terça-feira, novembro 21, 2006

# 13

por exemplo, quando chove no coração e é sempre inverno em nós, ou o tempo desliza para fora da pele e somos suspensão sem atrito nem massa, sem matéria nem corpo, sem nome nem traço distintivo, por exemplo, quando o próprio pronome pessoal nos repele e se recusa a sublinhar uma qualquer identidade, ou melhor, uma qualquer alteridade. por exemplo, um apelido sem ascendência, uma herança sem herdeiros, uma ponte sem quaisquer margens, um rio sem foz e de nascente incerta, maré sem direcção, leito sem curso, seco como o coração dos outros, que Agostinho dizia ser sempre de noite para nós, e afinal é sempre verão sem a chuva que atola as planícies do nosso. por exemplo, quando não estamos já no lugar onde o olhar de alguém repousa, quando a voz que emitimos percorre o labirinto do mundo, e regressa à nossa solidão, intacta como antes da primeira vogal, por exemplo, ou como no próprio instante do nascimento do desejo de ser fala, discurso, viagem, travessia aos antípodas de nós, sem o risco da estranheza nem o sorriso do reconhecimento.

xi.21.MMVI

7 comentários:

Anónimo disse...

por exemplo um ballet sem palco um palco sem luz um baile a sós um teatro vazio… por exemplo um grito sem som um objecto sem tacto uma palavra sem pele… por exemplo uma tela a óleo sem cor um texto sem virgulas um vestido sem decote um passo sem pé um sapato sem salto… por exemplo uma vénia sem corpo um véu de espuma sem relevo um agradecimento final sem palmas… por exemplo um teatro que continua vazio …

*
Mak Tub




http://www.youtube.com/watch?v=FieWP-BwPOE

lu disse...

Quando te leio, recordo-me... do que fui, do que sou. Gostei deste texto... identifico-me. Obrigad a por não desistires de nada, apesar dos temporais que por aí se aproximam. ou nao.
bj

lu

isabel mendes ferreira disse...

pode ser que seja sempre inverno mas Tu fazes-me um pouco de verão....

um pouco / imenso.



____________isa.___________


não ligues ao Y. é mesmo só um ensaio.



beijo.

Frederico Navarro disse...

É horrível andarmos uma série de dias com este tipo de desorientação e inércia perante este filme a que chamam de vida e que não me lembro de ter feito casting para entrar nele. Por vezes sofro-o na pele, ou então sou apenas um mal agradecido...

Anónimo disse...

O Inverno mora no coração , a chuva cai intensamente ... Vamos procurar a Primavera ?
Bonito texto.
Beijito.

Anónimo disse...

"por exemplo, quando não estamos já no lugar onde o olhar de alguém repousa, quando a voz que emitimos percorre o labirinto do mundo, e regressa à nossa solidão, intacta como antes da primeira vogal,"

por exemplo. Um beijo

Rosario Andrade disse...

Bom dia!
...há dias assim. em que a nossa mortalidade reles nos escorre entre os dedos.
bjicos anchos