terça-feira, janeiro 18, 2005

luz em pó

sobre a cómoda resta um fio
que o existir das coisas
não consegue quebrar – só
refractar (
o frasco de perfume há mais
de vinte anos bem pesados,
um santo, outro, aquele
iluminado, uma maçã
que não está ainda mais
engelhada que as do cesto
ao lado, um homem antigo
daqueles que sabemos
terem morrido mesmo
que vivos, fotografia nunca
olhada com amor,
uma caixinha, minúscula
para os comprimidos que
dali a vida tem tirado, um
livro, orações que usei para
a ajudar a dormir nas asas
de deus, uma caixinha que
nem ela soube nunca para
serve, um retalho de pano
que servirá para o quase
imperscrutável, e pó
)
- pó que reflecte sem
refractar a luz das frestas
da persiana suja.

para a minha avó, que fez 91 anos

(Jan.17.MMV)

6 comentários:

hfm disse...

Belo poema das memórias!

musalia disse...

Linda homenagem! e cheia de pormenores atentos a uma vida que foi passando e deixando lastros de memórias.
beijinho.

Anónimo disse...

Gostei mesmo muito. Uma forma diferente de marcar o tempo. Bonita oferta, também.

Beijinho :)

Anónimo disse...

O comentário anterior foi meu: Sandra (http://www.void.weblog.com.pt)

Desculpa. Eheheh...

r.e. disse...

obrigado pelos vossos comentários. a idade dela já a faz não ter lucidez para me escutar a ler-lhe o poema. mas foi pelas memórias do quarto dela que o escrevi. obrigado a todos. J.

soledade disse...

A memória é de facto uma benção. E a matéria por excelência da poesia. Está tão presente a avó, nos detalhes do quarto, nos objectos da cómoda, no espólio da vida que o poema faz brilhar como luz. Em pó - que seja - mas luz.
Entendo-te: perdi a minha avó há dois anos. Tinha 96 anos. Longas, doces matriarcas.
Um beijo