quinta-feira, fevereiro 16, 2006

contos inconjuntos - II

Não teve tempo de travar.
Fechou os olhos durante os dois solavancos que se seguiram quase imediatamente. Uma agonia repentina invadiu-o, como uma seta envenenada. Quase vomitou. Controlou-se. Parou, finalmente. Não teve coragem de olhar logo pelo espelho retrovisor. Talvez por saber que não iria conseguir ver nada senão o halo vermelho dos stops, débil demais para iluminar à distância a que ficou o corpo.
Olhou então para trás, engatando a marcha-atrás na esperança de conseguir ver algo mais. Mas até parar completamente ainda tinha andado vários metros. Instintivamente olhou à volta e tentou calcular a probabilidade de alguém ter assistido ao que aconteceu. Os casarios dispersos, de um e do outro lado da estrada encontravam-se fechados na sua imensa escuridão. Na mesma atitude defensiva, acabou por desligar todas as luzes. Face à imprudência que seria agir como em circunstâncias normais, ou seja, se tivesse sido voluntário o homicídio, voltou a acender as luzes e afastou-se a grande velocidade do local do atropelamento. Não teria agido assim se se tivesse tratado de mais um trabalho. Devia agir assim naquele momento, contudo. Movido pelo hábito, mais do que pela concreta necessidade, cortou algumas vezes para estradas mais secundárias ainda, para despistar eventuais indícios da sua passagem pelo trajecto fatídico. Exausto pela tensão inesperada daquela noite, parou num café mal iluminado, de província, para poder comer e pensar. Espantou-se por, ao fim daqueles anos todos, de vivências extremas e inquietantes, ainda ter dentro de si reacções quase naturais de pânico e angústia. Endureceu tanto, e havia ainda tanto reflexo por domar. A vida nunca é cruel demais, pensou.
A sensação mais próxima do que sentia naquele instante tinha sido praticamente simétrica a esta. Alguns anos depois de ter sido iniciado no negócio e nas subsequentes mortes, tinha uma missão relativamente simples a cumprir, em termos técnicos, mas extremamente complicada quanto à pragmaticidade da execução. O alvo vivia demasiado perto de uma das suas residências, o que poderia comprometer tanto a sua imparcialidade, como a normal estratégia de disfarce. Talvez por constituir uma excepção, toda a acção se desenvolveu de forma atípica, inclusivamente, ou principalmente, o desfecho – falhou, o tiro não foi certeiro, não teve hipótese de corrigir o erro e o alvo sobreviveu. A oportunidade da missão, em termos organizacionais, não voltou a surgir, e ele teve de conviver com os encontros, involuntários mas inevitáveis, mesmo que esporádicos, com a sua pretensa vítima, cuja presença incólume o incomodava como uma dor fantasma, com uma memória em negativo, ou seja, do que não aconteceu. Tinha sido tão acidental esta morte como aquela sobrevivência. Ambas as situações se revelavam igualmente frustrantes e incómodas. Talvez existisse ainda no seu carácter um sentido de decência nas acções, que fosse despoletado por circunstâncias destas.

Já com o prato à sua frente, a arrefecer há alguns minutos, revê a cena, como espectador e ao mesmo tempo no lugar da vítima. Tenta complementar a sua visão com a imaginação para alcançar a compreensão possível do que de facto aconteceu. A primeira dúvida consistia em descortinar se a pessoa estava efectivamente viva antes do embate. Tentou recolher algumas imagens, mas tinha sido tudo tão rápido. Via um braço levantar-se como a proteger instintivamente a cabeça, mas da mesma forma via o corpo simplesmente deitado de barriga para baixo. Via o brilho vítreo dos olhos esbugalhados pelo terror contra o clarão dos faróis, mas também via o cabelo longo em leque à volta da nuca. Via o tom de pela das costas e das pernas despidas, mas também o padrão axadrezado de um manto sobre todo o corpo. Para esta simultaneidade interseccionista das percepções contribuía uma outra missão, essa bem sucedida, na qual também um atropelamento fez parte das movimentações. Não sendo ele o condutor nessa vez, mas o segundo elemento, a ele teria cabido terminar o trabalho se a força do embate não fosse mortal. Mas tinha sido, de tal forma que a sensação se misturava agora, atrapalhando a reconstituição mental deste episódio recente.
No caso de a pessoa não estar já morta antes da sua passagem, o que estava a fazer ali deitada? Quereria morrer? Vicente começava a colocar as hipóteses por ordem de plausibilidade, pelo menos até onde a lógica permitia. Se estava morta, quem a deixaria ali? Para quê? Para ser encontrada? Para que fosse atropelada? Em nenhum trabalho lhe havia sido alguma vez ordenado que deixasse o corpo no meio de lado nenhum, numa estrada qualquer. Mesmo naquele outro atropelamento tinha sido sua função embrulhar o morto, a morta naquele caso, e colocá-la dentro da mala do carro. O corpo tinha sido depois queimado num desterro afastado.

Vicente acabou de beber o café, apagou o cigarro, e chamou a dona da casa para inquirir da possibilidade de ali dormir umas horas. Havia quarto. Havia sempre um quarto.
Descalçou-se e deitou-se vestido em cima da cama. Acendeu outro cigarro, para acalmar a inquietude. O cinzeiro continha ainda beatas de outras noites, algumas sujas de batôn. Todos estes quartos, ao longo dos últimos anos, se começavam a confundir também. E a náusea que costumava chegar naquele limbo ente a visão vívida e do esquecimento, o entorpecimento das sensações, era também comum a todas as madrugadas que punham fim a mais um dia tumultuoso.

Bateram à porta quando já começava a pegar no sono. Sobressaltou-se. Não respondeu. Seria impossível que alguém ali o relacionasse com qualquer das mortes daquele dia. Nesse momento surgiu-lhe a segunda hipótese ainda não formulada até então. Caso quem estava deitado na estrada não estivesse morto na altura, e não tivesse morrido com o embate, por alguma circunstância imperscrutável, poderia já ter conseguido arrastar-se para perto de alguma casa, ou ter sido encontrado por qualquer carro que por lá tivesse passado entretanto. Se o seu estado não fosse tão grave como era de supor, talvez até pudesse descrever alguma coisa comprometedora. Mas Vicente afasta esta possibilidade tão estapafúrdia, já que a distância a que parou o carro não teria permitido a ninguém ler a matrícula, muito menos no estado em que devia ter ficado. Tentou adormecer de novo, mas batiam à porta insistentemente. Sem saber que horas eram sequer, e com a segurança que os anteriores pensamentos lhe concederam, abriu sem hesitar.

O tiro foi silencioso e mortal. Atingiu-o no peito, e como se não bastasse os três que se lhe seguiram cobriram a sua cara de sangue. De forma mais realista poder-se-ia dizer que o Vicente ficou sem rosto, sem alma, sem nada. Seguiu-se um agitado movimento dentro do quarto. A mulher, de luvas pretas ainda postas, revirou tudo até encontrar as chaves do carro e a carteira. O lema Mata primeiro e pergunta depois, foi executado com disciplina. Confirmou a identidade do morto, a falsa, claro, a que lhe interessava confirmar. Só então fechou a porta, desviando com a bota a perna desarticulada e inerte do caído aos seus pés. Acendeu um cigarro dos dele, com o isqueiro de metal que ele tinha deixado ao lado do cinzeiro, e reviu mentalmente as últimas horas. Ter olhado para ele, com ar malicioso e penetrante, quando ele entrou e se sentou sem saber que era observado, deu-lhe um pretexto aos olhos da dona da casa para subir ao quarto dele. A polícia amanhã que construísse o puzzle, se o caso mostrasse valer a pena.
Acabou de fumar, guardou o tabaco e o isqueiro no bolso do casaco preto, e procurou a arma dele. Guardou-a também, na bolsa larga. Pensou ainda em alterar o que planeara, e levar o corpo dali. Mas aquele dia estava demasiado povoado de imprevistos para mudanças arriscadas.
Saiu para a rua envolta no preto que se confundia com o manto fúnebre da madrugada. Ligou o motor e saiu da vila, de luzes apagadas, guiada apenas pelos reflexos ténues das pedras húmidas.
Estava a ser uma noite longa. A morte tinha sorrido três vezes, em esgares de máscara teatral, para o semblante surpreendido de três espectadores incautos.

dez.09.MMV

9 comentários:

Rita disse...

Esta foi uma história supreendente. Não a esperava aqui.

É-me difícil pôr-me no lugar das personagens, por motivos óbvios.

Se há aqui uma moral (moral da história), há também uma porta aberta, espécie de espiral que nos faz imaginar que tudo irá continuar - só mudam as mãos.

isabel mendes ferreira disse...

obrigado. bjo. a história?


ascese!




(todaapele)

isabel disse...

Bem, venho deixar um comentário sem ter lido a história. Não tenho tempo agora :(
Venho apenas deixar um beijo e desejar boa semana.

Leio amanha, ok? :)

maresia disse...

perguntas:
1. é verdade?
2. porque é que a meio ele ganha nome? e porquê vicente? inquieta-me mais o nome do que a história em si. porque não um anónimo antónio?

isabel disse...

Só agora vi que me "linkaste", é uma honra!

isabel disse...

O que eu gosto do que escreves...

Tens um dom e não o deves desperdiçar.
Fantástico. Ler-te é um vício!

isabel mendes ferreira disse...

.....nada que já não tenha dito....por isso....agora só um beijo. discreto.

Anónimo disse...

Que conto tão macabro, frio e ao mesmo tempo viciante! Acho que foi o 1º conto que li da tua autoria e gostei, pelo menos agarrou-me. Bom concerto!

Anónimo disse...

Surpreede-me o macabro neste conto.
«A vida nunca é cruel demais.» - fica-me esta frase no pensamento. Acho piada a palavras como: pragmaticidade pela sua estranhesa. Os conceitos de inversão, simetria e negativo vão-se revelando em cada nova leitura da tua obra: «memória em negativo, ou daquilo que não aconteceu» - grato pela concretização. A vida nunca é cruel demais.. a luminusidade macabra do conto incide difusa na realidade como jogo justo e crú.