terça-feira, junho 28, 2005

Firmes Penas

I


o casario, a luz coada pela
neblina entre aqui e as paredes
sujas pelas tradições de janeiro,
as janelas que se deixaram abertas
por cansaço ou insuspeitada intenção,
ali espreita um rosto, duas casas adiante
apenas o vento a embater no escuro, sem rostos,
somente gatos, talvez, ou ainda os gemidos deles.


o casario não está ali,
chega-nos de longe, de onde um primo (
afastado?) se pôs à frente do carro (não,
não era primo, ou era?), uma perna
partida, acho que sem mais tragédia.


a vinha sem dias nem horas,
por detrás do curral, vazio também
como se nunca ali houvesse cheirado a
asno quando o havia, e só agora o animal
inexistente deixasse o seu rasto subtil, ou são
as velharias que o lembram saudosamente.


a vinha corta o tempo em cristais de cor,
primeiro o negro de melros a atrair o olhar,
as miras, depois, que mancham a lembrança
de vergonha por se lembrar do ar um dia sujo,
do chilriar calado, penas ensopadas em sangue,
depois ainda, o vento a dançar com as folhas
secas (que salvam tarde demais os pássaros
da queda prematura), os cães a viver o sol
raro, cães que as velhas alimentam como
parentes em desgraça caídos, acorrentados.


cheira a vinho, mesmo aqui em cima,
e não vem do casario apenas, impregna
a própria estrada, embebeda até as lagartixas
nas paredes húmidas, fascinantes, dos poços.


cheira a vinho tinto, é sempre tinto
o vinho que nos pinta a lembrança das
palavras gritadas de um ao outro lado
da mesa onde a família julga que está,
o pão é o que se imagina junto ao aroma
ácido, pão de tratamento carinhoso, mesmo
na angústia da fome, quando o houve,
todos os cheiros são familiares ainda, não
o sabíamos antes, nunca, ou teria sido guardado
mais longe na memória; recorda-se o mais
ínfimo detalhe da insignificância e da pobreza.

6 comentários:

mjm disse...

"(...)
conseguiste criá-lo.

________! É belo, sim, assustadoramente."

Claps & thks

Anónimo disse...

vim aqui parar através do #poesia... parece interessante e vou ler com mais tempo, e suponho que não te importas que meta um link no meu blog.

entretanto, passa por lá.

bertus disse...

...subscrevo o comment da nossa comum amiga mjm e sublinho:

"...da mesa onde a família julga que está,"

É "bom" ler a ruralidade "pintada" sem as cores esteriotipadas do bilhete postal.

Parabéns!

musalia disse...

digressões da memória e da objectiva que nos devolve a realidade parcial. a que captamos através do nosso olhar.
beijos.

Anónimo disse...

lindas imagens...
inveja das lagartixas bêbadas das paredes úmidas.
parabéns por sua escrita.

Rita disse...

Daqui, pelas tuas palavras, consigo ver uma aldeia inteira.

Soam-me familiares os sons do quotidiano, assim como o sabor desse vinho tinto ou até desse pão.

Daqui, pelas tuas palavras...