domingo, janeiro 08, 2006

v

ante mare, undae
ou simplesmente para a Blimunda

despeço-me em registos de prata, subtis acenos ao ontem
feito hora minha débil e triste. hora minha numa posse injusta.
para que quero o tempo. para que me quer o tempo.
pastel de nata, buganvília, pedra de calçada, sintoma, peso, leque, açafrão ou cadáver.

os segundos não me querem. expulsam-me das horas. fico preso numa eternidade de ponteiros suspensos entre carris, movimento de faíscas a deflagrarem a minha angústia etílica.
esfuma-se de encontro ao branco da inexistência o meu sangue, sépia nos dedos do diabo, arquitecto a projectar a diluição do ser
em pó em sombra até à incolor indolor passividade da vida de regresso
ao esperma universal, ao óvulo infecundo de deus

podia ter sido um arco-íris entre as pernas do orvalho, um riacho
a desfilar fresco pelos labirintos do cérebro, podia até ter sido cordão umbilical
entre uma nuvem e a tela sob o acto criador de um cego, podia ser
o vento artesanal num teatro de marionetas, gostava de ter sido
a própria terra que engoliu a fertilidade toda do gado mítico, e devia ter sido,
acima de tudo, silêncio
o silêncio
o inevitável

a podridão não é tudo. não há só merda debaixo do tempo. o fio de saliva que desliza pela vida das pedras é a secreção que denuncia o organismo pulsante do mundo, inconsciente, em coma. o mundo está em coma
desde que foi violado. o mundo não despertará nunca. não há eutanásia que o alivie. o mundo respira apenas pelo artificial mecanismo do pensamento humano, pelo artificial mecanismo da fotossíntese, pelo artificial mecanismo das órbitas monótonas dos astros.

se me despeço não é com respeito nem reverência. a prata cobre apenas o revestimento de tristeza e renúncia. renuncio à aceitação ontológica da vida. não entendo o que quer dizer liberdade. não entendo o que significa suicídio.
não quero saber morrer.

deixei de me questionar acerca da verosimilhança da morte. a vida
não é fantasia que chegue, mas a morte é óbvia e estúpida. e estúpidos são os pensamentos que a integram na vida. e estúpidos os artifícios de a recusar no seio dos desejos. chamar nomes aos ímpetos não os afasta
da verdade. os ímpetos descendentes são tão óbvios como a desistência de os combater. amo o instante
anterior à nomeação dos impulsos infinitos. e isto não quer dizer rigorosamente nada

não dei nome a nenhum dos espelhos. cada recanto de mim que exige independência não contém o nome como condição reivindicada. habitam-me sem b.i., sem passaporte. a bem dizer, não sei se não gostam mesmo de ser clandestinos. os de Pessoa deviam ser mais civilizados. davam-lhe mais satisfações, com certeza.
os meus espelhos são silentes, até quando gritam
mais alto do que o vazio que os alimenta.
o vazio grita mais alto do que tudo o que aprendi a
reconhecer. o vazio é o próprio ensurdecer lúcido e esmagador

despeço-me do silvar do frio. despeço-me a cada gesto, de amor
e de lirismo, do silvar do frio. um até já sem convicção nenhuma. um arrufo
de enamoramento entre mim e o lume. um até já inconsequente
numa língua estranha à ceifeira nua e sensual.

se renuncio à vida e à morte, sou louco. eu não sou outro que não aquele que habita ambas as margens do limbo, simultaneamente.
o lado esquerdo do correr dos dias. o lado esquerdo do esquecimento. não renuncio mas não aceito uma ou outra. não aceito viver nem morrer vivendo. quero morrer só depois de morto. despeço-me
desta morte entre aspas
desta morte com nome
e definição
despeço-me das metáforas que a deturpam para lhe dar o sentido de que não precisa para ser bela, como bela é, apenas e só, a nossa

se isto fosse um poema. se isto fosse um poema

há o desgaste também, o roer, o moer de todos os mecanismos mentais de justificação ingénua, o cansaço das pernas, dos arco-íris todos entre as pernas, dos próprios orvalhos acumulados e não reflectidos em nenhum olhar.
há a penumbra densa da emoção, o escape inviolável do delírio e a desistência mascarada de interesse fingido

no silvar do frio habita a resposta ao acenar lamentoso da autocomiseração, mas o frio não se despede. acena também, simplesmente como um anzol trémulo de malícia perante a cegueira dos peixes.
acena-me com o infinito feito gelo, acena-me com o equilíbrio de todas as osmoses que desenham e mantém os glaciares deslizantes como fantasmas


(o peito era diálogo e escureceu)

dez.05.MMV

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