quarta-feira, dezembro 14, 2005

III

não tenho na boca o sabor dos abrunhos
mas tenho o nome dela gravado sob a
imagem das suas pernas nuas, de infanta,
maria-rapaz, menina viril e forte,
pernas arranhadas pela pele áspera do
abrunheiro velho, pernas que as minhas
mãos desenham no branco do desejo sem
nome ainda, mas com sabor já,
diferente do sabor dos abrunhos maduros
de que perdi o rasto dentro da minha boca

o sexo não é este sexo, nem pulsa
ao ritmo da evidência, nem geme ao
som do silêncio de uma boca que
absorve o travo acre do fruto virgem,
nem se atravessa à frente do próprio
desejo, nem consome a angústia em
amplexos mais amplos que o gesto
que o faz nascer, que o faz morrer
como quem nasce, ou ao contrário -
distinção que o sexo não conhece

desaparece da boca a sede quando
a volúpia inocente chega para brincar,
e não são dedos os dedos – os olhos
com que as mãos cantam alto os
contornos do outro corpo antes de
ouvirem falar a língua do sexo mudo
- como não são seios as colinas trémulas
moldadas em artes de oleiro sem
mestre, pelas palmas das mãos que
asfixiam numa ansiedade adocicada

a infância eram palavras que enchiam
o desejo todo, e fotografias interditas
que o espalhavam ao longo das
horas oníricas entre instantes de
líbido acesa pela incógnita do possível;
eram palavras mais do que os corpos
ou as partes dos corpos que descreviam;
eram a própria essência da pulsão vil
e torpe enclausurada em sílabas soltas
e solta na palavra gemida, gritada

tenho na boca os sabores todos
nos nomes e nas formas decifradas
no escuro ou na luz viva e inocente
da memória frágil que se apaga a cada
aroma a cada cor, devolvidos p’lo tempo
ao fundo branco do espírito que
absorveu o sentido dos impulsos em
golfadas de vida suspensa entre
ritos e sonhos, entre margens cheias
do mesmo sangue, outro ar, sempre


dez.03.MMV

9 comentários:

blimunda disse...

********** nas "intermitências da morte", a desmemória descritiva: deixei-te post. *************

Rita disse...

Acho que já te disse isto: que bonita a forma como amas e desejas - e o descreves.

Bj.

lu disse...

Tudo a partir de um abrunho. A memoria de cores cheiros texturas visões. Gostei muito... o teu estilo está cada vez mais a surpreender-me.
(haja pelo menos algum de nós que escreva).
com saudades lu

blimunda disse...

há um lugar onde as flores não têm nome

há uma terra nunca onde os nomes se dão em flores
improváveis metáforas como pedras
despontando em arribas
sob os gritos de gaivotas
e voam de boca em boca
numa linguagem secreta
silenciosa como beijos
quente quente
de laranja e redondos amplexos

flores não é o que o vento sopra

nem o que a maresia cola à pele
:vou escrever-te um poema
agora que dois aloés
vagueiam sob o meu olhar e esticam
dois braços
e eu
trepo por eles acima
como poderia
pelas tuas pernas até ao teu colo

ficar aninhada no teu pensamento
ser-te o homem sentado olhando o horizonte
ou apenas
mais uma onda desabando na areia

a praia lá em baixo e
os beijos do vento cantam na nossa língua
a nossa surdez faz-nos duvidar do amor do vento

a nossa mudez cala todas as palavras
rente à pedra apenas um rumor
o mar de amar em vagas salgadas
: na arriba há um pescador lançando uma linha
um cão vem e pára

e sou assaltada por uma estranha
nostalgia

alguma vez sentiste saudade de lugares
que nunca viste
lugares de chegar e querer ficar
lugares de permanecer
assim
quieto
silente

extensa a madrugada
vazias as mãos
:sento-me no frio deste lugar e
recolho a alma no agasalho dos ossos


cheira a amanhã
a dia de grande pescaria e até poderia
agora
mesmo
cair uma bruma e eu ficar aqui

entre os aloés
o pescador e o cão que é seu
olhando o horizonte e esperando o meu homem
marinheiro de águas límpidas e
outras terras
inventando nomes para as coisas
ou talvez pudesse ser bom voltar para casa
deitar-me no teu colo
e deixar-me ir
no (a)mar do teu olhar

também o amor tem andar de seda
e cheira a terra molhada pela água
e sabe a verde e azul
ou prata e ouro. não temas porque


traduzimos a ignorância em nomes para as flores

: flor
de
aloé

Anónimo disse...

foi num click de curiosidade a interromper uma pesquisa que deparei com este blog azul cèu_mar reflexo de um mundo notàvel_


de uma blogger principiante

hfm disse...

sempre

Anónimo disse...

Belo poema, com hausto, ou seja, de quem pode encher o peito e ir soltando o ar longamente.

Anónimo disse...

No meio destes escritos senti-me bem, virei com mais tempo para os apreciar com atenção. Parabéns por este seu "cantinho". Beijinhos.

mjm disse...

Tão lindo, Jorge!
Já o tenho vindo reler, assim como ao da Bli. São momentos como este q me deixam de peito cheio.
O mistério do inominável.
A magia do indizível.
Porém, não é silêncio; nem branco; nem halo. É assim como o início da coisa antes de ser coisa; antes de estar suja pelo saber.
--
Reservas uma perna para q tb eu suba e me aninhe no colo das tuas palavras?
Adormecer aí. Na tranquilidade.