Não era ainda verão no seu olhar, mas o murmúrio do tempo tinha já adocicado o timbre da voz e o restolhar das pétalas indefiníveis sob os seus pés descalços. Não era ela a mulher mais louca da cidade, mas muitos achavam-se menos do que na realidade eram. Por isso, contas feitas, ela seria a mais doce encarnação da sanidade, num mundo e num tempo propício à desmesura e à crueza das expectativas.
Chamavam-lhe o pássaro sem morte. Nem todos a apelidavam assim. Apenas os que a tinham amado. Incondicionalmente. Quase todos os outros diziam apenas “ali vai ela”, e nessa aparente familiaridade, de nomear como quem aponta com o dedo hipócrita, não sabiam que só denunciavam o contraste da sua própria mediocridade com a elevação do seu espírito leve e imperscrutável.
Há algumas semanas atrás, o taberneiro galhofava com os menos sóbrios acerca das mulheres sem nome. Todos as conheciam por tudo menos pelo bilhete de identidade, diziam sorrindo com a boca desfigurada pela falta de controle muscular que o vinho expõe (mas que não está nunca ausente dos rostos idiotas destes homens, mesmo ao acordar). O taberneiro insistia que o vinho e as putas eram as provas irrefutáveis da presença de Deus, nestes ou noutros termos menos coloquiais. “Sem umas pernas onde esconder a bebedeira, um homem pareceria um louco ou um parvalhão”, sentença auto-analítica de profundidade insuspeitada na boca que a proferia. O Casimiro, do poleiro dos 57 anos, cacareja incompreensivelmente um remate para a ordinarice anterior, mas o vinho canta mais alto e sai apenas um arroto surdo e nojento, que promove as gargalhadas imbecis dos comparsas. O que ele pretenderia dizer fica para dias que não vão chegar. A morte não é tão complacente que permita que todos os disparates sejam soltos sem mais nem menos. Em menos de um ano, este e outros dois ou três como ele farão rezar missas hipócritas. São os ritmos de todos os interiores. Mais evidentes que nas capitais, onde o vinho veste fato, e a morte é acompanhada pelos coros de Mozart.
Nessa tarde, um ruído estrepitoso chamou os olhares à porta escancarada da tasca, mas o olhar não chega e os corpos tentam a dança risível de se levantarem rapidamente. Só quem nunca tentou levar um bêbado pelo braço até casa é que poderá não saber o quadro em movimento parodístico que aqui se refere. Um dos mais velhos ainda se agarrou a uma cadeira manca antes de cair, ele e a cadeira, e os dois copos que o desequilíbrio atira ao chão. Mas ninguém reparou, porque quase todos se esmagavam à porta para poder ver mais, ver antes, como se o seu estado permitisse distinguir lucidamente o que realmente aconteceu.
Não foi apenas o cantar do vinho que foi atropelado pelo barulho disfarçado de trovão envergonhado que soou pela rua toda. Também as conversas cacarejadas na Lina foram silenciadas pelo susto. Com maior aparato na cabeleireira do que na tasca, o silêncio chega sempre como um rebentar de onda no meio da noite. Quando as mulheres falam querendo que a sua versão da história ganhe coerência e verosimilhança, sobe o estrépito das vogais e o arrastar irritante das consoantes. O silêncio forçado varre esta amálgama de banalidades como um estalo num petiz surpreendido num devaneio mais adulto que os seus seis anos.
A Lina saiu primeiro, como senhora de um templo cuja profanação teria de ser esmiuçada inquisitorialmente. As madames impedidas pelos secadores alienígenas não conseguiam engolir os grunhidos da frustração de estar a perder um evento provavelmente imperdível. Mas dor maior era terem de se sujeitar à novela em que a Lina transformaria até o mais desinteressante episódio trivial. Se bem que trivial não era aquele estrondo perigosamente familiar. A Célia seguiu a patroa, o que deixou enfurecidas as clientes que, entregues a si mesmas, se tornavam de repente umas estranhas insuportáveis mutuamente. Toda a gente se (re)conhece sempre por intermédio de um elo inconsciente que alguém representa, cabeleireira ou padre, juiz ou taberneiro. Sem os vínculos subtis de uma compreensão global somos tão irreconhecíveis como um estrangeiro mudo e cego.
O pássaro sem morte jazia no chão.
A perspectiva mais ampla sobre a praça seria a da varanda do Arnaldo, mas não estava ninguém em casa para a desfrutar. Mas de qualquer janela à volta se via parte do cenário, interrompida a visão apenas pelas copas das árvores providenciais contra a curiosidade quotidiana. Dos escritórios da Cont@r as três secretárias e os dois técnicos não conseguiram reproduzir sequer um som que dignificasse o espanto e o horror simultaneamente. Viam, mais próximo do que desejariam, o corpo de um homem. Parecia vivo. Parecia irreal. Parecia familiar.
O cheiro da detonação chegava até aos andares mais altos, quase todos habitados por velhas solitárias cuja surdez natural fez do estoiro um banal ruído de rua, talvez mais um dos diários toques de pára-choques, talvez mesmo um balão a rebentar ou um caixote da casa de mudanças tratado com menor cuidado. Apenas uma das inquilinas do nº 25 se preocupou com o pior, talvez por ser a mais nova, ainda a raspar a margem esquerda dos setenta. E foi dela o primeiro grito, porque o corpo que viu foi o de uma criança, que dali lhe pareceu a neta da Laurinda. Mas não podia ser porque estavam todos a passar esta semana na serra. Mas era uma criança, de qualquer forma, e estar ali deitada de barriga para baixo com o vestido enrodilhado não podia deixar de arrepiar, mesmo à distância de cinco andares.
Jazia no chão, com as mãos abertas e o corpo torcido numa coreografia interrompida.
Os três corpos exibiam imobilidades diferentes. Dois respiravam imperceptivelmente. Um apenas respirava já outro ar. O ar que o pássaro sem morte respirava era ainda o mesmo. Apenas o lume que a queimava era já outro. O de uma tranquilidade imposta à alma pela violência de todos os actos justos e inadiáveis. A sua filha foi a primeira a sair do escuro que envolveu o seu olhar no instante em que o tremor e o medo a fizeram refugiar-se na inconsciência de um desmaio. A primeira pessoa que viu foi o pai. Controlou o grito impulsionado pelo choque do contraste entre a imobilidade presente e todos os gestos passados, que na sua mente voaram num frenesim de luz e som, como numa alucinação. Correu imediatamente para a mãe, abanou-a, chamou-a, e só parou de soluçar convulsivamente quando esta lhe apertou a mão com força, ainda antes de abrir os olhos. A arma estava ainda ao alcance de um braço que intencionalmente se movesse nessa direcção. Só a polícia a tirou de lá, alguns minutos mais tarde.
“Nenhum homem te tocará sem amor nas polpas dos dedos, nem a luz do respeito no olhar, enquanto arder em mim este fogo, querida”, foram as palavras que lhe ouviram quando as separaram para averiguar os detalhes do sucedido. A filha olhou ainda uma vez mais para o pai, com o alívio e o nojo misturado com um sabor ainda indefinível que só muitos anos mais tarde definiria para si mesma.
A rapidez com que o quotidiano se instalou de novo na praça apenas denunciou a hipocrisia de nenhum dos acontecimentos passados e presentes ter constituído surpresa ou novidade. Há lugares assim, onde até a tragédia parece fazer parte do destino colectivo, e o silêncio é a mais cruel das tiranias. Poucas pessoas continuaram a dizer “ali vai ela”. Nem só quem a amou incondicionalmente a passou a chamar também o pássaro em chamas.
5 comentários:
:) ** ** ** ***! ***-*!
Bonito texto este r.e. .
Um beijo para ti. Azul. lol
É sempre bom ler-te!
Estou sem palavras...
deixo beijinho grande
volto mais logo pra ler-te com atenção
www.lbutterfly.blogs.sapo.pt
Extremamente bem escrito, este texto. Minucioso nas descrições e profícuo em imagens semânticas, construído de forma contínua, apenas sincopado para permitir mudanças de plano. Eu 'vi' tudo o que escreveste. Retive algumas frases, retomando-as, como quem saboreia.
Quanto ao 'plot', desoladoramente real.
Lindíssimo conto!
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