domingo, janeiro 16, 2005

um livro por escrever

Através das cortinas sujas, diáfanas apesar disso, consegue observar a desorganizada aleatoriedade das pessoas que dia após dia lhe passam diante da janela. Nunca a sua memória visual lhe permitiu reconhecer alguém (embora admita que possam ter havido casos, espera que poucos, de pessoas lhe terem passado despercebidas ou inadvertidamente irreconhecíveis). Já não sabe o que ali faz, horas a fio, mas continua na convicção plena de que algo ali espera por si.
Escreve em folhas sujas - sujas de tinta em descuidadas pinturas e sombreados, sujas de pó pela ausência de palavras, sujas dos rastos deixados pelos insectos que consigo privam e ajudam a devorar não só os encadeamentos dos segundos, como também os resquícios de papel resultante de inúmeras rasuras. Mas no meio deste labirinto que viola a desejável brancura do receptáculo literário, sempre consegue encontrar um canto onde anotar cada nova descrição.

Almoçou parcamente, como de resto acontece com todos os momentos vitais da sua presente existência. Deixou-se cair novamente na poltrona que, desde o dia em que a comprou à família do vizinho falecido, acredita proporcionar o contacto misterioso com uma certa forma de dormir, necessária à sua tarefa diária – um dormir de olhos despertos, um sono de guarda vigilante, que revê no sonho confuso a dança de rostos desfocados apreendidos durante a manhã. Apenas o leve roçar de alguns sapatos na calçada lhe faz tremer levemente a dormência, mas retorna de seguida o estranho sono, até acordar pelo despertador interno que lhe diz que a matéria anda à solta e é preciso trabalhar, o que acontece quase sempre de manhã e ao fim da tarde, horas de maior afluxo de deambulantes almas à mercê da sua janela de olhos atentos.

Com sapatos de roçagar leve pelo chão, submissos e arrastados, em cadência quase morta, o vulto que mais perto se encontra de si e dos seus olhos no vidro é um homem ainda novo. Em tanta gente uniforme e monotonamente igual, já quase nada lhe permite distinguir da multidão um ser individual por alguma característica especial. Quando tal acontece, o punho começa a tremer levemente, e a alma tenta respirar silenciosamente para não acordar a ansiedade que ao lado espera. Nesse momentos sabe que escreverá uma frase, uma descrição breve que seja, um suspiro em forma de palavra, qualquer coisa, mas influenciado pela característica observada.
O homem que esta tarde lhe perturbou o sono a ponto de pensar que ia escrever, apenas se distingue da alucinada nebulosa viva, pela incongruência do seu vestuário com a leveza do andar. E pormenores destes acabam por não chegar para escrever seja o que for. É daqueles casos em que a ideia fica no espírito a acumular com outras não realizadas, à espera que o conjunto suficiente de pormenores mereça o esforço de violar o vazio, arriscando a perdição da inocência do não-escrito.

Apesar de tudo, não é uma pessoa distante do mundo.

Ouve também muito bem. Por vezes, joga toda a sua confiança na audição. Deixa-se estar de olhos fechados, mesmo depois de saber que os devia abrir. Mesmo por saber que a material transmutação das suas personagens anda lá fora, deixa-os estar fechados e testa-se nessa coragem angustiada. Cada som de vestido esvoaçante, cada murmúrio de passos distantes, cada assobio de passagem veloz, se podem tornar sinais de presenças a reter.

Tem ao lado da poltrona uma estante de madeira, muito velha também. Cheia de livros que não abre há muito tempo. Nem sempre leu muito. Há alguns anos que a vida se tem organizado em torno da ilusão da escrita, e não da miragem da leitura. Antes, em cada vulto reconhecia algum traço de um personagem lido, e revivia nesse momento a alegria de partilhar com um grande escritor a revelação da universalidade do ser humano, como se em todos e em cada um de nós um livro já escrito se desfolhasse a cada dia volvido.
E não é em destino que pensa ... seria em poesia metafísica, se pensasse nisso.

Quando arrisca escrever uma palavra, sabe o peso que a tinta exerce na sua alma, mais do que no papel ansioso, à sua frente. Ao tentar iniciar uma descrição, pondera primeiro a forma como relacionará determinada particularidade observada com outros aspectos que queira atribuir a um ou outro transeunte. Porque não só do observado se constrói uma imagem...

Escreve desordenadamente... dolorosamente, ordena de novo o branco em pinceladas de censura e desilusão.

Anoitece lentamente...
...

Um passo ...

Acorda sobressaltado ...

(17.07.01 - rev. 2005)

3 comentários:

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Senhor, que pedaço de escrita! Ia lendo, cada vez mais deliciada e emocionada (é verdade), e pedia para que o texto fosse teu e não uma citação (que valeria pela possibilidade de leitura, mas que me cortaria um pouco a emoção!
Parabéns.

r.e. disse...

obrigado, Diva, pela visita e pelo comentário. Ainda bem que gostaste. volta sempre. pensarei em vocês no dia 18. beijinho. J.

v disse...

Acabei de ler. Impressionante comentares a quantidade de coisas que se pensam escrever e que nunca se transformarão em palavras escritas, ou poderão sê-lo mas num futuriop quem sabe, ficando guardadas à espera de um contexto mais complexo onde se adequem.
E mencionares também o importante que é reconhecer num grande escritor o nosso pensamento. É energia, ânimo. as nossas análises e descrições por eles, os que já tiveram e tem glória.