I
o casario, a luz coada pela
neblina entre aqui e as paredes
sujas pelas tradições de janeiro,
as janelas que se deixaram abertas
por cansaço ou insuspeitada intenção,
ali espreita um rosto, duas casas adiante
apenas o vento a embater no escuro, sem rostos,
somente gatos, talvez, ou ainda os gemidos deles.
o casario não está ali,
chega-nos de longe, de onde um primo (
afastado?) se pôs à frente do carro (não,
não era primo, ou era?), uma perna
partida, acho que sem mais tragédia.
a vinha sem dias nem horas,
por detrás do curral, vazio também
como se nunca ali houvesse cheirado a
asno quando o havia, e só agora o animal
inexistente deixasse o seu rasto subtil, ou são
as velharias que o lembram saudosamente.
a vinha corta o tempo em cristais de cor,
primeiro o negro de melros a atrair o olhar,
as miras, depois, que mancham a lembrança
de vergonha por se lembrar do ar um dia sujo,
do chilriar calado, penas ensopadas em sangue,
depois ainda, o vento a dançar com as folhas
secas (que salvam tarde demais os pássaros
da queda prematura), os cães a viver o sol
raro, cães que as velhas alimentam como
parentes em desgraça caídos, acorrentados.
cheira a vinho, mesmo aqui em cima,
e não vem do casario apenas, impregna
a própria estrada, embebeda até as lagartixas
nas paredes húmidas, fascinantes, dos poços.
cheira a vinho tinto, é sempre tinto
o vinho que nos pinta a lembrança das
palavras gritadas de um ao outro lado
da mesa onde a família julga que está,
o pão é o que se imagina junto ao aroma
ácido, pão de tratamento carinhoso, mesmo
na angústia da fome, quando o houve,
todos os cheiros são familiares ainda, não
o sabíamos antes, nunca, ou teria sido guardado
mais longe na memória; recorda-se o mais
ínfimo detalhe da insignificância e da pobreza.
6 comentários:
"(...)
conseguiste criá-lo.
________! É belo, sim, assustadoramente."
Claps & thks
vim aqui parar através do #poesia... parece interessante e vou ler com mais tempo, e suponho que não te importas que meta um link no meu blog.
entretanto, passa por lá.
...subscrevo o comment da nossa comum amiga mjm e sublinho:
"...da mesa onde a família julga que está,"
É "bom" ler a ruralidade "pintada" sem as cores esteriotipadas do bilhete postal.
Parabéns!
digressões da memória e da objectiva que nos devolve a realidade parcial. a que captamos através do nosso olhar.
beijos.
lindas imagens...
inveja das lagartixas bêbadas das paredes úmidas.
parabéns por sua escrita.
Daqui, pelas tuas palavras, consigo ver uma aldeia inteira.
Soam-me familiares os sons do quotidiano, assim como o sabor desse vinho tinto ou até desse pão.
Daqui, pelas tuas palavras...
Enviar um comentário