sábado, fevereiro 25, 2006

xxi

na flor do medo renasces fulva e triste.
quem. quem és. triste da cor do açafrão e incontornavelmente real. renasces
onde. na flor do medo. és incontornável. significas o tempo inevitável.
não. não significas nada. és o tempo mudo.
gotejas vida quando sangras.
és sangue espalhado nos pensamentos. julgaste ser carmesim
mas o teu rio é menos belo. é outro belo. é um som. o rio
que te assassina lentamente vibra como um contrabaixo.
não sei onde morres para reapareceres no medo assim. recebo-te gratamente.
seguro-te nas mãos. o medo fica vítreo contigo dentro.

jan.09.MMVI

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

xv

e foste lume e verde e jasmim e não sabes ainda o infinito que és. a tua alma foi rugido. habita-te agora o eco interminável como abismo que se esgota num sussurro de gigante. incendeiam-se em ti centenas de vidas pensadas por deuses de brincar, e de cada uma só sabes o nome que pronunciam quando se despedem. despedem-se de ti, do albergue anónimo que és para as existências translúcidas que pensavas tuas.

não foste amor nem farol nem eternidade. nenhum deus de vidro te emprestou a sua condição senão em gestos de irónica maldade e de desumanas ilusões. vício. impureza da cor ígnea das paixões.

foste o que desejaste quando te julgavas errante nos desígnios. foste o teu destino antes de o conseguires reconhecer. foste maior do que sonhaste e insignificante aos olhos da tua própria razão. soubeste o valor do belo antes de desistires de o encontrar em ti. desististe depois. apagaste os vestígios da inércia com delírios de omnipresença e venceste a incredulidade com gestos de desesperada fúria e ambição.

foste querubim e palma e penumbra e sabor e sabes somente que nada disso te definiu no verso das tuas páginas, no dicionário das tuas almas.

não foste gramático das tuas paixões, não foste analista dos vocábulos da tua expressão, não mediste os teus impulsos finitos e inconsequentes. quer dizer, mediste. mas não equacionaste os teus valores, nem os comparaste com o eterno nem fizeste sorrir a lua.

foste reflexo e angústia e ventre e arcada de violoncelo e fizeste ressoar ecos que não compreendes e fizeste tremer o chão de países longínquos e o próprio sol te negou irmandade impiedosamente.
e tudo o teu coração fez dissipar-se por um espaço inóspito

dez.21.MMV

contos inconjuntos - II

Não teve tempo de travar.
Fechou os olhos durante os dois solavancos que se seguiram quase imediatamente. Uma agonia repentina invadiu-o, como uma seta envenenada. Quase vomitou. Controlou-se. Parou, finalmente. Não teve coragem de olhar logo pelo espelho retrovisor. Talvez por saber que não iria conseguir ver nada senão o halo vermelho dos stops, débil demais para iluminar à distância a que ficou o corpo.
Olhou então para trás, engatando a marcha-atrás na esperança de conseguir ver algo mais. Mas até parar completamente ainda tinha andado vários metros. Instintivamente olhou à volta e tentou calcular a probabilidade de alguém ter assistido ao que aconteceu. Os casarios dispersos, de um e do outro lado da estrada encontravam-se fechados na sua imensa escuridão. Na mesma atitude defensiva, acabou por desligar todas as luzes. Face à imprudência que seria agir como em circunstâncias normais, ou seja, se tivesse sido voluntário o homicídio, voltou a acender as luzes e afastou-se a grande velocidade do local do atropelamento. Não teria agido assim se se tivesse tratado de mais um trabalho. Devia agir assim naquele momento, contudo. Movido pelo hábito, mais do que pela concreta necessidade, cortou algumas vezes para estradas mais secundárias ainda, para despistar eventuais indícios da sua passagem pelo trajecto fatídico. Exausto pela tensão inesperada daquela noite, parou num café mal iluminado, de província, para poder comer e pensar. Espantou-se por, ao fim daqueles anos todos, de vivências extremas e inquietantes, ainda ter dentro de si reacções quase naturais de pânico e angústia. Endureceu tanto, e havia ainda tanto reflexo por domar. A vida nunca é cruel demais, pensou.
A sensação mais próxima do que sentia naquele instante tinha sido praticamente simétrica a esta. Alguns anos depois de ter sido iniciado no negócio e nas subsequentes mortes, tinha uma missão relativamente simples a cumprir, em termos técnicos, mas extremamente complicada quanto à pragmaticidade da execução. O alvo vivia demasiado perto de uma das suas residências, o que poderia comprometer tanto a sua imparcialidade, como a normal estratégia de disfarce. Talvez por constituir uma excepção, toda a acção se desenvolveu de forma atípica, inclusivamente, ou principalmente, o desfecho – falhou, o tiro não foi certeiro, não teve hipótese de corrigir o erro e o alvo sobreviveu. A oportunidade da missão, em termos organizacionais, não voltou a surgir, e ele teve de conviver com os encontros, involuntários mas inevitáveis, mesmo que esporádicos, com a sua pretensa vítima, cuja presença incólume o incomodava como uma dor fantasma, com uma memória em negativo, ou seja, do que não aconteceu. Tinha sido tão acidental esta morte como aquela sobrevivência. Ambas as situações se revelavam igualmente frustrantes e incómodas. Talvez existisse ainda no seu carácter um sentido de decência nas acções, que fosse despoletado por circunstâncias destas.

Já com o prato à sua frente, a arrefecer há alguns minutos, revê a cena, como espectador e ao mesmo tempo no lugar da vítima. Tenta complementar a sua visão com a imaginação para alcançar a compreensão possível do que de facto aconteceu. A primeira dúvida consistia em descortinar se a pessoa estava efectivamente viva antes do embate. Tentou recolher algumas imagens, mas tinha sido tudo tão rápido. Via um braço levantar-se como a proteger instintivamente a cabeça, mas da mesma forma via o corpo simplesmente deitado de barriga para baixo. Via o brilho vítreo dos olhos esbugalhados pelo terror contra o clarão dos faróis, mas também via o cabelo longo em leque à volta da nuca. Via o tom de pela das costas e das pernas despidas, mas também o padrão axadrezado de um manto sobre todo o corpo. Para esta simultaneidade interseccionista das percepções contribuía uma outra missão, essa bem sucedida, na qual também um atropelamento fez parte das movimentações. Não sendo ele o condutor nessa vez, mas o segundo elemento, a ele teria cabido terminar o trabalho se a força do embate não fosse mortal. Mas tinha sido, de tal forma que a sensação se misturava agora, atrapalhando a reconstituição mental deste episódio recente.
No caso de a pessoa não estar já morta antes da sua passagem, o que estava a fazer ali deitada? Quereria morrer? Vicente começava a colocar as hipóteses por ordem de plausibilidade, pelo menos até onde a lógica permitia. Se estava morta, quem a deixaria ali? Para quê? Para ser encontrada? Para que fosse atropelada? Em nenhum trabalho lhe havia sido alguma vez ordenado que deixasse o corpo no meio de lado nenhum, numa estrada qualquer. Mesmo naquele outro atropelamento tinha sido sua função embrulhar o morto, a morta naquele caso, e colocá-la dentro da mala do carro. O corpo tinha sido depois queimado num desterro afastado.

Vicente acabou de beber o café, apagou o cigarro, e chamou a dona da casa para inquirir da possibilidade de ali dormir umas horas. Havia quarto. Havia sempre um quarto.
Descalçou-se e deitou-se vestido em cima da cama. Acendeu outro cigarro, para acalmar a inquietude. O cinzeiro continha ainda beatas de outras noites, algumas sujas de batôn. Todos estes quartos, ao longo dos últimos anos, se começavam a confundir também. E a náusea que costumava chegar naquele limbo ente a visão vívida e do esquecimento, o entorpecimento das sensações, era também comum a todas as madrugadas que punham fim a mais um dia tumultuoso.

Bateram à porta quando já começava a pegar no sono. Sobressaltou-se. Não respondeu. Seria impossível que alguém ali o relacionasse com qualquer das mortes daquele dia. Nesse momento surgiu-lhe a segunda hipótese ainda não formulada até então. Caso quem estava deitado na estrada não estivesse morto na altura, e não tivesse morrido com o embate, por alguma circunstância imperscrutável, poderia já ter conseguido arrastar-se para perto de alguma casa, ou ter sido encontrado por qualquer carro que por lá tivesse passado entretanto. Se o seu estado não fosse tão grave como era de supor, talvez até pudesse descrever alguma coisa comprometedora. Mas Vicente afasta esta possibilidade tão estapafúrdia, já que a distância a que parou o carro não teria permitido a ninguém ler a matrícula, muito menos no estado em que devia ter ficado. Tentou adormecer de novo, mas batiam à porta insistentemente. Sem saber que horas eram sequer, e com a segurança que os anteriores pensamentos lhe concederam, abriu sem hesitar.

O tiro foi silencioso e mortal. Atingiu-o no peito, e como se não bastasse os três que se lhe seguiram cobriram a sua cara de sangue. De forma mais realista poder-se-ia dizer que o Vicente ficou sem rosto, sem alma, sem nada. Seguiu-se um agitado movimento dentro do quarto. A mulher, de luvas pretas ainda postas, revirou tudo até encontrar as chaves do carro e a carteira. O lema Mata primeiro e pergunta depois, foi executado com disciplina. Confirmou a identidade do morto, a falsa, claro, a que lhe interessava confirmar. Só então fechou a porta, desviando com a bota a perna desarticulada e inerte do caído aos seus pés. Acendeu um cigarro dos dele, com o isqueiro de metal que ele tinha deixado ao lado do cinzeiro, e reviu mentalmente as últimas horas. Ter olhado para ele, com ar malicioso e penetrante, quando ele entrou e se sentou sem saber que era observado, deu-lhe um pretexto aos olhos da dona da casa para subir ao quarto dele. A polícia amanhã que construísse o puzzle, se o caso mostrasse valer a pena.
Acabou de fumar, guardou o tabaco e o isqueiro no bolso do casaco preto, e procurou a arma dele. Guardou-a também, na bolsa larga. Pensou ainda em alterar o que planeara, e levar o corpo dali. Mas aquele dia estava demasiado povoado de imprevistos para mudanças arriscadas.
Saiu para a rua envolta no preto que se confundia com o manto fúnebre da madrugada. Ligou o motor e saiu da vila, de luzes apagadas, guiada apenas pelos reflexos ténues das pedras húmidas.
Estava a ser uma noite longa. A morte tinha sorrido três vezes, em esgares de máscara teatral, para o semblante surpreendido de três espectadores incautos.

dez.09.MMV

XIII

a distância a que me encontro de quem reconheço de mim não me deixa sequer sorrir-me nostalgicamente. e é tão banal já dizer coisas destas
que nos envergonhamos de as ter de repetir a propósito
de nós mesmos. são verdades lúcidas em poetas que morrem a
medir as verdades que ficcionam, e são vulgaridades como o enredo
de uma novela má, ou de uma novela qualquer. a poesia roubou
o lugar à vida fora do poema. é só poema, o que deixa e o que não
deixa respirar, o que atrofia e o que estimula. tudo se balança
no trapézio de cristal dos versos imponderáveis.

árvores que sangram não são já gritos nenhuns, uma asa quebrada não faz
vacilar a fé, e até um adeus fica ridículo
fora da desmesura do quotidiano. amar é um anacronismo
irremediável que servia antes para tornar luz as entranhas e vinho a saliva. amar é resquício de divindade envergonhada entre pagãos, e parece
enclausurado num campo semântico paupérrimo entre milhares «amo-te»
dispersos e distorcidos pelas esferas mais virtuais, pelas redes
menos humanas, mecanizadas em chamadas não atendidas e grafias de um tempo que ainda não chegou.

Se a lucidez e o amor perderem lugar dentro e fora da poesia ou vice-versa, se perderem lugar dentro e fora da vida, é porque
há um espaço exterior a ambas as realidades onde a lucidez e o amor se eternizam, protegidos da miséria que nos define.
se ressuscitarmos um dia reconhecermos o lugar
onde se refugiaram? seremos poetas outra vez?

dez.16.MMV

domingo, fevereiro 12, 2006

iv

haverá uma dor, algures no presente, de contornos vincados a sangue seco
manchas inequívocas do ferro sobre a pele endurecida, o ventre
entreaberto
deixará ressoar no peito, na vacuidade completa do peito, o eco dos melros quase negros, espadas de lume a sair-lhes dos bicos laranja e o sonho
quebrado em análises profanas

mito é o nome rubro da morte, o apelido de família do desejo

dez.05.MMV

sábado, fevereiro 04, 2006

x

sumiu-se dentro de ontem o último desejo. minto outra vez. não era decididamente o último ou não se sumiu simplesmente ou não era desejo rigorosamente nenhum ou não foi dentro de qualquer tempo

ou não minto
(a mentira é uma esfera
convencida de que nasceu com um número finito de lados)

ou minto agora, que interessa

morreu algures o gesto suficiente. agora sei que não minto nem ao dizer que não minto
dividem-se as verdades como o mar esventrado p’la luz
e a esfera assume-se

desapareceu e não soube o que sentir porque não era plano o espelho nem estava dentro da esfera o olhar incrédulo. quando se perde
o que não se sabia nosso é como nascer depois da morte de quem se ama
é como deslocar o mundo para o seu lugar fora da veracidade do próprio deslocar e fazer do mundo o revestimento interior da mentira

e por dentro perdem-se sorrisos de alma apagada pela incandescência da verdade inútil. é sempre inútil a verdade, pergunto. talvez
supérflua fugaz fútil lábil talvez
incompleta como uma pétala vazia como céu antigo vítrea como a felicidade
talvez não seja inútil nem outra coisa qualquer

(somente um quadrado que delira
frequentemente com a sua superfície elíptica de espiral que o embriaga
de incertezas)


morreu dentro de algures sumiu-se ontem o último desejo suficiente algures o último gesto morreu dentro do ontem suficiente sumiu-se o desejo o último algures sumiu-se
dentro do desejo suficiente o gesto morreu
ontem

a que mentira a verdade se agarra para ficar de fora da esfera espelhada, brinco
porque rima imperfeitamente com minto mas é outra forma de salvar a verdade do quadrado insano

dez.13.MMV

xix

absorves a luz. perdeste o paladar mas
fica a sede das texturas da rugosidade da cor sobre a lisura
da alma feita de sensação pura. perdias o dia em escuta
incolor e adormecias no repouso no balançar dos contrastes como
uma sombra repousa no repouso do sol. balouçavas inerte e eras
fogo de artifício. (o passado é um palco inebriante.
a memória um palhaço).

digo-te. névoa. e tu fazes ecoar no espaço uma mulher. ela sobe
por uma corda invisível e pára antes de embater no branco difuso. e fica
ali. é a própria neblina feita carne. carne diáfana como
corpo que perdeu sentido de tão corpo ser.
digo-te. mulher. e esfumas-te num sorriso escultural. és a estátua a um sorriso.

deixas o tempo. levitas sem norte nem peso e
cantas a mesma mudez nua. lullaby sensual. vivias o silêncio em
espasmos e em todos os orgasmos bebeste morte.

habitas-te. és o que conténs e o lado de dentro do vaso sagrado.
és o lado de dentro. o forro. absorves a luz toda e enclausuras-te
num delírio branco, que te cega num milagre profano.
ao contrário. do avesso.
és o teu avesso. o que conténs é o oposto do que és. não eras imagem
nem reflexo. julgavas ser o espelho. e não és.

digo-te. tu.
e morro. era luz.
conténs-me. és-nos.

jan.05.MMVI

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

xi

vão é o equilíbrio que se suspeita alcançar
no sono irreal da vigília
passeiam-se vozes sem importância pelos campos das horas
que se cruzam com os pensamentos, e nenhuma
palavra alheia ganha eco ou reflexo no vocabulário da indiferença.

completamente inútil o hastear das virtudes do acordo, da harmonia entre
o indivíduo e a duna ou o monte de entulho ou outra coisa qualquer
que renomeie o colectivo, o anormalmente colectivo, o artificial
sentimento de pertença que também com o seu manto
agasalha a completa irrelevância.

somos de coisa nenhuma e não quereríamos que fosse outra a nossa
definição, mas não temos palavras para traduzir a aceitação
individual desta evidência. só a sociedade domina
a gramática da insignificância.

dez.16.MMV