Depressa o sol a cobriu de um tom que evidenciava a textura sedosa da pele, e o Luís recordou a última vez que a tinha visto, ainda durante o Outono do ano anterior. Olhou-a com desejo. Diferente, desta vez. O sentido de missão impera muitas vezes sobre os instintos. Outras não. Desta vez, desnudou-a simplesmente com o olhar fechado, sem revelar o que lhe passava a uma dupla velocidade pela mente. Ela retribuiu o olhar frio de quem reconhece o destino à porta.
Caminharam em silêncio durante vários minutos, alguns quilómetros de dúvidas e receios. A primeira coisa que ela lhe disse foi: «estás preparado?». «Ainda não», disse Luís, com um travo amargo na boca. Ela deu-lhe a mão. Entraram numa zona sombria da cidade, por debaixo dos arcos antigos e sujos pelos pombos, e a cor dela mudou. Deixou de brilhar. Apareceu ao olhos dele com a secura e a debilidade alva que a morte imprime a tudo o que toca. «Vamos?, sugeriu-lhe ele, sem a olhar de frente, sentindo apenas a pressão da mão dela sobre a dele. Subiram até ao local da performance.
Perto do castelo, magnânime como se tivesse descido do céu e instalado em cima das árvores, existe uma praça quase sempre vazia. O Luís conduzi-a até ao meio da praça. Segurou-lhe com uma mão um dos braços, violentamente, obrigando-a a curvar-se para tentar fugir à dor. De uma ou outra janela surgiram rostos. Alguns regressaram aos seus quotidianos, porque a cena não parecia merecer maior atenção. Outros permaneceram. Havia público. Sara perscrutou os seus rostos e exagerou um pouco mais a dor realmente sentida. O Luís gritou-lhe algo que se tornou imperceptível para quem não estivesse ao nível térreo. A lâmina brilhou como que por milagre, sob as copas cerradas das árvores que deixavam a praça coberta de um fresco incómodo. Mas brilhou. E brilharam os olhos à janela. O sangue começou a notar-se por debaixo da camisola, na zona lombar. Ela recurvou-se muito mais do que pareceria necessário a quem do outro lado não pudesse ver o que se passava. A sua posição insólita, dobrada sobre si mesma, já quando ela a largava, chamou a atenção de uma mulher que a tentou alcançar para a ajudar a levantar-se. A mão da mulher ficou tingida e o grito dela foi o sinal para que o Luís desatasse a correr como um fugitivo. Ainda antes de contornar derradeiramente a esquina da praça, olhou para Sara e sorriu-lhe. Ela retribuiu o sorriso, como se o sangue que se libertava do seu corpo fosse o de Rute ou de outra actriz qualquer. Mas era o dela. Ele sabia que ela estaria a pensar na Rute. Apesar de nesse dia ele ainda não a ter conhecido, sabia que os seus destinos estavam desenhados no meio de tantos outros.
Sara fechou os olhos. Uma vez mais. Rute acordará um dia. Uma vez mais.
4 comentários:
Hoje é só para dizer bom dia, desejar um bom domingo e uma boa semana!Beijos
Estive na praça junto ao castelo, cerca de quinze minutos após a "execução" da performance e nem sinal de Sara (ou em alternativa de Rute) de mancha de sangue no chão. A um polícia de giro que por ali andava inquiri se algo de estranho se tinha passado no local nos últimos minutos. Em resposta pediu-me a identificação, relanceou um olhar pelo BI e disse-me «Com que então, Luis...de Matos?!»
Uma palavra para não quebrar a continuidade do que li.
e depois Teresa, e depois Manuela,e depois e depois...
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