terça-feira, maio 03, 2005

Ode a um amor diferente



ouvi sem ouvir o meu nome
que a tua voz sem voz já
deixou pairar silente entre
os teus olhos e a minha dor

ressonância adiada
temido eco odioso
desejado colhido no
prado do tempo sem
promessa esquecido

viajar pela tua memória não
me permiti nem o tempo a
mim concedeu nobreza que
antes iluminasse desejo tal

o vento nas flores
a água nos rebordos
vasos aves aroma a
banha sabor de fruta
o som da tarde

cantei-te sem melodia sonhos
em forma de oração pedaços
de crueldade sem rumo com a
coragem envenenada de amor

fio de rádio parodiantes
luz em fundo sombrio
frinchas de persianas
conversas perdidas na
vizinhança envelhecida

vagueias no limbo do que deixei
quando parti sem desejar voltar
repousas imagem inquieta hirta
imponente invulnerável e dócil

amor que não esbanjaste
mimo inviolado guardado
ignorado talvez revestido
da leveza que a maldade
parece dar ao olhar vazio

talvez muito de ti viva em mim
assim nesta clausura em que me
defino quando fecho os olhos e
um cheiro a mofo me inebria

uma velhice intemporal
meiguice uma subtileza
da voz com a chuva ao
fundo da rua na escada
na relva no teu quarto

não cheiravas a morte no último
dia nem a pele resistiu ao beijo
não foi inerte o olhar inerte nem
mudo o afecto que ecoou em nós

letras que não sabias
não sabendo ensinaste
e nem a amar podias
adivinhar que ensinavas
sendo ódio o dicionário

não partiste agora para mais longe
do que para onde a vida te afastara
estás no mesmo lugar sem morada
em que vivem os diferentes amores

in memoriam
Beatriz Oliveira Pereira
(17.01.1914 - 28.04.2005)
Mai.03.MMV

12 comentários:

mjm disse...

Linda ode.
O meu silêncio e o meu beijo

Anónimo disse...

Gostava de ter a tua capacidade de transcrever "uma vida", sentimentos, para também ficar ainda mais perto de quem nos é muito importante...

Anónimo disse...

O silêncio deixa trensparecer todas as palavras que nao querem ser ditas. beijito.....

Azul disse...

Muito bonito. Sem mais comentários da minha parte, recebe mais um beijo com toda a ternura do mundo. Azul.

hfm disse...

Um abraço de silêncio que só a poesia pode romper.

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Extensa vida que se prolonga aqui. Um abraço.

Amélia disse...

Emocionou-me a elegia.Um beijo

la machina disse...

Pus um ovo!

musalia disse...

nesse espaço repousam as memórias, aquelas que queremos preservar. e fechamo-las, suavemente, adormecidas, nessa caixinha perto do coração...
beijos.

Rita disse...

... um beijo, grande.

Anónimo disse...

Emocionada,ouvi tantos sentimentos nossos/meus/de todos nesta elegia que só em silêncio posso continuar o meu comentário. Silêncio emocionado e recolhido.

r.e. disse...

muito obrigado a todos. J.