quarta-feira, janeiro 05, 2005

Quatro Melros e Eu



uma escultura ao fundo, depois do lago. quer dizer, não é ao fundo. atrás ainda espreitam prédios desalinhados. mas a escultura é um fundo. marca o limite de até onde o meu olhar se detém com interesse. os vários seres que flutuam sobre a água verde (que hesito em chamar patos para não ofender nenhuma plumagem mais nobre) provocam riscos na superfície. riscos, sim. traços. traços móveis. traços curvos móveis. ondulação ténue que o olhar teria de supor apenas, não fossem os traços curvos móveis que os flutuadores provocam. a escultura é branca. já tinha dito? ... não. mas é. fica bem com o verde (apesar de eu desconfiar que o motivo da escolha pelo artista foi mais prosaico e tentadoramente mais económico para o mecenas). mas as aves que perturbam a perfeição do reflexo não querem saber de política cultural. dá-lhes apenas prazer desfazer a pose líquida da sereia. isto já tinha dito, não? ... ... escultura... vários seres... ... não. mas é uma sereia, sim. daí ser evidentemente compreensível (ou compreensivelmente evidente, conforme o sujeito do enunciado) que os ovíparos (espero que nenhum tenha optado por modernas técnicas reprodutivas) não engracem com “aquilo” ali deitado sobre a água, que parece tão forte e se desfaz em riscos quando eles simplesmente mergulham a cabeça, ou até quando somente defecam. sim. já contemplaram a maravilha de um pato a defecar num lago? porque é que pensavam que a água era verde? pelo reflexo das árvores? sim, à volta existem árvores, mas isso nem vou confirmar se já vos tinha dito. antes, no entanto, que o meu olhar chegue ao lago serenizado (modificado pela imagem da sereia, entenda-se), detém-se num pequeno palco, baixinho, de pedra, feito de paralelipípedos cinzentos e de rebordos desenhados a verde pelas ervas que os tentam separar uns dos outros. chamei-lhe palco? talvez pela ideia que promove de que a qualquer instante ali se possa passar algo que mereça o aplauso de quem, arbitrariamente, se sente nos lugares de pedra que circundam metade do espaço - (tenho quatro melros a olhar para mim. dois machos e duas fêmeas. será normal? Ou fará parte do espectáculo iminente?) – há um paralelismo entre as superfícies. O lago onde os mandarins e os marrecos dançam sem saber que dançam, e o palco de pedra onde os pombos se exibem sem saber que são as estrelas. eu tinha falado dos pombos já? isso é lamentável, até porque sobre eles não hesitei em chamar-lhes pombos. e nenhum desaprovou (sim, houve um que quando viu os melros sentiu uma pequena inquietação de identidade, mas disfarçou). os pombos não têm uma imagem de sereia para riscar. não têm jeito para dançar. a bem dizer, só partilham com os vizinhos do lado o fascínio pela acção de defecar. e isso não me atrevo a duvidar de que já tenham presenciado. De resto parece não terem ali mais nada a fazer. como eu. não. não se preocupem, porque só partilho com eles esta inércia. mas eu tenho um propósito. importante, e bem definido. Vim fazer de conta que vinha estudar. e fiz.

(16.00 h)

1 comentário:

v disse...

Anfiteatro do Centro Arte Moderna.
É bom fingir. Eu gosto de pombos. Ninguém gosta dos pombos cinzentos e sujos de Lisboa. Gosto deles porque alguém tem de gostar deles. Se ninguém gostar o mundo fica insuportável e eu não sei viver nele. Se ninguém gostar eu vou sentir tristeza.