quinta-feira, abril 21, 2005

o velho paradoxo

Equilibrar a vida como ponta de cigarro. Quanto maior o prazer da aspiração saborosa de índole melancólica e triste, mais perto do filtro e do cinzeiro, mais frágil o balancear do cinzento ainda agora rubro, mais precária a expectativa de rever as volutas de fumo no ar já saturado. Pelo caminho cronológico dos dias, também a alma adquire a exaustão de um bar de putas, de um salão de bilhar depois da meia-noite, de uma sala de jogo clandestino roubada a um filme a preto e branco. Também o espírito ardente de sapiência latejante se definha no segundo seguinte, na década que se avizinha, no último dia, com a força morta do seu próprio ilusionismo. E a paixão, ah, a paixão, essa mata-hari de todos os declives existenciais...
Sem a hipótese do livre arbítrio quanto ao ter acendido esse cigarro, não poder dizer à partida “não, obrigado, eu não vivo”, como vencer a tentação de lamentar o poder do seu sabor ao preço que o tempo cobra?
Haverá vida de enrolar em mortalha? Existência de rapé? O que será um cachimbo? O próprio mundo que aguarda a erva aromática do nosso sangue, da nossa mente? Para desfrute de que fumador compulsivo?

Abr.02.MMV

(in a geometria da inexistência)

7 comentários:

A. Narciso disse...

Como fumador que sou, impossivel ficar indiferente a este teu texto em forma de reflecção.
Abração

Anónimo disse...

Não fumo. Talvez por isso, o encanto deste texto, para mim não o seja.

Há paixões melhores na vida,sem ser na ponta de um cigarro.

Digo isto, eu, que não fumo...

Araço e bom fim de semana :-)

hfm disse...

"Sem a hipótese do livre arbítrio quanto ao ter acendido esse cigarro, não poder dizer à partida “não, obrigado, eu não vivo”, como vencer a tentação de lamentar o poder do seu sabor ao preço que o tempo cobra?"
Como me revejo!

Amélia disse...

EXCELENTE REFLEXÃO EM TOM DE LIRISMO.
DEIXEI DE FUMAR,(HÁ DOIS ANOS E ALGUNS MESES)POR LIVRE OPÇÃO, MAS CONTINUO, COMO O ENGENHEIRO ÁLVARO DE CAMPOS A DIZER:«SIGO O FUMO DO MEU CIGARRO COMO UMA ROTA PRÓPRIA».

Azul disse...

Paixão irresistível esta que me traz a este lugar e a este texto que considero demasiadamente claro para ser verdadeiro. Adoro-o. Acho-o magnífico pela definição e rigor com que descreve o que sentimos quando estamos na encruzilhada entre amar ou morrer. Parabéns r.e. Um abraço caloroso de mais uma admiradora. LOL. Beijos. ate breve.

soledade disse...

Consumir a vida assim, docemente, como as volutas breves do fumo de um cigarro, na exaustão do tempo, no relativo desfrute. Sim, a paixão, ou embriaguês (de que tipo seja), pode ser um antídoto.
Já não fumo, mas lembro-me do gesto: poucos, na vida e na arte, podem ter uma carga tão subtil e intensa de melancolia introspectiva.

bj

Amélia disse...

quando o regresso, amigo?