segunda-feira, abril 10, 2006

#3

por exemplo, aqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio, pose de bailarinos decadentes, lentos, nostálgicos de um tempo glorioso que não existiu.
por vezes a memória do mundo falha ao seleccionar o menos real do passado e fazer dessa invenção inconsciente o paradigma do devir pessoal e histórico. por exemplo, aqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio não remetem para a ovação do fim do espectáculo, não fazem fechar os olhos pela saudade do sentimento de omnipotência que tinha ao voar sobre o linóleo preto de encontro aos braços seguros dele, não. aqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio são a própria ausência desse passado. a decrepitude do que não chegou a passar de um sonho feito mentira da vida a si mesma.
ele nunca olhou para este velho mesmo quando não era velho. ele não recebeu o meu voo quando eu era talvez até capaz de me dispersar pelo ar com o suor como chuva. ele não soube sequer que eu um dia quis ser bailarino. sou um velho. tenho oitenta e dois anos, quase oitenta e três, e aqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio não chegam sequer a ser um riso de escárnio pela mentira que agora renuncio.
sou infeliz. como sempre fui. e se nunca duvidei disso quando o via lançar-se, ele sim, no espaço infinito do palco, não vou duvidar agora da evidência da infelicidade de não poder ver o meu sonho naqueles ramos a esgrimirem o ar em silêncio.

iv.10.MMVI

3 comentários:

Anónimo disse...

Um grande beijo de bom dia.
s.

Rita disse...

J.,

Obrigada pelas palavras ternas que deixaste lá no meu cantinho.

Estes teus últimos textos dizem-me tanto.

Parece mesmo que os escreveste para mim.

É incrível como consegues sempre chegar tão próximo do que os outros são, eventualmente, do que tu és, do que somos todos.

Beijinho.

Desejo-te bem.

isabel mendes ferreira disse...

bom dia POETA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!



(voltei....que bom....acho....pelo menos é bom voltar a ler-te!!!!)

beijo!