domingo, janeiro 23, 2005

a vénia

Sento-me sem olhar muito em redor. Descer as escadas cansou-me. Não sei quanto tempo quero ter ainda. Fecho os olhos, e tento abstrair-me do ruído. Adormeceria. Mas sou sacudido por um grave estertor que me alimenta a curiosidade. Desci por isto. Por isto abro os olhos.

As carruagens sucedem-se numa amálgama de luzes e vultos desfocados, cuja nitidez aumenta com o chiar do ferro nos carris. Eles e elas saem apressados. Nem sempre é a necessidade de chegar a algum lado no próximo instante. Às vezes penso no medo que as pessoas poderão ter de ficar dentro da carruagem, como se alguma ameaça lá as esperasse. Mas deve ser apenas mais um fenómeno de grupo, e os poucos que precisam mesmo de correr, levam nesse impulso todos os outros, como nas religiões ou na arte.
O ferro recomeça o seu namoro de atrito quente, e revejo-me ainda algumas vezes nos reflexos cada vez mais impossíveis das janelas em movimento.
A súbita ausência de volume à minha frente cria-me uma sensação de vertigem horizontal, estimulada pela plataforma distante, do outro lado dos paralelos ainda trepidantes. Demoro alguns segundos a habituar-me ao cenário, quase irreal, que o silêncio agora preenche à minha frente. Apenas circulam na plataforma de lá algumas pessoas que, por isso, parecem conhecer-se bem.
Ele encontra-se de pé, numa posição relativamente ao limite do fosso que não daria para entender se ali se encontrava há muito tempo à espera, ou se teria acabado de sair num anterior combóio e apenas não sabe para onde ir. Contudo, sei que é a primeira hipótese a correcta. O seu rosto já me tinha ficado registado no espírito no instante breve em que olhei em frente, quando me sentei. Vira-se um pouco para a esquerda, ficando praticamente de frente para mim, como se se soubesse observado, mas não desejando o confronto visual. Noutra perspectiva, parece até olhar-me, mas daquela forma de perscrutar o vazio que alguns músicos têm, quando num recital ou concerto varrem a plateia com o semblante enigmático, e ...

... me fixo num ponto que, a ser uma pessoa, passa a partir daí a representar aquele outro elo de uma irmandade dual, que noutras circunstâncias chamaria apenas de compositor. Nestes momentos, ou melhor, a partir daqui, o concerto flui como uma discussão quase sempre indolor com essa figura distante. Estou então pronto a olhar para o chão, sentir o corpo apelar a uma desistência benigna, e começar inesperadamente a tocar. O violino nessa fase do meu desequilíbrio funciona como as varas dos equilibristas, que amplificam controlando as diferenças laterais de peso. Também aqui se dá essa compensação, que a literatura técnica chama de expressão ou intensidade emocional. O meu corpo balança-se, suavemente, mecanicamente ...

... como se a demorada espera lhe estivesse a dar cabo dos nervos, a destruir a paciência que todos levamos connosco em cada manhã para o labirinto do dia. Olho-o já com curiosidade, e não apenas com a antipatia que inexplicavelmente me tinha assaltado. Somos poucos, agora, o que nos devolve aquela sensação familiar tantas vezes perdida ao longo dos caminhos, de que estamos envoltos nas mesmas quimeras e derrotados pelos mesmos dragões.
Mais duas pessoas parecem querer fazer parte do seu ténue movimento, aproximando-se das linhas amarelas de aviso. É já aquela pressa, com o inerente engano de que sairão mais depressa da carruagem se estiverem há mais tempo preparados para entrar. Talvez não seja por outra razão senão a natural estranheza, mas lentamente se afastam do homem absorto no seu ...

... movimento que me embala e ampara, entre duas frases de igual importância. O público não deve ter nunca verdadeira consciência de que está perante apenas mais um mortal a criar a dupla sensação de imortalidade na companhia de outro mortal. Deve, sim, acreditar na plenitude espiritual do instante ali mumificado.
Há certas passagens que me fazem irritar quando as estudo em casa, e que nos concertos se revelam quase sempre novas, como que escutadas interiormente pela primeira vez. São as que dão menos prazer tocar. São as que me fazem sentir inútil. Como esta que agora vou começar, mal a orquestra termine a resposta à minha anterior dádiva. Prefiro nestas alturas fechar...

... os olhos. Às vezes também os fecho para poder contemplar a realidade como surpresa e não como imaginário construído. Mas não sei se é a mesma ambição que o move neste seu cego balançar. Começo a hesitar internamente entre uma atenção descuidada e um controle total das suas emoções. Não me sinto capaz de nenhuma das formas de estar, neste momento. Fecho igualmente os olhos, não pelo prazer de os voltar a poder abrir, mas pela incerteza que se instalou. Não chego a perceber de que cor era a escuridão, pois a trepidação regressou e do outro lado da estação, reacendem-se as rápidas cenas, como de um filme antigo, das carruagens em movimento decrescente. A fúria das pessoas em fuga trá-lo de volta, pois quase o derrubam na sua cegueira. Vejo-o do outro lado das janelas, que já se movem novamente, ainda devagar.
Desvio o olhar infantilmente quando me apercebo que sou tão observado quanto observador. Porque nunca aceitamos o óbvio? (Por o óbvio nunca ser verdadeiro? - penso). Deixo-me de criancices e assumo o meu papel de ser vivo, social, e todo esse blá-blá-blá pseudo-definidor de conjunto. Olho-o frontalmente, e sou humilhado pelo seu desinteresse. Não era propriamente para mim que olhava afinal. Parece que olhava para alguém que pareceu reconhecer...

... na antepenúltima fila da primeira plateia, ao lado do homem que dorme enquanto me esvazio de emoção na cadência. Parece mentira sentir-me capaz de analisar estas futilidades enquanto faço o que amanhã originará uma crítica fabulosa nos jornais da especialidade (onde se realçará a minha quase irreal concentração e inspiração em momentos de tamanha expressividade como este mesmo instante). Porque é que nunca acertamos com os verdadeiros estados internos dos outros? Porque o óbvio é mais seguro (sim, apesar de n...).
A orquestra pega na minha deixa triunfante, e sente-se de novo útil. No fundo, cada músico tem sempre o seu pequeno instante em que sente justificado o dinheiro do bilhete. E este momento é um deles. Não fora toda a orquestra reafirmar, confirmar, relembrar, o que eu acabei de tocar, a cadência ficaria tão ridícula e insolente como um choro de criança contrariada em frente a uma montra de brinquedos.
Nem o estrondo do tutti o acordou. Impressionante.
Estou cansado. Agora que não estou a tocar, consigo desfrutar um instante da beleza do concerto. O tema aparece agora lá longe, onde não estou, e isso dá-lhe um carácter tão sublime quanto inalcançável.
(A música diviniza-se no instante em que se liberta do peso da nossa alma). Quem a tocará nesses momentos?
Por momentos, não sei se já acabaram de tocar. Sinto-me como naqueles truques cinematográficos em que o sujeito fica aparentemente surdo, em que as imagens se passam muito desfocadas e lentas, e onde normalmente se pressente o aroma da tragédia. Já sei onde os realizadores vão buscar essas idéias. Não acabaram ainda, diz-me a quietude da maior parte da audiência. Suspiro novamente ...

... e volta a olhar-me, como quem sorri por detrás da expressão inalterada. Já não sei se sou eu que ainda estou aqui por ele, ou ele por mim. Poderia fazer a prova, levantando-me.
Levanto-me, e aproximo-me da linha amarela no chão. Pergunto-me sempre como calculam a distância onde pintar tamanha segurança. Agora que estamos mais próximos, instala-se outra irmandade que não a anterior. Outro elo. Outro abismo. Nunca mais cruzaremos o olhar.
“Porquê?” – apetece-me perguntar-lhe. Seria tão óbvio, mais uma vez. Que raiva!
Sinto-me estremecer de novo.

É o público que se manifesta exaltante, numa cerimónia quase vazia de sentido já, de gritar, aplaudir, fazer-nos acreditar no que criámos. O chão quase treme...

... apesar de ser apenas a sensação ilusória criada pelo ruído. Num filme veríamos agora a cena, na perspectiva do condutor, ou mais radicalmente através de uma câmara nos carris, à espera da luz ao fundo do túnel (mas de sentido metafórico invertido). Olhamo-nos sem disfarçar. Respiro irregularmente...

... não controlando o fluxo emocional de que nunca somos capazes de falar, porque só o conhecemos assim, nos derradeiros instantes. Olho-o, agora que acorda, e inacreditavelmente não lhe sinto um desprezo maior que à restante plateia. Neste momento todos representam novamente a mesma “outra coisa”. Avanço lentamente para a frente, para a boca de cena, com os cavalheiros e as senhoras da primeira fila a tentarem sorrir de forma diferente, numa cumplicidade que não existe. O estertor da orquestra a elogiar caracteristicamente o meu desempenho, incomoda-me. Batem com os arcos nas estantes, raspam os sapatos no chão, como se se retirassem teatralmente do mérito dos aplausos. Olho-os, de sorriso enigmático no rosto. E encaro a luz dos projectores que obrigam a semicerrar os olhos ...

... como se me perscrutasse a intuição. Como se me interrogasse também do meu porquê. Os carris entre nós são um duplo espelho. O combóio anuncia-se, num ronco já familiar. Não preciso de me afastar para trás da linha amarela. Contudo, num reflexo natural, a proximidade e a ferocidade do monstro de ferro faz-me recuar, como se me protegesse até das vibrações que já se sentem ...

... num tumulto de mãos, e bocas que tecem comentários ao parceiro, e olhares, uns felizes outros verdadeiros. Resta-me retribuir a falsidade com falsidade, a ilusão com ilusão. Jogo o seu jogo uma vez mais.

Vou deixar de o ver quando as janelas brilhantes se interpuserem entre nós. E a multidão sair e o tornar parte dela, ou ele entrar na outra multidão que segue e se tornar novamente incógnito. Vou deixar de o ver, no preciso instante em que ...

... me debruço para a frente, num ímpeto sem cerimónia, de quem agradece sem sentir o dever de agradecer. Num impulso brusco, deixo o meu peito pender e olho o chão ...

... e não vendo, sabendo, fecho os olhos sem conseguir sequer gritar.


Precisámos um do outro, num diálogo de deuses.


31.08.02


5 comentários:

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Que sopro, que fôlego!
(actualizei os links, e claro, inclui esta extensa madrugada)

A. Narciso disse...

Obrigado pela visita que me permitiu vir conhecer o teu espaço. Gostei do que por aqui se escreve.
Abraço Jorge

Anónimo disse...

Pity that only a few of us have the privilege of becoming acquainted with your amazing writings.
I have to thank you. This way I can "feed" my spirit and save money. :)

mjm disse...

Já quando me visitaste aqui vim espreitar, assim muito ao de leve, e gostei dos traços largos que pude observar. Mas tenho o péssimo hábito de 'ler' mesmo, o que me faz demorar e por vezes não disponho do tempo que cada um me merece.
Apenas para deixar expresso o agardecimento e dizer que voltarei para me sentar.
Kisses

Anónimo disse...

Já o conhecia, mas é bom voltar a relê-lo.
Q