. orvalhavam-se as manhãs da mente em gotas de futuro límpido e deus morria. não! o homem nunca se ria da morte de deus.

xii.09.MMVI

quinta-feira, dezembro 14, 2006

2º andamento

I

afastou-se o mar
de encontro a nós
(de pedra
frágil e inerte -
lágrimas de fora
para dentro do
cansaço)

quinta-feira, dezembro 07, 2006

#15

por exemplo, não ter medo de amar. não ter vergonha de morrer, nem ficar confuso com a incerteza. por exemplo, não ter sequer incertezas e só aceitar dentro de si o que já deixou de se poder perder - o falso e o definitivo. por exemplo, ir atrás do tempo buscar a forma das coisas, ou enterrar debaixo da solidão o terror claustrofóbico de ficar fechado neste universo apertado. por exemplo, gritar bem alto o nome que temos hoje, deixar que alguém se volte e nos olhe de frente, nós próprios, num espelho que não existe, pelo menos fora do desejo intrínseco ao próprio existir. por exemplo, não ter receio de não ser único, não ter pudor em revelar-se banal e desinteressante, imensamente inconsequente, até frívolo e fútil, quem sabe se não cruel e pérfido até, ou, por exemplo, ser a própria vileza e maldade atroz personificada fora dos pesadelos. não ter ambições morais, ou esperanças sociais, nem dúvidas religiosas, ou remorsos artificiais, nem mesmo convicções existenciais e ainda menos crenças ideológicas. por exemplo, não ter medo de amar - entregar toda a pele, todo o sangue, toda a dor, todo o ar, todo o sofrimento, a vida e mais um pouco, ao labirinto dos afectos inquebrantáveis.

xii.05.MMVI

colapso


desapareci
no labirinto em estado líquido de uma alma em chamas frias

24.08.02

(in prosa perdida, 2002)

quinta-feira, novembro 30, 2006

#14

por exemplo, uma ladeira coberta de outro verde, molhado de lágrimas da noite, íngreme como apetece à aventura, nem demais nem de menos, perfeita para, por exemplo, correr e só parar no asfalto, rebolar até as costas de encontro às silvas, escorregar até o carrinho de rolamentos se voltar ao contrário, para gáudio de todos, principalmente do condutor feliz. por exemplo, um muro, alto como todos os muros eleitos para o risco, alto e estreito, irregular, mágico pelo esconderijo que oferece às lagartixas, deusas para quem se rasteja de calças rotas pelo chão que os ratos pisam de madrugada e que as velhas pisam de manhã cedo quando vão à praça. por exemplo, uma cave aberta ao vento que silva rente ao solo, mas fechada à invasão dos miúdos pela imponente escuridão que são braços de mãos esticadas e negras; que são milhões de morcegos, se calhar mais, a povoar qualquer pesadelo que se preze, especialmente os da vigília; que são, por exemplo, corpos atraentes por estarem nus e aterradores por estarem mortos; uma cave que sobrevive à curiosidade de uma geração ou duas, e onde todos juram um dia lá ter entrado, heróis por dois segundos, até a bazófia ser desmascarada pela sabedoria céptica do grupo. por exemplo, uma oração, uma invocação ao diabo, um ritual, por exemplo, pedras que afinal se mexeram, delírio de medo na fuga do destino que nesse dia se traçou irreversivelmente, sem que nem sequer eu o adivinhasse.

xi.30.MMVI

segunda-feira, novembro 27, 2006

audrey




também nas árvores a imponência
nasce em tons de verde
que lembram mais a leveza
que o poder. também no mar
existe o perigo de nos afundarmos
como no infinito de um olhar.
é também de mistério que fala
o vento quando embate
num sussurro que desperta e atrai.
uma fotografia assim é como a
escuta impossível do mistério
do vento que embala
o verde majestoso que
impele ao abismo profundo
que o mar anuncia.

uma fotografia é apenas e
tanto mais que isso

terça-feira, novembro 21, 2006

# 13

por exemplo, quando chove no coração e é sempre inverno em nós, ou o tempo desliza para fora da pele e somos suspensão sem atrito nem massa, sem matéria nem corpo, sem nome nem traço distintivo, por exemplo, quando o próprio pronome pessoal nos repele e se recusa a sublinhar uma qualquer identidade, ou melhor, uma qualquer alteridade. por exemplo, um apelido sem ascendência, uma herança sem herdeiros, uma ponte sem quaisquer margens, um rio sem foz e de nascente incerta, maré sem direcção, leito sem curso, seco como o coração dos outros, que Agostinho dizia ser sempre de noite para nós, e afinal é sempre verão sem a chuva que atola as planícies do nosso. por exemplo, quando não estamos já no lugar onde o olhar de alguém repousa, quando a voz que emitimos percorre o labirinto do mundo, e regressa à nossa solidão, intacta como antes da primeira vogal, por exemplo, ou como no próprio instante do nascimento do desejo de ser fala, discurso, viagem, travessia aos antípodas de nós, sem o risco da estranheza nem o sorriso do reconhecimento.

xi.21.MMVI

segunda-feira, novembro 13, 2006

contos inconjuntos

III

Dezembro amanhecia.
Levantou-se apenas para ir à casa de banho e voltou para dentro da cama. A noite e o quente refugiavam-se dentro do quarto, por detrás das gelosias fechadas, dentro dos lençóis, contra a teimosia do frio lá fora. O Vasco já havia saído há algumas horas, ainda no ventre da madrugada, mas Margarida acordou só com o tique-taque da bexiga, ou com o chamamento do próprio dia. Dezembro amanhecia mas não era para ela por agora. Agarrou-se à almofada do lado, menos quente já mas ainda acolhedora. O cheiro da noite era inebriante. O sonho interrompido tentava invadir a luz emergente e devolver Margarida à penumbra dos desejos transfigurados – em menos de dez minutos ela dormia de novo, estátua sob o manto, a respirar suavemente.
Acordou e dirigiu-se à casa de banho outra vez, com a leve sensação de que algo se repetia infinitamente naquela manhã, afinal em tudo igual às outras. De caminho, em bicos de pés, viu-se fugidia no espelho do quarto, e murmurou um bom dia sorridente, por debaixo da máscara de sono que ainda lhe ocultava as feições naturais. Sentada na sanita pensava ‘hoje tenho de acabar o terceiro capítulo’. Limpou-se, levantou-se e preparou o duche. Resmungou qualquer coisa a propósito das calças do pijama do Vasco no chão da casa de banho, e perguntou-se onde é que teriam ficado esquecidas as cuecas desta vez. Acabou por descobri-las atrás da porta, atiradas com certeza em gesto aleatório ou, pelo contrário, como que escondidas, naqueles comportamentos imperscrutáveis que as mulheres surpreendem nos seus companheiros. Por detrás da contrariedade manifesta no resmungo, nasceu um sorriso apaziguador que já conhece.
Preparou um sumo de laranja e um café para acompanhar as torradas. ‘Hoje não saio de casa’, comprometia-se consigo mesma enquanto ia desenhando mentalmente o dia à medida tanto da necessidade como do desejo. Sentou-se na varanda ainda molhada, a acabar o sumo e a contemplar a manhã já crescida. Pensou no Vasco e numa manhã distante em que o frio os tinha feito aproximar, desconhecidos então, talvez tanto como, apesar de tudo, continuavam ainda a ser. ‘Todo o tempo é sempre tão pouco e demais’, pensava. Agarrava-se a estes flashes que as primeiras associações mentais traziam, porque sabia que o texto tinha de nascer no seio destes impulsos encriptados pelo inconsciente. Forçava-se a uma liberdade de pensamentos que não tinha. Desejava uma fluidez que desconhecia em si mas para a qual intuía dirigir-se se desse os passos certos, ou pelo menos se evitasse os atritos que têm atrofiado a sua escrita. Era de memória viva que esperava ver surgir em fluxos irreprimíveis, a sequência de imagens, eventos, diálogos com que povoaria o seu romance. ‘Mas qual romance?!’
Nesse momento, ao enunciar com raiva esta dúvida, sentia a emoção escorrer dentro dela num apelo às lágrimas que aí vinham. Perguntar ‘Qual romance?’ a propósito da rarefacção da sua escrita, era um prelúdio a inquirir ‘Mas que vida?’. No entanto, sabia que era injusto perguntar aquilo. Interrogava-se sim porque é que em qualquer fase da sua vida havia questionado assim o seu destino, as suas escolhas, o seu mundo, o seu presente. Porquê? Afinal rodeava-a tanta beleza e dignidade, tanta felicidade espalhadas pelas horas. Porquê então este permanente e inquietante suspirar por algo diferente, algo melhor. Melhor, como, em quê? O que quer que fosse, só dependia da sua noção de liberdade. E a sua própria noção de liberdade estava num ponto muito próximo do zero absoluto. Não a liberdade em si mas o sentido da sua realização. Esse paradoxo era canónico, mas em Margarida assumia os contornos de uma espécie de punição, de uma expiação submersa num passado que quase já não reconhecia mas intuía mais poderoso do que a razão conseguia conceber. Se isto fosse o seu romance...
Depois de almoço pensou em vestir-se para sair, mas hesitou e acabou por decidir ficar em casa o resto do dia e, quem sabe, à noite pudesse reler o produto dessa reclusão forçada e sentir-se orgulhosa. Ligou ao Vasco para solidificar esse auto-imposto sacrifício, tornando-o evidente ao mundo exterior. Ele não atendeu. Nem podia. O beijo de boa noite que haviam trocado na noite anterior quando ela se deitou, ainda cedo, para não comprometer a resolução de aproveitar o dia seguinte, foi o último gesto que os uniu, foram as últimas palavras que proferiram, foi a última imagem que registou do homem que, horas mais tarde, seria obrigada a reconhecer no corpo encontrado sem identificação naquele quarto impessoal, misteriosamente familiar, como pôde sentir com surpresa e repulsa quando morbidamente quis penetrar no antro das quatro paredes vazias que assistiram ao fechar daquele capítulo da sua vida.

nov.11.MMVI


(NOTA: noutro lugar, a morte de Vasco aqui referida é descrita como tendo sido a morte de Vicente. Não é gralha, nem é inocente esse deslocamento narrativo)

sexta-feira, novembro 10, 2006

#12

por exemplo, uma inscrição no tronco morto de uma árvore, com a ilusão de perenidade que tudo o que vive oferece; por exemplo, uma inscrição num grão de areia, lembrando Blake, por exemplo. rabiscar uma anotação de rodapé num livro que não é nosso, trautear baixinho em uníssono com os violoncelos em pleno concerto, por exemplo, uma inscrição inconsequente, morta como o tronco de uma árvore onde um nome e outro nome e uma seta e um esboço de coração de golpes de navalha, por exemplo, um coração feito de ângulos agudos, desajeitados em contraste com a perfeição do sentimento instantâneo dos nomes inscritos.
desenhar no ar com os dedos, em danças coordenadas com o olhar, o contorno de uns lábios que se movem inconscientes do ritual. pisar de novo o verde sobre o qual alguém flutuou, por exemplo, depois de um encontro secreto.
ser eco de um grito calado. recordar em vão todos os detalhes de um momento assaz insignificante. projectar no futuro os sonhos de quem fomos quando éramos outros, permanentemente esquecidos. por exemplo, morrer à nascença ou, o que é o mesmo, no mais completo alheamento que a senilidade autoriza e protege.

xi.10.MMVI

quinta-feira, novembro 09, 2006

sem título

tempo intuição
projecto desgovernado
imprevisível refúgio
de e para dentro de deus


(in mar branco, nudez insular, 2005)

terça-feira, novembro 07, 2006

1º andamento

III


virá o azul inundar o leito seco da
tua forma de cristal, será fugaz mas
indelével como vento soprado num conto
lido à lareira; não extinguirá o lume
mas a ideia infernal; não arrastará as
árvores altas - fechará os meus olhos
como brisa sobre a penugem de uma
gaivota recém-nascida, como hálito
inspirado antes do primeiro beijo;
assim o azul verterá sobre o
deserto a tua paixão revivida na
penumbra de um dia sem noite.

virá a memória líquida dos corpos
calibrar o fiel onde todas as sensações se
comparam e reduzem a uma contínua
e subtil repetição de instantes primordiais
- a dor, o desejo, a angústia e o
alívio de todos os parágrafos perfeitos.

vii.11.MMVI

domingo, novembro 05, 2006

X.




(“... quando tu próprio és o espelho e a réplica
dos que não atingiram o teu tempo...”
Jorge Luis Borges)



... e da ilusão aceitaste o espelho
e do reflexo fizeste a obra

milagre profano da morte da ideia

(da ideia amortalhada em partituras vãs)


...e aos que não te ouviram
o tempo quebrou o tempo

01.03.02
(in instantes de perplexa aprendizagem, 2002)

sábado, outubro 28, 2006

#11

por exemplo, uma quase-morte. não! por exemplo, um pretexto para sorrir. assim está melhor, uma ideia de tempo, de um olhar e ter espaço por onde espraiar a consciência, sim! por exemplo, um direito adquirido por uma bagatela, por uma humildade reconhecida. porque se disse uma quase-morte quando se queria pronunciar um sorriso? por exemplo, quando uma ideia de tempo se forma antes de a sabermos expressar num gesto e temos a urgência de a transformar em som, em signo, em símbolo, a urgência de a matar, não! não a matamos. ah! uma quase-morte, a da ideia que exige ser explodida para fora da nossa compreensão, e não nos ensina a alquimia da sua própria essência, da sua metamorfose, da sua queda em palavra, em forma, em expressão. por exemplo, da ideia que se contenta em ser sorriso por humilde reconhecimento da nossa pobreza demiúrgica. por exemplo, uma cabeça pendida sobre o peito e o olhar perdido no abismo interior da nossa própria comiseração. por exemplo, um traço de luz no passado que nos fez emergir do absoluto que não reconhecemos ser do mesmo tom do arco-íris que nos recebe no lugar de sempre, aí, lá, aqui, por exemplo, onde já não somos.

x.24.MMVI

sexta-feira, outubro 20, 2006

#10



por exemplo, o atrito sonoro com o tempo, a cor da dúvida sobre o espaço que verdadeiramente roubamos ao mundo, a certeza do delírio em que se metamorfoseiam todas as respostas verdadeiras. por exemplo, a cegueira assassina da vaidade, o poder oculto do silêncio, a ínfima parte da razão que cabe até ao pensamento mais absurdo. por exemplo, uma dor, por exemplo, uma visão mística que nos surpreende o cepticismo, por exemplo, uma evidência insuportável, com o peso uniformemente distribuído entre o desejo e o terror, arte pura, por exemplo. um gesto pintalgado de divino, um sabor apreciado uma única vez, um sentido nunca usado, um mundo totalmente virado do avesso para nós, por exemplo, o contrário da percepção, um absorver para fora, uma luta com o sensorial, uma batalha pela impermeabilidade da alma, por exemplo. uma morte que nasce à flor da pele e se espalha pelo aroma do espírito, de dentro para fora, de cima a baixo.


x.11.MMVI

domingo, outubro 15, 2006

22


deixa perder-se em ti meu rasto
e que o mundo me procure apenas
no teu sorriso metamorfoseado
em dois condores de rubras penas

03.06.03

(in um barco de papel para Afrodite, 2003)

domingo, outubro 08, 2006

#9

por exemplo, vinhas ao longe e o mundo arredondava-se para anular o espaço, o vento ajudava a memória que te distorcia dentro de mim e o sol, embaraçado pelo egoísmo com que nos privou dos dias, escapava para detrás do infinito e não voltava mais. por exemplo, dançávamos a milhares de quilómetros de distância, ao mesmo tempo, sem sabermos o ritmo que embalava o outro, numa sintonia inconsciente, numa sinfonia de maestro incógnito, talvez com o amor como solista, talvez apenas qualquer metáfora aceitável em seu nome. por exemplo, atiravas o olhar para o horizonte e o mar provocava um arrepio nas rochas algures a poucos metros de mim e eu atravessava a duna descalço, em passos irreflectidos como um sonâmbulo, para alcançar o calor que ainda reverberasse sobre as águas como harmónicos da tua voz nunca escutada. por exemplo, um detalhe irregular no quotidiano, um aviso da lua, uma morte inesperada, um vulto irreconhecível, uma ausência do sempre ausente, por exemplo, a presença pesada da teu abrupta inexistência.

x.06.MMVI

sexta-feira, outubro 06, 2006

#8

por exemplo, quando o limite é ignorado intencionalmente, e deixa de fazer sentido chamar limite à sua ausência. por exemplo, uma queda sem ponto final deixa de ser queda e é condição, natureza, desígnio, esboço de eternidade.
por exemplo, a ignorância como esboço de sabedoria ou como sabedoria plena, o desejo como esboço completo da apatia, de indiferença. por exemplo, quando um orgasmo é um livro de apontamentos sobre o vazio, quando a alucinação é um rascunho vivo da monótona lucidez indesejada, ou quando, por exemplo, um homem é o esquema formal e insípido de um sonho.
por exemplo, um mistério, uma pergunta, uma inquietude, talvez um desejo à procura da hora incerta do reconhecimento do seu objecto, talvez uma pobreza maior que a mais temida das mediocridades, talvez, por exemplo, uma mentira auto-imposta por respeito ao rigor e à dignidade do não-saber.

ix.14.MMVI

domingo, outubro 01, 2006

XVII



um refúgio de pedra
dentro do cérebro
para as ideias sem
mãe racional nem
delirante paternidade
incógnita

colónia de férias
permanente
para as ideias inatas
ou geniais

um asilo
talvez

ou um beiral simples
de sombras arqueadas
pelo pensamento

(não quero saber!)
fico até que passe
mais um dia
mais uma vaga
monotonia mental.

29.05.03

(in o mundo e um pouco mais, 2003)

sábado, setembro 23, 2006

#7

por exemplo, o vitral a preto e branco desenhado com a ponta dos dedos no ar, imitando os contornos dos lábios um segundo antes do beijo, o vitral a preto e branco porque só o aro do risco à volta do vidro que não há pode reproduzir o desejo mais do que a realização.
por exemplo, uma flor em negativo, pétalas negras de veludo, assustadoras e graciosas como a beleza exponenciada sob o efeito da diferença, assustadoras e graciosas como uma memória mais nossa do que desejaríamos e ao mesmo tempo tão nossa como nós.
por exemplo, o negativo de um afecto, a indiferença que é já outra coisa no outro lado da indiferença, ou melhor, que é o amor num outro lugar, irreconhecível e familiar como um fantasma há muito não vislumbrado por ninguém ou confundido com uma sombra ou um reflexo.

viii.05.MMVI

domingo, setembro 17, 2006

1º andamento

II

Na fímbria de veludo do teu passado tens a
cor estampada da melancolia, nobreza que te
afasta do chão em que estou mergulhado há
duas eternidades e meia, sentimento nobre o
que serve de pretexto ao amor pelo eterno
sofrer em vão.

Amar a vacuidade do sentido desdobra em nós,
ontem, para sempre e agora, o véu multicolor
da dúvida e da ira, tanto para fora do limite
da língua que o expressa, o óculo mágico
da metamorfose, como para a profundeza da
angústia que o consome em golfadas de lucidez.

No caleidoscópio da incerteza vemos o que
não foi desenhado por deuses mas por espectros,
fantasmas de sangue mais negro que a noite
de sonho, mais quente que o sol apagado
num espectáculo silente e insano.

E regresso sempre ao veludo ancestral
desbotado numas cores e adulterado nos
tons da memória caprichosa, e brilham
os dias sombrios imaculados pela tristeza
e esfumam-se em tons cinza os beijos
redondos e os farrapos de êxtases
que guardavas em molduras de tempo
num museu que não chegou a abrir.

terça-feira, setembro 12, 2006

9. viagem ao antípoda do sentido

Num lado do cone, o vértice sem cor nem forma. Sem forma, apesar
de se confundir com um círculo imperfeito invisível. Mal desenhado como os dias e
as paredes dos cemitérios. Do outro, a base inútil.
Um cone feito de infinitos é como uma recta, mas as rectas têm cor.
Nos subúrbios da nossa capacidade de pensar, existe um tempo que não
se deixa manipular sem preço. Uma base inútil, porque não há cones que precisem
de tempo para se deixarem nele repousar. Um vértice é suficiente. Nem de cor
precisa.
Um cone tem um preço para se materializar em espaço. Numa dessas
esquinas sem rosto, percorre-se um labirinto infantil para chegar à condição
óbvia da nossa impotência estrutural.
Apesar de se confundir com um círculo imperfeito, o vértice não é inútil.

13.03.03
(in a densidade das almas, 2003)

sem título

refuto a letras lilases a condenação à plenitude
intuída em cada vereda íngreme
do pensamento maduro

27.04.03
(in a incerta permanência da dúvida, 2003)

sexta-feira, setembro 08, 2006

13


minha boca
perdida num
vale de joelhos
escarpados
naufrágio na
tentação

para lá do deserto
ventre duna
um oásis salgado
quente ilusão
húmida

25.05.03

(in um barco de papel para Afrodite, 2003)

segunda-feira, julho 31, 2006

sem título

até uma fina camada de nada
sobre o tudo de alguma coisa
nos continua a afastar sempre
do sentido completo da nossa
despojada doutrina do amor

17.04.03
(in a incerta permanência da dúvida, 2003)

quarta-feira, julho 19, 2006

três vultos de angústia


(teatro)

personagens:

o Mestre (também narrador)
uma Lágrima
o Vento
a Palavra (apenas voz amplificada)
o Discípulo

1º ACTO – a ausência

Quadro I

(Com um fundo, aparentemente pintado de fresco, representando abstractamente uma mulher sentada a ler, com o rosto triste, a cena deve estar envolta num ambiente frio e intelectual. O som circundante, caso seja composto para a ocasião, deve acompanhar, no que a música permitir, a sensação de desconforto, mas não deve deixar de enobrecer esse estado. Caso não seja original, sugere-se Coptic Light de Morton Feldman, The Unanswered Question de Charles Ives, Vox Balanae de George Crumb, ou outra obra que realize desta forma a fusão das matérias rarefeitas com a intencionalidade poética.)

Cena 1

o Vento, vestido de azul, sem gravata, obviamente, proclama como se recitasse de cor poemas de juventude:

- Irmãos do Norte, tragam
Brisas frescas e brilhantes
Vontades de saber constantes
Que nem os tempos ...

indignado pela introdução inoportuna, o Mestre interrompe bruscamente a récita, gritando desde lá do fundo:

- Alto! Isto ainda não começou! Isto ainda não podia ter começado. E a ter começado, que forma ridícula de começar ...

O Vento, surpreendido mas rapidamente recomposto, ...

sexta-feira, julho 14, 2006

8

a inusitada languidez
dos teus braços suspensos
num acaso feliz
sobre o (vermelho) tecido
assusta pela cálida
semelhança com a
morte precoce de
um ramo partido

14.05.03
(in um barco de papel para Afrodite, 2003)

segunda-feira, julho 03, 2006

1º andamento

I

Era de noite mais noite que o universo imerso em
ti, como o orvalho luminoso no fulcro de prazer
de um trevo, no seio de quatro folhas corações de
fortuna, feitiço, luar imerso em ti, mais luar que
o brilho da paixão entre a coruja e a noite de quatro
madrugadas imersas no teu seio.


E depois continuou a névoa de tempo com o sol
submerso em mim, noite mais noite que a tua
morte.


Por entre os ramos invisíveis dos bosques por
desbravar sem coragem nem desejo, emerges sólida
como uma recordação que julgava presa no olvido
de tenazes ardentes, emerges mais sólida que o templo
de visões místicas que o tempo destruiu na minha
crença de papel, emerges sólida como a água bravia
da chuva mais chuva que a tempestade em mim quando
não és tempo nem azul nem ausência.

03.vii.MMVI

sábado, julho 01, 2006

XII

solidão –
impossibilidade de estender o braço e
(confiante, sofregamente)
tocar o tecto do nosso infinito

06.12.02
(in infinitas impossibilidades, 2002)

domingo, junho 18, 2006

plúmbea amargura

arrastas-te p’lo chão
como uma solidão velha;
esmagas-me p’lo caminho
numa ânsia de terror
e poder;
mas perecerás ao lume
dos mistérios antigos
da escrita e dos sons.

21.06.02
(in prosa perdida, 2002)

I.


há que aprender (com os pássaros) a morrer
e deixar
que a brisa nos consuma

e saber ver
a preto e branco
(sem amar demais a melancolia)

e aceitar a beleza da ilusão construída


17.02.02
(in
instantes de perplexa aprendizagem, 2002)

sexta-feira, junho 16, 2006

XX

num afago ansioso de
memórias da cor dos unicórnios
o mundo engendra
uma teia de sonhos nas folhas
virgens do meu desassossego

enleio-me nos seus
bosques sem clareiras como
se me dissecasse –
barriga aberta ao vento
peito entregue à brisa quente
da imaginação

uma viagem de tempo
entre dois crepúsculos
banha-me de perspectivas
vazias sobre o anúncio da
minha morte, historicamente
tão perto, e presente como
o cheiro a ratos no sótão

01.06.03
(in o mundo e um pouco mais, 2003)

quarta-feira, junho 14, 2006

sem título

vilipêndio doentio
da virtude – um fustigar intenso
do véu interno e inocente;

(vigília enferma, labirinto hipnótico
e vão, inconsequente e triste)

vaticino-me uma morte
sem nome – gota de mim no vácuo
vislumbrado atrás do pano;

(a lua segue-me os passos, vacilantes
e aturdidos, de olhos velados)

veste-te, vento, de brisa
e leva para longe o veneno
das cinzas da minha vontade.

06.12.03
(in a língua secreta do egoísmo, 2003)

sexta-feira, junho 09, 2006

4


redundância

quero um dia outro
um dia antes
um dia sem mundo
um mundo sem dia

(vê o horizonte sem traço definido
sem cor distinta no céu e na terra
de contorno sinusoidal
em pedaços separados por nadas azuis)

um som sem vibração
uma cor sem vibração
um coração sem cor
uma acção sem dor

e as gaivotas de asas cristalizadas
e os colibris de asas cristalizadas
e as cotovias de asas cristalizadas
e os gaviões de asas cristalizadas

e os homens de asas cristalizadas


(um dia sem mundo
um mundo sem dia)


quero um século sem mim
quero-me sem um século de mim

03.02.04
(in imanências, 2004)

sexta-feira, junho 02, 2006

2



era uma vez no infinito


o requinte de deus consiste na distância

palavras onde nem uma gota de sangue
cabe sem que o sentido se dissolva
em
heresia capital

“há uma lúcida entrega
onde deixou de haver fé”


no infinito, não há palavras esquecidas

sempre que vier o demiurgo
ao mundo incriado
será estrangeiro

“pela mesma lógica
que fez nascer fé”


e deus será filho ilegítimo
de um pai onírico e sem memória

“no lugar da oferenda cega”


morre-se em silêncio, lá.


02.02.04
(in imanências, 2004)

tempo

tempo intuição
projecto desgovernado
imprevisível refúgio

de e para dentro de deus

(in mar branco, nudez insular, 2005)

domingo, maio 28, 2006

16

os corpos cantam
de memória já
a melopeia agreste
da procura fremente
um do outro

noite cheia
se envolvem sem
nostalgia nas mãos
e nos dedos apenas
desejos de travessia

mistura-se no
escuro o escuro dos
teus olhos com o das
roupas sobre o nosso
sono inquieto

retomamos a rota do
sonho interrompido
mas com o sabor
agri-doce da manhã
real que nos rapta

27.05.03
(in um barco de papel para Afrodite, 2003)

quarta-feira, maio 24, 2006

(dia 21 de novembro, 2048)


I

“Ich bin der Welt abhanden gekommen”
(Friedrich Rückert)


Longe, envolto em brumas, mais do que pude imaginar-te, criei-te.
Revejo-te nessa memória que dizes do futuro por me preveres cá atrás, bem longe do teu entendimento. Estranho ao mundo também ... na ausência do poder ... do sentir.
Mais do que possas um dia conceber, no fundo das pessoas reside sempre a angústia acalentadora de existirem sem vida, sem nada, mas também a ilusão comicamente tocante de nunca deixarem de pensar que essa é uma condição instável de que a humanidade se livrará escrevendo, criando mundos em que ...

Longe, envolto em brumas...
... criei mundos em que não morri antes de saber escrever o que era a morte. E tu, executor desse sonho, tentas vislumbrar-me absurdamente, não compreendendo... ou não aceitando...

quinta-feira, maio 11, 2006

# 6

Por exemplo, um lugarejo escondido fora do mapa, um cheiro a estrume que encanta e inebria porque é infância perdida de novo, as ervas altas a emoldurar as papoilas cobrem o horizonte quando nos sentamos no chão. Por exemplo, um melro, não... uma arvela ou um arvelim sedento, num piar de nostalgia, de saudades de mim, de ti, do tempo em que os matávamos com carinho. Nojo.
Os pequenos pescoços torcidos no torno invencível dos nós dos dedos num estrangular delicioso. Por exemplo, a veneração que protege inexplicavelmente as andorinhas, essas não, que são as galinhas de nossa senhora, argumento de deitar as mãos à cabeça agora e que tinha a força da profecia então, se matares uma andorinha, a primavera pode não acabar, mas farás nossa senhora chorar. Isso não. Mata antes uma carriça para treinar a pontaria ou um tordo, troféu miserável. Po exemplo, um cheiro, não a estrume já, mas a sangue. Sangue seco. Nos dedos pintados pelas penas inertes e ensopadas. O sangue que se saboreia como prova da conquista estúpida. Orgulho de estupor. Vergonha até a memória doer e ir embora chorar e limpar as lágrimas a uma parra qualquer.

v.10.MMVI

domingo, maio 07, 2006

quatro rimas perdidas


I
ontem não choveu
mas nos barrancos e nas encostas
dilataram-se pedras e rios

II
ruíram muros ancestrais
nas vizinhas planuras -
animais em fuga (já mortas as sombras)

III
sem gotas de água
caíram em aromas a pureza e a morte
sobre os limites do verde triste

IV
de longe vi o que pude,
aqui escrevo agora (invento)
o canto amargo do silêncio.
18.05.02

(in prosa perdida, 2002)

sexta-feira, maio 05, 2006

13

minha boca
perdida num
vale de joelhos
escarpados
naufrágio na
tentação

para lá do deserto
ventre duna
um oásis salgado
quente ilusão
húmida

25.05.03
(in um barco de papel para Afrodite, 2003)

segunda-feira, maio 01, 2006

xxvi

espernear é grito cómico. há até o delírio de espaço
como se as pernas alcançassem o éter e rebentassem de riso.
palhaços. mágicos sem jeito.

jan.20.MMVI

segunda-feira, abril 24, 2006

xxxi

na escuridão da verdade a morte é feita de luzeiros doces.

jan.26.MMVI

xxv

a rosa é um ritual estranho à felicidade
a rosa não é a flor nem o relâmpago dos sentidos todos
a rosa mentiu ao tempo
a rosa deixa no branco a impureza do destino impermeável à dor
a rosa escorre em latejos de pavor rubro
a rosa deita-se ao lado do outro e adormece longe
a rosa foi um poema

jan.19.MMVI

sábado, abril 22, 2006

#5

por exemplo, o cheiro a resina, o sabor a pão de deus com queijo, o cheiro a mofo, o sabor a castanhas piladas, a textura do molotof, o cheiro a ontem, o sabor de hoje, a textura do vazio.
por exemplo, o cheiro a resina, o jogo colorido sobre a caruma, o plástico em argolas, os cinco pinos com as cores respectivas, o lilás ao centro, o verde, o amarelo, o rosa, o azul, norte, sul, este, oeste, o lilás ao centro, eu.
por exemplo, o cheiro a fritos, a melancia, a resina, o sabor dos rissóis, das castanhas piladas, o cheiro a lilás, os gritos de crianças que brincam, que brincam e gritam porque brincam e gritam se não brincam, cheiro dos gritos a crianças que são estúpidas até que a idade as torne ainda mais crianças ou ainda mais estúpidas.
por exemplo, as conversas sem assunto e a cor das conversas que cheiram a nomes que ecoam entre os pinheiros, nomes de ontem, pinheiros de hoje com o cheiro dos nomes a ecoar entre os gritos e as conversas sem assunto.
por exemplo, o cheiro a mar que não há, o sabor do beijo que se esqueceu, a textura do tempo de mil folhas.

iv.21.MMVI

quinta-feira, abril 20, 2006

xvi

não há socalcos já dentro de ti.
ficaste pleno, plano, belo.
eras o verde irregular, de timbre em timbre, de tom em tom.
esqueceste a gradação e ficaste limpo, impuro, vivo.
os traçados da pele calejada pelo ócio desfiguram a tua não-idade.
és o tempo que se estendeu como manto sobre virgem.
o tempo é-te a própria virgindade.
perdeste o tempo estriado em esperança.
não há socalcos já no teu olhar.

jan.01.MMVI

quarta-feira, abril 19, 2006

xxxiv

esventrar deus não o derrubou da irrealidade
abaixo. não é vocabulário que saiba decifrar
e deus só está sujeito à sua hermenêutica pessoal
(no que de pessoal aqui fosse razoável aceitar)

mar.15.MMVI

domingo, abril 16, 2006

xxxiii

perduram dentro do ventre opaco e doce
memórias líquidas
resquícios permanentes de tempo
de que tempo?
flagrante é o não-sentido
nenhuma verdade se deixa reconhecer ao espelho
de que tempo?
resquícios de um futuro que o presente renuncia
a realidade está prenhe de mim
e deambulo sobre toda a água do mundo
menos sobre aquela que escorre nas sílabas
e nos acordes em suspensão
de que tempo?

fev.06.MMVI

quinta-feira, abril 13, 2006

#4


por exemplo, um delírio, um velório, um veleiro ao vento, um vislumbre de ti que inebria, um velório? que inebria? um vislumbre de ti que inebria. por exemplo, um quadro mal pintado, um vestígio de desejo, um vagido imaginado, um dia vital. um funeral? um dia que inebria? um vestígio de desejo. por exemplo, um sorriso disfarçado, uma paixão fora do tempo, um deus que morreu, um enterro? um deus que inebria? um sorriso disfarçado. por exemplo, uma cama na praia desnudada p’lo mar, um pinheiro derrubado num sonho antigo, uma queda, uma morte? inebriante? uma cama antiga num sonho derrubado. por exemplo, um nenúfar que não se pintou, um perfume misturado com maresia, uma pétala de mármore cinzelada com uma pena, uma pétala caída? inebriada por um poema? um perfume de mármore sobre a água calada. por exemplo, uma sinfonia por escrever, um cantar luminoso, um toque de harpa sobre o manto de silêncio da noite, um piar de corvos, de abutres? inebriante morbidez? silêncio por escrever na luz. por exemplo, um amor. por exemplo, uma eternidade.

iv.13.MMVI

segunda-feira, abril 10, 2006

#3

por exemplo, aqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio, pose de bailarinos decadentes, lentos, nostálgicos de um tempo glorioso que não existiu.
por vezes a memória do mundo falha ao seleccionar o menos real do passado e fazer dessa invenção inconsciente o paradigma do devir pessoal e histórico. por exemplo, aqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio não remetem para a ovação do fim do espectáculo, não fazem fechar os olhos pela saudade do sentimento de omnipotência que tinha ao voar sobre o linóleo preto de encontro aos braços seguros dele, não. aqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio são a própria ausência desse passado. a decrepitude do que não chegou a passar de um sonho feito mentira da vida a si mesma.
ele nunca olhou para este velho mesmo quando não era velho. ele não recebeu o meu voo quando eu era talvez até capaz de me dispersar pelo ar com o suor como chuva. ele não soube sequer que eu um dia quis ser bailarino. sou um velho. tenho oitenta e dois anos, quase oitenta e três, e aqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio não chegam sequer a ser um riso de escárnio pela mentira que agora renuncio.
sou infeliz. como sempre fui. e se nunca duvidei disso quando o via lançar-se, ele sim, no espaço infinito do palco, não vou duvidar agora da evidência da infelicidade de não poder ver o meu sonho naqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio.

iv.10.MMVI

sexta-feira, abril 07, 2006

#2

por exemplo, lembro com uma espécie de prazer estranho e viscoso o sabor do sangue ainda quente. e a desilusão perante a cor que ganhou ao secar, nada harmoniosa com a imagem mental associada ao sabor. não é imediato que se trate de um prazer sequer, falta de imediatez essa afinal que acontece com frequência em todas as memórias, ainda mais as sensoriais. mas não era também um sangue qualquer. uma vida que se tira é um rito de passagem. como a segunda vida que se habita. como a última luz que é contemplada. são ritos subliminares à existência e frustram qualquer tentativa de análise moral.
não me lembro por exemplo do nome dele. e sei que o soube. não matei nunca ninguém de quem não fosse íntima. no sentido mais visceral do termo (se bem que visceral adquiriu em mim ao longo destes séculos conotações múltiplas).
mas lembro-me por exemplo do perfume que ele usava nessa noite. sei que não foi fácil resistir à tentação de o poupar. a hesitação começou exactamente pelo perfume. não por desejar que ele vivesse mais tempo. não por permitir que me assolasse qualquer impedimento de ordem mundana ou racional. matá-lo-ia de qualquer forma, e beberia o sangue a seguir, como aconteceu. a hesitação percorreu-me o corpo, e não a mente. o perfume viciou-me os sentidos. deixei por instantes de viver antecipadamente o prazer do néctar rubro. desejei poder prolongar aquele quê de místico, porque aquele aroma tinha em mim mais de duzentos anos. não podia imaginar voltar a quebrar o ímpeto por tão pouco. mas a sede e a luxúria da morte é sempre maior.
bebi. li um dia que existiram em tempos no imaginário popular europeu alguns seres, vampiros, como lhes chamavam, que ficaram conhecidos por prazeres e necessidades tão próximas das minhas que percorro a minha memória em busca da noite em que teria devorado algum. e não encontro uma única ocasião em que se instale sequer a dúvida.
não existem vampiros.

iv.07.MMVI

quarta-feira, abril 05, 2006

#1

por exemplo, um recanto escuro numa oficina. um carro sobre suportes de madeira. sapatas. barrotes que são rodas postiças. portas que são biombos afinal. mesmo sem vidros. descarnadas. mais nuas que camas de ferro forjado. as portas da frente tão ausentes que o carro parece assim ter sido sempre. coxo. ou melhor, louco. não se vê daqui, mas o motor também não habita lá à frente. a língua de fora do capôt aberto esconde essa miséria humilhante em que se torna aquele espaço oco do motor que abandonou o corpo. como se fosse, não sendo, a alma. o motor não é a alma do carro. a alma do carro é aquele corpo nu, de pernas abertas como se a atitude mais natural de uma mulher fosse despir-se sem palavras, abrir as pernas afastando as cuecas ligeiramente para o lado, com ar de naughty girl, a tocar o teu sexo com os olhos lampejantes. o cheiro a óleo e a diluente é chanel de que só ouviste o nome mas que é já extasiante só de nomear. nada seria tão excitante se as cuecas e as mãos e os olhos e o corpo atrás do biombo das portas sem vidros atrás do capôt aberto de desejo o cheiro a óleo e diluente a inebriar e a iludir e o papel colorido e brilhante apesar de sujo de nódoas várias a já não parecer papel brilhante nem outro papel qualquer mas uma pele sedosa e perfumada, naughty girl, tua, só para ti, querido, toda, um dia quando já não tiveres onze anos salto do papel para fora e vais saber o que se esconde de mais viciante ainda por detrás da nudez

iii.29.MMVI

domingo, abril 02, 2006

xxxv

a beleza não é poliglota. o próprio murmúrio que faz
ao acordar é universal sem precisar de língua materna. aliás,
a beleza não tem sequer um código que chame a si mesmo
um batalhão de interpretações . a beleza quando nasce
é imediatamente deus.

mar.22.MMVI

sexta-feira, março 31, 2006

xxxii

afinal sei
a cor do tempo minuto negro
dor de coisa nenhuma esquecimento
afinal era ontem
o futuro por cumprir inteiro
e falhei o lugar inviolável do rito
afinal escuto
outras vozes chamamentos antigos
sobre a modorra do silêncio

fev.06.MMVI

terça-feira, março 28, 2006

XIV

aloja-se
réptil
no covil
escurecido
do meu peito
(do meu choro
cândido redil
de emoções
antigas)
a morte
que de longe
espreito
e me espia
silente
de cansaço
ou ardil

27.05.03

(in o mundo e um pouco mais, 2003)

domingo, março 26, 2006

xxix

vem o vento derrubar a verdade suspensa nas caixas
de cartão duro esquecidas neste hangar vazio. és o gesto que anula a distância
entre as folhas de papel de todos os diários do mundo.
o próprio restolhar das ideias que passeiam pelos dias como
pólen. não há horas tristes dentro das caixas vazias.
somente pó. memórias das coisas que te preocuparam, que te dilaceraram
a alma incauta. as caixas são fantasmas. imensamente pesadas
de tanto nada levarem dentro.

derrubar a verdade suspensa revela-se redundante –
uma lucidez lábil caiu já no passado ou no futuro.

jan.25.MMVI

terça-feira, março 21, 2006

xxviii



não há poema que quebre o cristal sob o pensamento mas
apenas poesia onde a razão se abre voluntariamente ao olhar turvo do delírio
e há quem saiba disso
do lado de cá da lucidez e não saiba dizer
o que vê sem parecer ter-se fundido já
com o próprio reflexo

um sol a escorrer pela calçada recebe os passos afogueados
de alguém que foge tremendo da sua própria sombra
inunda-se acolá um recanto onde outro se afoga todos os dias
depois de saltar borda fora do titanic
o mundo é criado sete vezes antes do almoço e outras tantas
antes do medicamento da noite
o verde é ruivo para aquela mulher que se debruça quase nua
num parapeito gradeado

outro mundo outras pessoas
outra beleza outros medos

a morte é outro mito

a vida outro lugar


há poemas que aguardam que o peso da razão se disperse pelo
azul todo para nascerem sob os pensamentos do outro lado do cristal
há almas que cantam já esses versos
aguardo-te

leio-te ternamente

jan.25.MMVI

xxvii

fui ao rebordo da muralha e de lá via-se o centro vermelho
do teu coração. não precisei de saltar. não precisei sequer
de sair da noite. estavas à minha volta em cada pedra.

jan.21.MMVI

sábado, março 18, 2006

vacilo

vacilo por uma tenebrosidade acentuada p’la morbidez
do desejo de trevas que faço nascer numa libido fiel a
Thanatos

trepido sem comoção por esta perda, este proveito que
aceito tenazmente em cada despedida de mim rumo a
Tebas

tomo nos braços o deus que me recebe enquanto chora
pela desilusão na hora em que termina a profecia de
Tirésias

devolvo-me a Eros e a Édipo, hóspedes na transmutação
da alma, até Ulisses ao Tejo regressar sob o canto das
Tágides.

02.12.03
(in a língua secreta do egoísmo, 2003)

segunda-feira, março 13, 2006

xxiv

afinal a verdade da luz era imensa quando se escoava por terreiros desertos brilhantes em poeira de dia distante de um tempo de que me lembro só a hora e era tarde já para tudo o que prometia a luz fragmentada nas roupas nos fios de cobre sobre o azul na imensidão do mar exalado pelo próprio deus nu em que o mármore se imaginou deleite e a ânsia foi um rosto de querubim esquecido num altar sem ninguém sem gloria in excelsis deo como a cor que fugiu ao fresco mural a pausa longa que gritou no meio da orquestra morta não fosse o silêncio azul e vermelho das harpas a consonância mais que perfeita o vazio dedilhado a ouro sobre o pensamento

a máquina clara pulsa um conforto piedoso pleno de empatia por toda a inércia minha e das árvores pálidas mesmo sob o signo do sol escuro e timbrado a prata como artigo falso mas bonito quente estretecido na bruma do desejo dos rouxinóis ou de outra folha de papel qualquer que isto da vida do mundo não cabe numa resma bíblia pardo ou manteiga e falta o resto da arte toda por matar

e o vento que já não é verde entretanto pela erosão da realidade cheira a madrugada despida pelas horas que lá passam e a tocam com dedos impressionistas em acordes de uma nota só ritmada a contratempo com os piares discretos como confissões de pã

afinal não custa aceitar a vida encerrada num pisa-papéis sem nada lá dentro

jan.17.MMVI

xxx

a escrita não pode nunca parar de executar
a terrível vontade do amor pelo absoluto

(o absoluto, sim, o inexistente e inútil absoluto)

a caneta é um assassino lírico.


jan.26.MMVI

domingo, março 12, 2006

xxiii

olha tão de ouro se fez a noite
virgem de luz e de mim era um vazio estranho
brilhava desumana e altiva ainda perene num trono de saudade

jan.13.MMVI

quinta-feira, março 09, 2006

xxii

quando a minha alma significava alguma coisa
fosse o mistério que a assolasse, eu não saberia, se o
desejasse, distinguir um de outro signo seu.
branqueado o desejo de regressar à indiferença, hoje, ontem, não sei,
que angústia me prende ao chão, por não saber pedir-lhe
que se revele, e porventura seria desilusão quando agora não
significasse nada.

jan.12.MMVI

segunda-feira, março 06, 2006

hoje deixei-me ficar por aqui...

hoje deixei-me ficar por aqui, amarrotei a roupa já gasta sobre a superfície de granito,
dormi sem dar por isso, e não me lembro de ganhar alento

nenhum gesto de coragem foi loucura, nem a vida é
gentil e gratuita -
sobra sempre um dia de glória, um mistério...

a lua gritará por mim dentro em breve,
sonho, girando
sob a grande cúpula do possível.

12.10.03
(in a língua secreta do egoísmo, 2003)

sexta-feira, março 03, 2006

xx

plêiade. diz. plêiade.
não penses. não definas. diz.
plêiade. uma explosão doce dentro da boca. e no fim
a carícia da língua num roçagar lânguido e lento.
plêiade. o prazer simples e enigmático. dádiva das estrelas
ou de quem descobriu o lugar delas
no gesto de as nomear.
dentro da boca a alumiar o prazer.


jan.05.MMVI

quarta-feira, março 01, 2006

xviii

depois de o vento descer
não lhe resta destino que não a conversa entabulada com as árvores e
os pintores cegos. é vício do olhar erudito saber mais
do que pode. é vício bem remunerado e perverso. não inútil. simplesmente
tão ingénuo como o vento passear entre rebanhos e entabular conversas com o cinzento seco ou com a própria indefinição de cor em que as árvores se descrevem aos pintores cegos.

estendo-lhe um ramo. e depois outro. e é uma dança
onde era submissão. e é quase amor o roçar dele por mim afora, as folhas
arrepiadas ao toque gentil de um sopro, a copa aconchegada por cascatas descendentes de energia, de brisa inodora e leve. recolho os ramos
num amuo fingido e o vento brinca também numa voluta irrequieta, volteio de circo, rodopiar exibicionista que faz recordar ao pintor cego
a primeira mulher que tocou.

o vento tem conversas de velho e eu tenho palavras feitas de
infinito. as minhas sílabas são melismas para a velhice do vento. sou uma
infinda reserva de vocalisos abstractos que o vento contrapõe à sua desfiada história. desceu por falta de força ou vergado pela solidão.
não há nuvens eloquentes. o azul já não vibra
nos pensamentos dos pintores. nem o branco. sei de um lugar
onde se esconderam mas o sigilo impera entre os espectros.

o pintor aproxima-se e começa a trabalhar. escuta.
invade-me o desejo de sussurrar-lhe algo que o vento não entenda.
mata-me outra vez. faz amor comigo.
o vento exibe a indiferença que o esquecimento trouxe. o pintor
seca os olhos, fechados por dentro e por fora e pega num pastel
qualquer.

jan.04.MMVI

sábado, fevereiro 25, 2006

xxi

na flor do medo renasces fulva e triste.
quem. quem és. triste da cor do açafrão e incontornavelmente real. renasces
onde. na flor do medo. és incontornável. significas o tempo inevitável.
não. não significas nada. és o tempo mudo.
gotejas vida quando sangras.
és sangue espalhado nos pensamentos. julgaste ser carmesim
mas o teu rio é menos belo. é outro belo. é um som. o rio
que te assassina lentamente vibra como um contrabaixo.
não sei onde morres para reapareceres no medo assim. recebo-te gratamente.
seguro-te nas mãos. o medo fica vítreo contigo dentro.

jan.09.MMVI

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

xv

e foste lume e verde e jasmim e não sabes ainda o infinito que és. a tua alma foi rugido. habita-te agora o eco interminável como abismo que se esgota num sussurro de gigante. incendeiam-se em ti centenas de vidas pensadas por deuses de brincar, e de cada uma só sabes o nome que pronunciam quando se despedem. despedem-se de ti, do albergue anónimo que és para as existências translúcidas que pensavas tuas.

não foste amor nem farol nem eternidade. nenhum deus de vidro te emprestou a sua condição senão em gestos de irónica maldade e de desumanas ilusões. vício. impureza da cor ígnea das paixões.

foste o que desejaste quando te julgavas errante nos desígnios. foste o teu destino antes de o conseguires reconhecer. foste maior do que sonhaste e insignificante aos olhos da tua própria razão. soubeste o valor do belo antes de desistires de o encontrar em ti. desististe depois. apagaste os vestígios da inércia com delírios de omnipresença e venceste a incredulidade com gestos de desesperada fúria e ambição.

foste querubim e palma e penumbra e sabor e sabes somente que nada disso te definiu no verso das tuas páginas, no dicionário das tuas almas.

não foste gramático das tuas paixões, não foste analista dos vocábulos da tua expressão, não mediste os teus impulsos finitos e inconsequentes. quer dizer, mediste. mas não equacionaste os teus valores, nem os comparaste com o eterno nem fizeste sorrir a lua.

foste reflexo e angústia e ventre e arcada de violoncelo e fizeste ressoar ecos que não compreendes e fizeste tremer o chão de países longínquos e o próprio sol te negou irmandade impiedosamente.
e tudo o teu coração fez dissipar-se por um espaço inóspito

dez.21.MMV

contos inconjuntos - II

Não teve tempo de travar.
Fechou os olhos durante os dois solavancos que se seguiram quase imediatamente. Uma agonia repentina invadiu-o, como uma seta envenenada. Quase vomitou. Controlou-se. Parou, finalmente. Não teve coragem de olhar logo pelo espelho retrovisor. Talvez por saber que não iria conseguir ver nada senão o halo vermelho dos stops, débil demais para iluminar à distância a que ficou o corpo.
Olhou então para trás, engatando a marcha-atrás na esperança de conseguir ver algo mais. Mas até parar completamente ainda tinha andado vários metros. Instintivamente olhou à volta e tentou calcular a probabilidade de alguém ter assistido ao que aconteceu. Os casarios dispersos, de um e do outro lado da estrada encontravam-se fechados na sua imensa escuridão. Na mesma atitude defensiva, acabou por desligar todas as luzes. Face à imprudência que seria agir como em circunstâncias normais, ou seja, se tivesse sido voluntário o homicídio, voltou a acender as luzes e afastou-se a grande velocidade do local do atropelamento. Não teria agido assim se se tivesse tratado de mais um trabalho. Devia agir assim naquele momento, contudo. Movido pelo hábito, mais do que pela concreta necessidade, cortou algumas vezes para estradas mais secundárias ainda, para despistar eventuais indícios da sua passagem pelo trajecto fatídico. Exausto pela tensão inesperada daquela noite, parou num café mal iluminado, de província, para poder comer e pensar. Espantou-se por, ao fim daqueles anos todos, de vivências extremas e inquietantes, ainda ter dentro de si reacções quase naturais de pânico e angústia. Endureceu tanto, e havia ainda tanto reflexo por domar. A vida nunca é cruel demais, pensou.
A sensação mais próxima do que sentia naquele instante tinha sido praticamente simétrica a esta. Alguns anos depois de ter sido iniciado no negócio e nas subsequentes mortes, tinha uma missão relativamente simples a cumprir, em termos técnicos, mas extremamente complicada quanto à pragmaticidade da execução. O alvo vivia demasiado perto de uma das suas residências, o que poderia comprometer tanto a sua imparcialidade, como a normal estratégia de disfarce. Talvez por constituir uma excepção, toda a acção se desenvolveu de forma atípica, inclusivamente, ou principalmente, o desfecho – falhou, o tiro não foi certeiro, não teve hipótese de corrigir o erro e o alvo sobreviveu. A oportunidade da missão, em termos organizacionais, não voltou a surgir, e ele teve de conviver com os encontros, involuntários mas inevitáveis, mesmo que esporádicos, com a sua pretensa vítima, cuja presença incólume o incomodava como uma dor fantasma, com uma memória em negativo, ou seja, do que não aconteceu. Tinha sido tão acidental esta morte como aquela sobrevivência. Ambas as situações se revelavam igualmente frustrantes e incómodas. Talvez existisse ainda no seu carácter um sentido de decência nas acções, que fosse despoletado por circunstâncias destas.

Já com o prato à sua frente, a arrefecer há alguns minutos, revê a cena, como espectador e ao mesmo tempo no lugar da vítima. Tenta complementar a sua visão com a imaginação para alcançar a compreensão possível do que de facto aconteceu. A primeira dúvida consistia em descortinar se a pessoa estava efectivamente viva antes do embate. Tentou recolher algumas imagens, mas tinha sido tudo tão rápido. Via um braço levantar-se como a proteger instintivamente a cabeça, mas da mesma forma via o corpo simplesmente deitado de barriga para baixo. Via o brilho vítreo dos olhos esbugalhados pelo terror contra o clarão dos faróis, mas também via o cabelo longo em leque à volta da nuca. Via o tom de pela das costas e das pernas despidas, mas também o padrão axadrezado de um manto sobre todo o corpo. Para esta simultaneidade interseccionista das percepções contribuía uma outra missão, essa bem sucedida, na qual também um atropelamento fez parte das movimentações. Não sendo ele o condutor nessa vez, mas o segundo elemento, a ele teria cabido terminar o trabalho se a força do embate não fosse mortal. Mas tinha sido, de tal forma que a sensação se misturava agora, atrapalhando a reconstituição mental deste episódio recente.
No caso de a pessoa não estar já morta antes da sua passagem, o que estava a fazer ali deitada? Quereria morrer? Vicente começava a colocar as hipóteses por ordem de plausibilidade, pelo menos até onde a lógica permitia. Se estava morta, quem a deixaria ali? Para quê? Para ser encontrada? Para que fosse atropelada? Em nenhum trabalho lhe havia sido alguma vez ordenado que deixasse o corpo no meio de lado nenhum, numa estrada qualquer. Mesmo naquele outro atropelamento tinha sido sua função embrulhar o morto, a morta naquele caso, e colocá-la dentro da mala do carro. O corpo tinha sido depois queimado num desterro afastado.

Vicente acabou de beber o café, apagou o cigarro, e chamou a dona da casa para inquirir da possibilidade de ali dormir umas horas. Havia quarto. Havia sempre um quarto.
Descalçou-se e deitou-se vestido em cima da cama. Acendeu outro cigarro, para acalmar a inquietude. O cinzeiro continha ainda beatas de outras noites, algumas sujas de batôn. Todos estes quartos, ao longo dos últimos anos, se começavam a confundir também. E a náusea que costumava chegar naquele limbo ente a visão vívida e do esquecimento, o entorpecimento das sensações, era também comum a todas as madrugadas que punham fim a mais um dia tumultuoso.

Bateram à porta quando já começava a pegar no sono. Sobressaltou-se. Não respondeu. Seria impossível que alguém ali o relacionasse com qualquer das mortes daquele dia. Nesse momento surgiu-lhe a segunda hipótese ainda não formulada até então. Caso quem estava deitado na estrada não estivesse morto na altura, e não tivesse morrido com o embate, por alguma circunstância imperscrutável, poderia já ter conseguido arrastar-se para perto de alguma casa, ou ter sido encontrado por qualquer carro que por lá tivesse passado entretanto. Se o seu estado não fosse tão grave como era de supor, talvez até pudesse descrever alguma coisa comprometedora. Mas Vicente afasta esta possibilidade tão estapafúrdia, já que a distância a que parou o carro não teria permitido a ninguém ler a matrícula, muito menos no estado em que devia ter ficado. Tentou adormecer de novo, mas batiam à porta insistentemente. Sem saber que horas eram sequer, e com a segurança que os anteriores pensamentos lhe concederam, abriu sem hesitar.

O tiro foi silencioso e mortal. Atingiu-o no peito, e como se não bastasse os três que se lhe seguiram cobriram a sua cara de sangue. De forma mais realista poder-se-ia dizer que o Vicente ficou sem rosto, sem alma, sem nada. Seguiu-se um agitado movimento dentro do quarto. A mulher, de luvas pretas ainda postas, revirou tudo até encontrar as chaves do carro e a carteira. O lema Mata primeiro e pergunta depois, foi executado com disciplina. Confirmou a identidade do morto, a falsa, claro, a que lhe interessava confirmar. Só então fechou a porta, desviando com a bota a perna desarticulada e inerte do caído aos seus pés. Acendeu um cigarro dos dele, com o isqueiro de metal que ele tinha deixado ao lado do cinzeiro, e reviu mentalmente as últimas horas. Ter olhado para ele, com ar malicioso e penetrante, quando ele entrou e se sentou sem saber que era observado, deu-lhe um pretexto aos olhos da dona da casa para subir ao quarto dele. A polícia amanhã que construísse o puzzle, se o caso mostrasse valer a pena.
Acabou de fumar, guardou o tabaco e o isqueiro no bolso do casaco preto, e procurou a arma dele. Guardou-a também, na bolsa larga. Pensou ainda em alterar o que planeara, e levar o corpo dali. Mas aquele dia estava demasiado povoado de imprevistos para mudanças arriscadas.
Saiu para a rua envolta no preto que se confundia com o manto fúnebre da madrugada. Ligou o motor e saiu da vila, de luzes apagadas, guiada apenas pelos reflexos ténues das pedras húmidas.
Estava a ser uma noite longa. A morte tinha sorrido três vezes, em esgares de máscara teatral, para o semblante surpreendido de três espectadores incautos.

dez.09.MMV

XIII

a distância a que me encontro de quem reconheço de mim não me deixa sequer sorrir-me nostalgicamente. e é tão banal já dizer coisas destas
que nos envergonhamos de as ter de repetir a propósito
de nós mesmos. são verdades lúcidas em poetas que morrem a
medir as verdades que ficcionam, e são vulgaridades como o enredo
de uma novela má, ou de uma novela qualquer. a poesia roubou
o lugar à vida fora do poema. é só poema, o que deixa e o que não
deixa respirar, o que atrofia e o que estimula. tudo se balança
no trapézio de cristal dos versos imponderáveis.

árvores que sangram não são já gritos nenhuns, uma asa quebrada não faz
vacilar a fé, e até um adeus fica ridículo
fora da desmesura do quotidiano. amar é um anacronismo
irremediável que servia antes para tornar luz as entranhas e vinho a saliva. amar é resquício de divindade envergonhada entre pagãos, e parece
enclausurado num campo semântico paupérrimo entre milhares «amo-te»
dispersos e distorcidos pelas esferas mais virtuais, pelas redes
menos humanas, mecanizadas em chamadas não atendidas e grafias de um tempo que ainda não chegou.

Se a lucidez e o amor perderem lugar dentro e fora da poesia ou vice-versa, se perderem lugar dentro e fora da vida, é porque
há um espaço exterior a ambas as realidades onde a lucidez e o amor se eternizam, protegidos da miséria que nos define.
se ressuscitarmos um dia reconhecermos o lugar
onde se refugiaram? seremos poetas outra vez?

dez.16.MMV

domingo, fevereiro 12, 2006

iv

haverá uma dor, algures no presente, de contornos vincados a sangue seco
manchas inequívocas do ferro sobre a pele endurecida, o ventre
entreaberto
deixará ressoar no peito, na vacuidade completa do peito, o eco dos melros quase negros, espadas de lume a sair-lhes dos bicos laranja e o sonho
quebrado em análises profanas

mito é o nome rubro da morte, o apelido de família do desejo

dez.05.MMV

sábado, fevereiro 04, 2006

x

sumiu-se dentro de ontem o último desejo. minto outra vez. não era decididamente o último ou não se sumiu simplesmente ou não era desejo rigorosamente nenhum ou não foi dentro de qualquer tempo

ou não minto
(a mentira é uma esfera
convencida de que nasceu com um número finito de lados)

ou minto agora, que interessa

morreu algures o gesto suficiente. agora sei que não minto nem ao dizer que não minto
dividem-se as verdades como o mar esventrado p’la luz
e a esfera assume-se

desapareceu e não soube o que sentir porque não era plano o espelho nem estava dentro da esfera o olhar incrédulo. quando se perde
o que não se sabia nosso é como nascer depois da morte de quem se ama
é como deslocar o mundo para o seu lugar fora da veracidade do próprio deslocar e fazer do mundo o revestimento interior da mentira

e por dentro perdem-se sorrisos de alma apagada pela incandescência da verdade inútil. é sempre inútil a verdade, pergunto. talvez
supérflua fugaz fútil lábil talvez
incompleta como uma pétala vazia como céu antigo vítrea como a felicidade
talvez não seja inútil nem outra coisa qualquer

(somente um quadrado que delira
frequentemente com a sua superfície elíptica de espiral que o embriaga
de incertezas)


morreu dentro de algures sumiu-se ontem o último desejo suficiente algures o último gesto morreu dentro do ontem suficiente sumiu-se o desejo o último algures sumiu-se
dentro do desejo suficiente o gesto morreu
ontem

a que mentira a verdade se agarra para ficar de fora da esfera espelhada, brinco
porque rima imperfeitamente com minto mas é outra forma de salvar a verdade do quadrado insano

dez.13.MMV

xix

absorves a luz. perdeste o paladar mas
fica a sede das texturas da rugosidade da cor sobre a lisura
da alma feita de sensação pura. perdias o dia em escuta
incolor e adormecias no repouso no balançar dos contrastes como
uma sombra repousa no repouso do sol. balouçavas inerte e eras
fogo de artifício. (o passado é um palco inebriante.
a memória um palhaço).

digo-te. névoa. e tu fazes ecoar no espaço uma mulher. ela sobe
por uma corda invisível e pára antes de embater no branco difuso. e fica
ali. é a própria neblina feita carne. carne diáfana como
corpo que perdeu sentido de tão corpo ser.
digo-te. mulher. e esfumas-te num sorriso escultural. és a estátua a um sorriso.

deixas o tempo. levitas sem norte nem peso e
cantas a mesma mudez nua. lullaby sensual. vivias o silêncio em
espasmos e em todos os orgasmos bebeste morte.

habitas-te. és o que conténs e o lado de dentro do vaso sagrado.
és o lado de dentro. o forro. absorves a luz toda e enclausuras-te
num delírio branco, que te cega num milagre profano.
ao contrário. do avesso.
és o teu avesso. o que conténs é o oposto do que és. não eras imagem
nem reflexo. julgavas ser o espelho. e não és.

digo-te. tu.
e morro. era luz.
conténs-me. és-nos.

jan.05.MMVI

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

xi

vão é o equilíbrio que se suspeita alcançar
no sono irreal da vigília
passeiam-se vozes sem importância pelos campos das horas
que se cruzam com os pensamentos, e nenhuma
palavra alheia ganha eco ou reflexo no vocabulário da indiferença.

completamente inútil o hastear das virtudes do acordo, da harmonia entre
o indivíduo e a duna ou o monte de entulho ou outra coisa qualquer
que renomeie o colectivo, o anormalmente colectivo, o artificial
sentimento de pertença que também com o seu manto
agasalha a completa irrelevância.

somos de coisa nenhuma e não quereríamos que fosse outra a nossa
definição, mas não temos palavras para traduzir a aceitação
individual desta evidência. só a sociedade domina
a gramática da insignificância.

dez.16.MMV

segunda-feira, janeiro 23, 2006

xiv


vibro em ânsia destituída de cor
vibro num pendular lento
moto perpetuo insensível à minha vontade
sou som e não me ouço
vibro como a terra morta
sou a própria percussão das almas
no solo arrefecido
mastigo desejos para entreter a espera
mais nada acontece senão
o meu vibrar estúpido

como o mar repele a paz interior para fora de si
e a deposita nos olhos emocionados de quem
ouve gaivotas e vê pescadores e cães
também eu exorto os meus sentimentos a saírem
do turbilhão que me vive
para os pousar onde uma flor os possa
metamorfosear em perfume ou uma mulher
os leve para dentro da memória da beleza

vibro
e arrasto no movimento
planícies desenhadas a
estacas e
cercas bois
a viver o
verde asas
que abraçam
o ar em volutas
surpreendentes
vibro e desperto a cada oscilação para um silêncio que julgava ter exalado já

dez.16.MMV

sábado, janeiro 14, 2006

contos inconjuntos - I

Do branco frio emerge a luz forte, ainda silenciosa.
A plataforma está deserta, invulgarmente. Apesar de anunciada uma ponte, não é suposto que a classe operária sem direito a luxos destes, adira em massa à permissiva tradição. Muito liberal iria o patronato, pensa. Não, o motivo deve ser outro. Ela não indaga durante muito mais tempo a este respeito. Senta-se, lá fora, por enquanto, num banco de madeira, outrora castanho, do qual uma aura de dias antigos se solta, como se houvesse sido roubado directamente a uma fotografia de Doisneau. Daí a alguns instantes entrará na pequena sala, ainda fechada, mais desoladora mas menos gelada que a rua.
Da luz amarela começa a nascer um pequeno tremor, rodeado do mesmo branco. O branco não é propriamente branco, como, aliás, nenhum o é. O branco na realidade é a noite húmida, a brancura vindo da imaginação que chama branco a tudo o que fuja ao contorno definido dos vultos. Também o facto de se saber feito de água o orvalho que dança no ar, ajuda a iludir a descrição das coisas na noite ainda fechada sobre os seus próprios desejos obscuros. A luz projectada na escuridão dá o toque final à visão alva da humidade. O foco intenso torna-se ensurdecedor no momento em que se une ao trepidar do próprio chão, das paredes atrás de si, do relógio obsoleto por cima da sua cabeça, do seu próprio corpo atravessado por calafrios inesperados, fruto com certeza das associações inevitáveis que estes instantes recuperam algures no seu espírito.
Fecha os olhos e sente-se simplesmente invadida pelo trovão do ferro sobre os carris, ribombar ininterrupto, aparentemente feito de gritos do mundo, cadenciados, ritmados, na verdade feito apenas da intermitência provocada pelas juntas de dilatação e pelo próprio peso da serpente de aço que acabou de passar.
O silêncio inebria quando surge sem aviso. Marta, de olhos abertos agora, movimento que o silêncio brusco provocou, inclina-se e espreita para cima. O mostrador sujo permite ainda assim decifrar o ângulo recto dos ponteiros. Não era tão tarde como julgava. Não deve ter acontecido nada de especial hoje, afinal. E esta serenidade é reforçada pelos passos que surgem a anunciar os transeuntes habituais.
A sala da estação está iluminada, mas de portas fechadas ainda. Marta é assim confrontada com os pensamentos a que estas incongruências obrigam – de que serve uma sala de espera fechada, às horas em que mais útil seria para proteger daquele frio, menos iluminado agora, apesar de tudo.
A noite despede-se lentamente das coisas deste lado do tempo, e afasta-se imperceptivelmente.
Do outro lado da linha a ponta de um cigarro refulge, como um silvo, brilha e extingue-se alternadamente a um ritmo que deixa adivinhar uma respiração que denuncia um olhar penetrante pousado em si. Ao seu lado encontram-se já mais pessoas, de mãos nos bolsos dos casacos apertados, duas mulheres, dois homens, três agora com o jovem que se aproxima dos paralelos amarelados que delimitam o fosso das linhas. De mãos nos bolsos das calças, de corpo esticado num espreguiçar que ilude o frio, o rapaz parece--lhe mais ausente, mais espectral, do que todos os outros homens. Talvez por não a ter olhado da mesma forma mecanizada e ritual com que os restantes a miraram.
Ao ouvir os ruídos da fechadura, vindos de dentro da sala, Marta levanta-se e entra. Senta-se no lugar do costume, e pousa a mala na cadeira ao seu lado. Só nesse instante, em que retira o livro, e o abre a três páginas do fim, é que a penetra, com laivos de inevitabilidade, uma ausência que até aí parecia ter escapado à própria ansiedade da espera.
Marta refugia-se nas linhas emotivas do livro para afugentar algo de indefinível, quase tão poderoso como o estertor de há minutos atrás.

Sente-lhe os passos decididos a menos de dois parágrafos de fechar o livro. Tem tempo de pensar que talvez seja providencial esta interrupção. Chorar àquela hora, num cenário tão desolador e deprimente, seria um péssimo começo para mais um dia.
Ela senta-se sem olhar para Marta. Esta sabe-o porque não consegue evitar acompanhar os passos até ao lugar habitual. E uma vez mais ela não a olha, nem uma única vez, apesar de Marta ter a certeza de que é, de uma forma qualquer, igualmente observada. Na segurança assim adquirida de que a outra não olhará directamente para si, Marta sente-se confortável para desfrutar do ritual que, constata agora, a fez chegar mais cedo, que a fez sentir o vazio indefinido até este momento. Com o frio que vem da rua a fazer confundir os vários tipos de arrepios que sente no corpo, Marta observa os movimentos lentos da mulher à sua frente. Olhando para a porta da sala, a mulher cruza as pernas, languidamente (Marta apostaria que o fez numa atitude de subtil exibicionismo, ou pelo menos assim o imagina). Durante o movimento, passa a mão pelo joelho como a confortar uma dor ou uma irritação. Marta tenta distrair o olhar da sensualidade que a cena lhe sugere, observando os detalhes da roupa que veste estes gestos, observando os detalhes da roupa que veste estes gestos. Admira principalmente as botas altas que conduzem a atenção até à pele da perna, ainda agora massajada, e que desaparece para dentro da saia, não sem antes denunciar a suavidade das meias, cuja opacidade crescente ao longo das curvas da perna cruzada faz com que Marta desvie o olhar, não para longe, mas para os olhos da mulher, na certeza de que é intencional a não retribuição.
É monumental a diferença emocional provocada pelo rapaz que lá fora despertou a sua atenção, pela aura fantasmagórica que envolvia a sua discrição, e a inquietude que a invade agora perante esta mulher, que de espectral não tem nada, muito pelo contrário, que parece gritar corpo, matéria, calor, movimento, até na invulgar indiferença com que reage ao seu olhar insistente.
Repentinamente, Marta vê-se a si mesma, como se entrasse agora na sala e olhasse para o seu lugar, e reconhecesse, assustada, a cor que habita o seu olhar, tantas vezes vítreo e agora quase incandescente. O medo, a vergonha, o sentido de decência que pautam a sua vida, o seu quotidiano, de uma ponta do dia ao chegar da madrugada, fazem-na levantar-se num impulso súbito. Sai, a cambalear como quem corre acima das suas forças, para o frio menos branco agora, tanto porque o sol invade a neblina, como porque a humidade se dissipou, quase por encanto. Marta ainda se atreve a pensar que foi o seu próprio sangue a aflorar ao rosto que fez o ar aquecer num ápice.

As horas. Como pequenos artesãos da memória, as horas cumprem o seu papel, avaliam, medem, classificam, armazenam, refundem, compreendem. A meio da tarde Marta não sabe já se o que vivenciou ocorreu nessa manhã ou noutra semana até. Talvez o medo íntimo e os outros operadores do esquecimento façam com que duvide mesmo da realidade das imagens que a invadem inesperadamente quando engole o café quente ou quando entra na casa de banho do emprego.
Tenta lembrar-se apenas de um pormenor que gostava de ver confirmado, se a mulher entrou no mesmo comboio que ela. Não consegue reconstituir o momento em que as portas se abriram, mas não tem dúvidas de, no instante em que a composição começou a andar, ter olhado para dentro da sala, então deserta, tão fria como se não tivesse acolhido antes emoção alguma. Um arrepio percorreu-a, como se a ausência do vulto que procurou fosse um desafio à sua mente.
Durante o dia telefonou ao Pedro, mas ele não atendeu. Provavelmente não teria feito referência aos pensamentos da manhã. Mas se o tivesse ouvido, alguma serenidade acabaria por a invadir, e as dúvidas seriam varridas junto com os detalhes que já esqueceu. Se o tivesse ouvido, teria readquirido alguma da confiança que lhe permitiria encarar o resto do dia com os olhos dele na alma, com o perfume dele a colorir o seu desejo, com as mãos dele a substituírem esta indefinível sensação de posse involuntária que a angustia e fascina simultaneamente.
Hoje vi um tipo de quem devias gostar, fazia o teu estilo, acho, comenta com Luísa. Porquê? Era todo pipi? Não, se queres que te diga, não sei como to descrever, mas era como se ele fosse tão versátil que pudesse ser qualquer tipo de homem, por isso podia ser o teu estilo também, não é? E sorri. Se tu o dizes, quem sou eu!, brincou Luísa, bem-disposta. Estavam lá outros gajos de manhã, mas esses, não sei porquê, acho que não te levariam ao céu. E estava lá aquela mulher, acho que te falei uma vez dela... Não me lembro, talvez. Se calhar não falei, então. Nem sei porque disse isto, não ligues. Mas o que te fez pensar nela? Não sei, às vezes penso que a conheço, ou ela a mim. Não é a primeira vez que tenho esta impressão, por isso podia já ter falado dela.
Depois do desconforto e da perturbação que esta conversa lhe suscitou, Marta resolveu não chegar a falar daquilo ao Pedro. Se há coisas que uma amiga não entende, dificilmente o marido vai entender, pensou. Mas no mesmo instante afirmou para si que o inverso era também verdade – o marido conhecia-a e entendia-a melhor do que a Luísa ou outra mulher na sua vida.

As sombras começam a diluir-se em todas as superfícies, e o cinzento rouba o lugar às cores das próprias coisas, para dar passagem à noite. Marta regressa. Habita-a uma nostalgia que não legitima dentro de si. Contudo, não a expulsa. Talvez não a expulsasse de si, mesmo que pudesse. Este sentimento quebra o quotidiano em pedaços de formas irregulares e desconhecidas. A sua vida tem sido um puzzle de peças lisas e tão previsíveis como se a figura a construir fosse um céu limpo, uma duna extensa, um mar calmo, uma vida silenciosa. Olha pela janela o escuro a indefinir o mundo, que se adivinha já mais do que se vê. As conversas esparsas à sua volta, parecem gravações apenas, como se todas fossem produzidas pela mesma voz que anuncia as estações no tom metálico e cansado que as máquinas exibem. Não tem ninguém ao seu lado, o que ajuda a mobilar esta ilusão com ausências.
Ao colocar o pé na plataforma respira fundo. Apesar da incongruência, dada a hora, senta-se num dos bancos, envolta pela luz ténue que provém da carruagem ainda, que já se move lentamente. Quando a luminosidade desaparece por completo, rodeia-a o silêncio deixado pelos passos já distantes, e o outro silêncio que grita dentro dela, tão violento como a mais completa solidão. À sua frente distingue os contornos do banco iluminado pelo mostrador do relógio, que emite um branco surreal como só em alguns filmes parece existir. A restante luz da estação, de tão débil e distante, não afecta a sua sensação de penumbra completa. É tarde. O Pedro já deve ter chegado a casa. Decide encaminhar-se para o parque onde deixa o carro todos os dias, Para algumas pessoas o lugar é soturno demais para se passar a esta hora, mas Marta não encontrou nunca motivos para temer a escuridão, até porque uma parte de si se revê na paisagem desoladora do parque vazio.
O carro distingue-se na vastidão de terra batida, húmida, como um monumento, como um pensamento solto, marginal, que a alma esqueceu de integrar no fio do quotidiano interior.
Marta estremece e abranda bruscamente o passo. A respiração acompanha simetricamente este movimento e o coração parece querer gritar algo incompreensível. O medo assume a forma de uma silhueta recortada de encontro ao seu carro. Parece-lhe distinguir uma incandescência que a remete imediatamente para o frio da manhã e para aquele olhar estendido sobre ela, com o requinte de malvadez de todos os comportamentos invasivos a que não podemos fugir. Sem dar conta de o ter decidido, estacou. O coração deve ter ordenado retirada, à revelia da sua consciência. No entanto, a fraqueza de que parece revestir-se esta atitude horroriza-a. Finge procurar algo na bolsa, justificando assim a hesitação, e recomeça a andar, com o olhar preso à sua ténue sombra no chão, cada vez menos visível à medida que se aproxima do automóvel. Só a poucos metros do carro se apercebe que a pessoa não está de frente para ela, como precipitadamente intuíra, mas de perfil, olhando para a escuridão que se estende em redor.
Assim como o breu da madrugada se dilui no dia como fumo no espaço, também a tensão e a angústia deram lugar ao alívio e a uma lufada de bem-estar quando Marta vislumbrou o reflexo acobreado dos cabelos compridos caídos ao longo do vulto alto, e não o porte ameaçador do homem que a fitara de manhã. Não precisou de um segundo sequer para saber quem era ela, mas precisou de algo mais do que isso para avaliar o efeito dentro de si, provocado por tal constatação.

No momento em que o cigarro se apaga numa poça de lama, e a sua luminosidade tremeluzente deixa de desenhar o cabelo que ondula subtilmente submisso à aragem da noite, Marta encontra-se ao lado do carro, a um braço esticado de distância da mulher que a espera. A escuridão repentina, contudo, não permite ter a certeza da verdadeira posição em que se encontram, criando em Marta uma inesperada sensação de liberdade. O medo que a assolou momentos antes criou uma pressão no peito que agora se espalha pelo corpo como uma energia que a arrepia e queima. Apenas o brilho no olhar, mesmo na mais completa penumbra, as aproxima num derradeiro reconhecimento. Antes de qualquer questionamento anterior, mesmo que para tal tivesse havido tempo, Marta dirige a mão quase cega àquele cabelo que se aproxima também imperceptivelmente. Marta faz deslizar a mão pela nuca da mulher-mistério-fascínio, e sente nas polpas dos dedos o crepitar sub-reptício da pele que reage ao seu toque. Ao contrário do que a razão poderia levar a crer, não se espanta com o seu gesto, nem com a naturalidade com que o mesmo é esperado, senão mesmo exigido pela placidez com que uma mão se lhe pousa no rosto.
Os lábios não se tocam plenamente centrados no primeiro impulso trémulo; parecem marionetas manipuladas com mestria em que, mais do que a precisão dos movimentos, são as expressões e as intenções comunicadas através dos fios que espelham as emoções. Num segundo momento, sim, beijam-se, ansiosas ambas, ou pelo menos assim os seus olhos entreabertos o revelariam se o negro circundante o permitisse. Marta sente-se puxada com delicadeza de encontro ao outro corpo, e ambos de encontro à porta do carro, que agora adquire a cumplicidade de um espectador, de um voyeur. Marta não teria gostado de sentir o vazio em torno deste momento ébrio. O ferro húmido e frio tempera a excitação com o sabor do inédito e do impensável, ou talvez apenas quebre o manto pesado do esquecimento. A penumbra do tempo aclara-se um pouco e Marta sente outros dedos nos seus, não estes que lhe sobem pelas costas num rastejar sapiente, mas outros, longínquos, feminis tanto pela delicadeza como pela juventude. Olvidados, mas presentes.
De repente vê-as a si mesma de fora, como de manhã tinha acontecido, mas não é vergonha que sente agora, nem medo, muito menos. Sente o embate do encontro do tempo com o pensamento, o encontro da luz com o olhar, o encontro de si consigo mesma, nesta outra que beija sofregamente, que bebe e deseja beber mais, nesta pele quente que os dedos tocam sem hesitar, o encontro com o continente por sonhar. O ar húmido transforma o carro num refúgio impreterível, um abrigo providencial, o espectador que se torna parte da cena. Com a luz repentina que o abrir das portas desperta, os seus olhos miram-se pela primeira vez, como que na retribuição de todos os olhares parciais ou evitados, não correspondidos directamente. Apesar do sorriso malicioso nos lábios, apressam-se a fechar o carro e a desligar a luz, impulsivamente, como quem teme estragar um rolo inadvertidamente exposto à claridade. O rolo que protegem é o filme dos instantes vividos, que não querem arriscar perder no triturador implacável em que se tornam tanto a consciência e como os julgamentos preconceituosos da razão. Escondem-se na escuridão de novo como quem foge ao outro lado de si. Não falam, não se beijam, dão-se as mãos que tremem, como se entoassem a lacrimosa num requiem ao futuro. Marta tem o sabor a naufrágio na boca, e sente o peito como destroços à deriva, aos quais se agarra aquela mulher que parece diluir-se naqueles minutos como se fossem os últimos. Mas Marta não o podia saber.
Um clarão repentino quebra em minúsculos grãos o cristal do instante suspenso entre os dedos entrelaçados. As mãos afastam-se, reactivamente. O carro que se aproxima aponta a luz invasora na direcção das estátuas em que as duas mulheres se tornaram, com a respiração sustida, cada uma pelas suas razões, e ambas unidas na dor de quem acaba de perceber algo demasiado grande para o lugar que tinha reservado à descoberta. Marta tinha sentido até esse instante a segurança de quem se entrega a um cirurgião das emoções imprevisíveis. Mas a fragilidade que a outra mulher revela, no respirar tenso e quebrado, num equilíbrio instável entre o desejo de ficar e a necessidade de fugir, leva-a a condensar em si todo o medo e emoção acumulados, e num impulso determinado murmura, com tanta ternura como veemência, Vai, amor, agora vai.
Cerra os olhos enquanto escuta a porta do carro a fechar-se com a subtileza e a naturalidade de todos os gestos afectuosos. Não foi um adeus, não foi o aceitar simples da exortação que os seus lábios sopraram. Foi um sopro de destino, um suspiro, um salto para o abismo do quotidiano impossível.

Marta regressa a casa, com o carro a rolar como se acompanhasse um funeral, o motor lânguido e lamentoso numa identificação com os sentimentos da mulher que assim o conduz. A luz forte que projecta à sua frente invade o escuro e cristaliza a noite num frio branco, já silencioso.

dez.05.MMV

quinta-feira, janeiro 12, 2006

VII

foste ágil, inutilmente
a inebriante vertigem chamou
o teu orgulho e cedeste à escuridão
à cegueira de ser diferente e belo

mas chegaste e o espelho
não se desfez em sorrisos
odeias-te, e à imensidão que
te fez crer na urgência de voar

dez.07.MMV

domingo, janeiro 08, 2006

v

ante mare, undae
ou simplesmente para a Blimunda

despeço-me em registos de prata, subtis acenos ao ontem
feito hora minha débil e triste. hora minha numa posse injusta.
para que quero o tempo. para que me quer o tempo.
pastel de nata, buganvília, pedra de calçada, sintoma, peso, leque, açafrão ou cadáver.

os segundos não me querem. expulsam-me das horas. fico preso numa eternidade de ponteiros suspensos entre carris, movimento de faíscas a deflagrarem a minha angústia etílica.
esfuma-se de encontro ao branco da inexistência o meu sangue, sépia nos dedos do diabo, arquitecto a projectar a diluição do ser
em pó em sombra até à incolor indolor passividade da vida de regresso
ao esperma universal, ao óvulo infecundo de deus

podia ter sido um arco-íris entre as pernas do orvalho, um riacho
a desfilar fresco pelos labirintos do cérebro, podia até ter sido cordão umbilical
entre uma nuvem e a tela sob o acto criador de um cego, podia ser
o vento artesanal num teatro de marionetas, gostava de ter sido
a própria terra que engoliu a fertilidade toda do gado mítico, e devia ter sido,
acima de tudo, silêncio
o silêncio
o inevitável

a podridão não é tudo. não há só merda debaixo do tempo. o fio de saliva que desliza pela vida das pedras é a secreção que denuncia o organismo pulsante do mundo, inconsciente, em coma. o mundo está em coma
desde que foi violado. o mundo não despertará nunca. não há eutanásia que o alivie. o mundo respira apenas pelo artificial mecanismo do pensamento humano, pelo artificial mecanismo da fotossíntese, pelo artificial mecanismo das órbitas monótonas dos astros.

se me despeço não é com respeito nem reverência. a prata cobre apenas o revestimento de tristeza e renúncia. renuncio à aceitação ontológica da vida. não entendo o que quer dizer liberdade. não entendo o que significa suicídio.
não quero saber morrer.

deixei de me questionar acerca da verosimilhança da morte. a vida
não é fantasia que chegue, mas a morte é óbvia e estúpida. e estúpidos são os pensamentos que a integram na vida. e estúpidos os artifícios de a recusar no seio dos desejos. chamar nomes aos ímpetos não os afasta
da verdade. os ímpetos descendentes são tão óbvios como a desistência de os combater. amo o instante
anterior à nomeação dos impulsos infinitos. e isto não quer dizer rigorosamente nada

não dei nome a nenhum dos espelhos. cada recanto de mim que exige independência não contém o nome como condição reivindicada. habitam-me sem b.i., sem passaporte. a bem dizer, não sei se não gostam mesmo de ser clandestinos. os de Pessoa deviam ser mais civilizados. davam-lhe mais satisfações, com certeza.
os meus espelhos são silentes, até quando gritam
mais alto do que o vazio que os alimenta.
o vazio grita mais alto do que tudo o que aprendi a
reconhecer. o vazio é o próprio ensurdecer lúcido e esmagador

despeço-me do silvar do frio. despeço-me a cada gesto, de amor
e de lirismo, do silvar do frio. um até já sem convicção nenhuma. um arrufo
de enamoramento entre mim e o lume. um até já inconsequente
numa língua estranha à ceifeira nua e sensual.

se renuncio à vida e à morte, sou louco. eu não sou outro que não aquele que habita ambas as margens do limbo, simultaneamente.
o lado esquerdo do correr dos dias. o lado esquerdo do esquecimento. não renuncio mas não aceito uma ou outra. não aceito viver nem morrer vivendo. quero morrer só depois de morto. despeço-me
desta morte entre aspas
desta morte com nome
e definição
despeço-me das metáforas que a deturpam para lhe dar o sentido de que não precisa para ser bela, como bela é, apenas e só, a nossa

se isto fosse um poema. se isto fosse um poema

há o desgaste também, o roer, o moer de todos os mecanismos mentais de justificação ingénua, o cansaço das pernas, dos arco-íris todos entre as pernas, dos próprios orvalhos acumulados e não reflectidos em nenhum olhar.
há a penumbra densa da emoção, o escape inviolável do delírio e a desistência mascarada de interesse fingido

no silvar do frio habita a resposta ao acenar lamentoso da autocomiseração, mas o frio não se despede. acena também, simplesmente como um anzol trémulo de malícia perante a cegueira dos peixes.
acena-me com o infinito feito gelo, acena-me com o equilíbrio de todas as osmoses que desenham e mantém os glaciares deslizantes como fantasmas


(o peito era diálogo e escureceu)

dez.05.MMV

sexta-feira, janeiro 06, 2006

existiu o longe



© 2006


xvii

existiu o longe
tempo e espaço não eram nomes
mas crateras onde a existência sobrevivia ao degelo

jan.04.MMVI

segunda-feira, janeiro 02, 2006

a continuação do fim

afirmei no primeiro post e, um ano depois, reafirmo o mesmo credo:

a náusea antecipada de mais uma incompletude anunciada pelo esquecimento e pelo desvario de deus em mim, por mim, de mim...
o imenso infinito indefinível tormento da estreiteza dos horizontes que não são de ouro, de cinza quanto muito.
o primeiro relance de um olhar apagado pelo facto de a luz se consumir na extensão da madrugada não onírica, de vigília à beira de um sopro.

obrigado pela companhia espectral

r.e.