por exemplo, lembro com uma espécie de prazer estranho e viscoso o sabor do sangue ainda quente. e a desilusão perante a cor que ganhou ao secar, nada harmoniosa com a imagem mental associada ao sabor. não é imediato que se trate de um prazer sequer, falta de imediatez essa afinal que acontece com frequência em todas as memórias, ainda mais as sensoriais. mas não era também um sangue qualquer. uma vida que se tira é um rito de passagem. como a segunda vida que se habita. como a última luz que é contemplada. são ritos subliminares à existência e frustram qualquer tentativa de análise moral.
não me lembro por exemplo do nome dele. e sei que o soube. não matei nunca ninguém de quem não fosse íntima. no sentido mais visceral do termo (se bem que visceral adquiriu em mim ao longo destes séculos conotações múltiplas).
mas lembro-me por exemplo do perfume que ele usava nessa noite. sei que não foi fácil resistir à tentação de o poupar. a hesitação começou exactamente pelo perfume. não por desejar que ele vivesse mais tempo. não por permitir que me assolasse qualquer impedimento de ordem mundana ou racional. matá-lo-ia de qualquer forma, e beberia o sangue a seguir, como aconteceu. a hesitação percorreu-me o corpo, e não a mente. o perfume viciou-me os sentidos. deixei por instantes de viver antecipadamente o prazer do néctar rubro. desejei poder prolongar aquele quê de místico, porque aquele aroma tinha em mim mais de duzentos anos. não podia imaginar voltar a quebrar o ímpeto por tão pouco. mas a sede e a luxúria da morte é sempre maior.
bebi. li um dia que existiram em tempos no imaginário popular europeu alguns seres, vampiros, como lhes chamavam, que ficaram conhecidos por prazeres e necessidades tão próximas das minhas que percorro a minha memória em busca da noite em que teria devorado algum. e não encontro uma única ocasião em que se instale sequer a dúvida.
não existem vampiros.
iv.07.MMVI
5 comentários:
Obrigada pelas palavras mas ao ler o texto começo a ver grandes mudanças por aqui. Deixo-te um grande beijo de bom dia.
Não, não há vampiros.
Mas há pessoas que têm estranhas formas de amar e que, mesmo sem querer, podem magoar os outros.
Talvez por nunca lhes ter sido ensinada outra forma...
Só talvez.
Desejo-te infinito e uma paleta cheia de côr.
Beijinhos e um sorriso, grande, tão grande quanto o próprio infinito.
Rita
vou ter de cá voltar para ler melhor este texto, porque a questão dos vampiros interessa-me :-)
(É a Sharon Stone)
bj
Já começo a ter saudades das tuas visitas e palavras. Um beijo de boa noite.
S.
Há uns anos atrás, estas figuras lendárias fascinavam-me, ao ponto de deixar que a dúvida em relação à sua existência habitasse no meu espírito! Ao ponto de ser uma desilusão se se chegasse à conclusão que realmente não existiam! Não mates os Vampiros!
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