segunda-feira, agosto 29, 2005

pelas corujas, o fascínio

sonho que me abraçaria num piar selvagem e perigoso
se me entrasse noite escura pela janela semi-aberta
a coruja com que sonho
(a fraternidade dos noctívagos, apesar da luz ameaçadora)


07.05.03

(in a incerta permanência da dúvida, 2003)

(coruja desenhada a carvão, há muito tempo, por r.e.)

esquissos de ti

Espera. Aumenta o volume. Não te vejo. Fala-me de ti. Não. Espera. Repete. Aumenta o volume da tua presença. A nitidez. O contraste. Fala-me de ti. Descreve o que vestes. Não. Espera. Assim, não. Descreve antes o que pensas. Não. O que sentes. Aumenta o volume da tua fragrância por mim adentro. Sim. Por mim adentro. Pela minha alma fora. Aumenta o volume da tua loucura para que te veja. Sim. Agora. Não quando morreres. Agora que a tua cor é Azul. É agora que te quero sentir por dentro de mim. No meu peito. Aumenta o volume da tua insensatez. Aumenta o volume dos teus dedos no meu cabelo. Sim. Descreve o que vês. Espera. Fecha os olhos e descreve o que vês. Não. De olhos fechados. Escuta-me o respirar irregular, num ritmo entre os teus dedos. Abre os olhos e cheira-nos. Olha para o nosso sabor. Vês a que sabemos? Aumenta o volume dos teus lábios sobre a barriga. Ouves? Sentes o sangue a dançar ao som da tua língua? Espera. Aumenta o volume da tua vida. Enche-nos de nós. Nós. Arrepia-te. Abre os olhos. Invade a vida.

Ago.28.MMV
(in a geometria da inexistência)

domingo, agosto 28, 2005

Incognoscibilidade (vários meses antes)

Depressa o sol a cobriu de um tom que evidenciava a textura sedosa da pele, e o Luís recordou a última vez que a tinha visto, ainda durante o Outono do ano anterior. Olhou-a com desejo. Diferente, desta vez. O sentido de missão impera muitas vezes sobre os instintos. Outras não. Desta vez, desnudou-a simplesmente com o olhar fechado, sem revelar o que lhe passava a uma dupla velocidade pela mente. Ela retribuiu o olhar frio de quem reconhece o destino à porta.


Caminharam em silêncio durante vários minutos, alguns quilómetros de dúvidas e receios. A primeira coisa que ela lhe disse foi: «estás preparado?». «Ainda não», disse Luís, com um travo amargo na boca. Ela deu-lhe a mão. Entraram numa zona sombria da cidade, por debaixo dos arcos antigos e sujos pelos pombos, e a cor dela mudou. Deixou de brilhar. Apareceu ao olhos dele com a secura e a debilidade alva que a morte imprime a tudo o que toca. «Vamos?, sugeriu-lhe ele, sem a olhar de frente, sentindo apenas a pressão da mão dela sobre a dele. Subiram até ao local da performance.
Perto do castelo, magnânime como se tivesse descido do céu e instalado em cima das árvores, existe uma praça quase sempre vazia. O Luís conduzi-a até ao meio da praça. Segurou-lhe com uma mão um dos braços, violentamente, obrigando-a a curvar-se para tentar fugir à dor. De uma ou outra janela surgiram rostos. Alguns regressaram aos seus quotidianos, porque a cena não parecia merecer maior atenção. Outros permaneceram. Havia público. Sara perscrutou os seus rostos e exagerou um pouco mais a dor realmente sentida. O Luís gritou-lhe algo que se tornou imperceptível para quem não estivesse ao nível térreo. A lâmina brilhou como que por milagre, sob as copas cerradas das árvores que deixavam a praça coberta de um fresco incómodo. Mas brilhou. E brilharam os olhos à janela. O sangue começou a notar-se por debaixo da camisola, na zona lombar. Ela recurvou-se muito mais do que pareceria necessário a quem do outro lado não pudesse ver o que se passava. A sua posição insólita, dobrada sobre si mesma, já quando ela a largava, chamou a atenção de uma mulher que a tentou alcançar para a ajudar a levantar-se. A mão da mulher ficou tingida e o grito dela foi o sinal para que o Luís desatasse a correr como um fugitivo. Ainda antes de contornar derradeiramente a esquina da praça, olhou para Sara e sorriu-lhe. Ela retribuiu o sorriso, como se o sangue que se libertava do seu corpo fosse o de Rute ou de outra actriz qualquer. Mas era o dela. Ele sabia que ela estaria a pensar na Rute. Apesar de nesse dia ele ainda não a ter conhecido, sabia que os seus destinos estavam desenhados no meio de tantos outros.


Sara fechou os olhos. Uma vez mais. Rute acordará um dia. Uma vez mais.

sábado, agosto 27, 2005

10

espraia-se a vontade pelas coisas inúteis
ou seria desejo místico se a conquistavam outras coisas –
ânsia de sublime imerecido, perspectiva de um sorriso divino
.
pela inutilidade o investimento é devolvido sem pressa
mas cheio da fragrância da auto-comiseração que entope a estima
mas refulge no escuro – líquido fedorento sob nariz obstruído
.
a vontade, a boa, cresce em tons de lágrima sonora
e tempera de moral o deserto, pintalga de fé a sede, equilibra
o poder o real o admissível a vergonha – mata o sonho de ser mau
.

Jun.07.MMV

segunda-feira, agosto 22, 2005

é a alma um polígono frio e débil

é a alma um polígono frio e débil
– desfaz-se em pó azul escuro
quando um pingo de medo desliza
pelo declive polido de cada aresta
permeável à dor.

privada de um véu diáfano que
lhe perpetue a fragilidade, é cristal
mais puro que o desenho ingénuo
do mundo possível que deus desejaria
ter perspectivado.

se a luz a penetra ou a ocultam
sombreados de prata, reflecte
a condição póstuma com que
preencherá o espaço dos futuros
prenhes de morbidez.

quando de placidez a inundo,
deixa-se esventrar pelo corte oblíquo
do tédio e da palavra surda e morta,
num deambular íntimo sem peso
nem forma primordial.


25.11.03
(in a língua secreta do egoísmo, 2003)

domingo, agosto 14, 2005

5



que se universe o teu corpo

a língua, minha, cometa de
cauda líquida sobre firmamentos
desenhados, barriga acima
peito abaixo,
anunciando turbilhões à
flor da pele
(êxtases suspensos)


o reboliço de dedos no
interior, no magma salgado
do teu núcleo, do teu
centro acedido por
brechas e falhas tectónicas
(...sexo boca mãos sexo...)
entreabertas


o meu olhar circum-navegante
(fazendo durar a noite
o tempo da noite e o
dia a escuridão restante)
rodeando de sol desejante
cada planície colina vale
de pernas ventre seios
de uma à outra aurora
(sobre as costas planas
horizontes perfeitos)



14.05.03
(in um barco de papel para Afrodite, 2003)

sábado, agosto 13, 2005

eu não sou o sonho

eu não sou o sonho
sou o estímulo

e a sede que fica
a arder na garganta
quando é parca
a nascente e longínquo
o oceano adormecido

eu não sou o deserto
mas a vontade de viajar
no sentido irreversível
dos caminhos

nem tão-pouco o néctar...
sou a própria idade da colheita

e não fosse eu o espírito
seria a arte de o inventar
para quando o sonho
fosse quase nada

15.04.03
(in a incerta permanência da dúvida)

terça-feira, agosto 09, 2005

(dia 31 de outubro, 2041)

IV
Não encontrei uma porta aberta e continuei sozinho, a percorrer caminhos escuros que o hábito clareia, como se a memória não penetrasse mais além do nível básico da orientação abstracta, como se só funcionasse relativamente ao que a rodeia e nunca ao que a fundamenta. A noite envolve as pessoas que gritam silenciosamente, envolve os pássaros distantes e inexistentes. Não me envolve. Penetra-me. Tentadora, poderosa e submissa. Testa-me a capacidade de não recordar a luz do fim da tarde, a capacidade de reconhecer o belo na escuridão do desamparo.
Percorro as ruas nuas de luz, ou apenas vestidas com os farrapos degradantes dos candeeiros envergonhados e tristes. Uma musa desnudada seria prostituta em bairro de deuses e artistas. A sua poesia seria pó nas mesas sujas de vinho, ode à reveladora decadência do espírito soturno e amargo.

quinta-feira, agosto 04, 2005

XVI. (estudos e interlúdios)

demiúrgico
na placidez da espera
do instante preciso
de fazer nascer
o tremor de vida
que numa lágrima ou
num suspiro
se deixe aprisionar

demiúrgico, sim
na magia de sentir
a morte do silêncio
na vontade de respirar
à pulsação
de um gongo ou um tam-tam

louco, talvez
pela inelutável fuga
do tempo com que nos deixas sonhar
estriado em figuras quase humanas
no previsível como no não-esperado

demiúrgico, repito
na derrota do instante vulgar
transfigurado em suspensão silente
imaculado de novo pelo teu virtuoso aceno
à imortalidade

03.03.02
(in instantes de perplexa aprendizagem, 2002,
poemas para António Pinho Vargas)