terça-feira, agosto 09, 2005

(dia 31 de outubro, 2041)

IV
Não encontrei uma porta aberta e continuei sozinho, a percorrer caminhos escuros que o hábito clareia, como se a memória não penetrasse mais além do nível básico da orientação abstracta, como se só funcionasse relativamente ao que a rodeia e nunca ao que a fundamenta. A noite envolve as pessoas que gritam silenciosamente, envolve os pássaros distantes e inexistentes. Não me envolve. Penetra-me. Tentadora, poderosa e submissa. Testa-me a capacidade de não recordar a luz do fim da tarde, a capacidade de reconhecer o belo na escuridão do desamparo.
Percorro as ruas nuas de luz, ou apenas vestidas com os farrapos degradantes dos candeeiros envergonhados e tristes. Uma musa desnudada seria prostituta em bairro de deuses e artistas. A sua poesia seria pó nas mesas sujas de vinho, ode à reveladora decadência do espírito soturno e amargo.

2 comentários:

hfm disse...

Tantas afinidades!

mjm disse...

a percorrer caminhos escuros que o hábito clareia

como se a memória (...) só funcionasse relativamente ao que a rodeia e nunca ao que a fundamenta


Por vezes, não se encontra nenhuma porta aberta, é certo, mas o trajecto e a procura dilatam para outras reflexões. Quantas vezes é no trajecto da fuga, nessa suspensão entre o 'aqui' e o 'ali' que se percebe que «o caminho se faz caminhando».
Sei lá prò que me deu. Gosto muito desta colecção de "futuros".