quarta-feira, janeiro 12, 2005

a matilha

Como num dia de outono, a luz incide-lhe nos olhos, a uma certa distância, ao de leve. Paira um pouco antes de lhe lamber o rosto, mas acaba sempre por beijá-lo docemente. Dá-lhe uma nuance pálida aos contornos, mas enobrece-lhe o olhar, já que para recebê-la ele os deixa por alguns instantes vazios – abertos, mas vazios. Encantadores. Mais do que a sua consciência consegue projectar para fora de si, sente-se mal. Olha em frente sem ver, pensa sem existir fora do pensamento.
Apercebe-se da minha presença e respira de cansaço.

Ao longe, as nuvens desenham corvos azuis claros e unicórnios. Na sua mente qualquer construção natural tem o seu quê de inexistente e fantástico. Porque o real tem sempre o mistério de não ter ainda existido.
- Mais um dia assim – diz-me, numa apatia familiar, sem se voltar.
- Mais um dia assim – replico com tranquilidade, sem desviar o olhar dos unicórnios.

(São lobos)

Abraça-me, como eu o tivesse pedido, mas sem me encarar, sem me deixar mexer, sequer. Estamos sozinhos, perante árvores distantes, relva húmida, sol inquiridor. Mas ainda me toca como se de uma oferenda se tratasse, uma generosa aplacação do meu desejo ou da minha sensibilidade.

Aos quinze anos ele já sabia sobre o que é que o sol perguntava com tanta insistência. Eu só mais tarde compreendi o julgamento celeste. Os nossos desaguares foram recebidos nos antípodas dos afectos – os meus amigos são meus amigos; os seus ex-amigos são estranhos com nome. Moveu-os o comportamento fácil da incompreensão, ou o mecanismo mais complexo do medo. Os meus escolheram o labirinto da turbulência relacional, mas navegaram por esse mar de dúvidas com a resolução de uma questão pessoal – se tinham fantasmas pessoais a respeito da sua identidade, enfrentaram-nos e sobreviveram. Os seus ex-amigos, sucumbiram aos seus fantasmas sexuais, e continuam sem saber como lutar se um dia a tempestade não for bater à porta ao lado.

- A que horas chegaste?
- Há praticamente duas horas. Ainda não fui a casa. Calculei que estivesses aqui. Queres ficar sozinho?
- Não. Acho que não. Quer dizer, não sei se quero ficar sozinho ou não. Mas, pelo sim pelo não, fica. Posso descobrir, entretanto – acaba por dizer, sorrindo, e pela primeira vez depois de três semanas sem nos vermos, olha-me e beija-me, como se já tivesse encontrado a resposta.

Depois de algum tempo sem pensarmos em mais nada senão no nosso idealizado futuro e no banal presente, começamos por vezes a querer vasculhar o passado, passá-lo a pente fino. Queríamos descobrir um gesto, uma palavra, um dia diferente, uma oferta, um abuso, um trato, um carinho, algo... Fosse o que fosse, acho que nos satisfaria. Depois de alguns anos deixamos de ambicionar a verdade. Serve-nos o que encontrarmos. Nessa altura duas coisas podem suceder: encontramos algo que achamos digno de nos reprimir o sentido de culpa por um número de anos que consideremos suficientes; ou não encontramos mesmo nada, e temos de construir para nós um novo passado prenhe de coisas a encontrar se procurarmos com determinação teleológica. Na melhor das hipóteses não temos consciência de qual das duas situações nos corresponde. Na pior, sabemos ser uma delas e estamos conscientes da infelicidade que esse conhecimento comporta.

Retribuo o beijo, sem desejo, sem vontade de pensar nos porquês da indiferença. Sei que ele prefere assim. Não saber que não se é amado faz com que o tempo pareça distender-se à nossa frente até decidirmos olhar para a verdade. Saber que não se é amado faz caber a eternidade numa hora, como o Blake pensava que sabia.

(Somos lobos)

- Não vou ficar muito tempo, provavelmente. Acho que está a ser ridículo demais para a nossa condição e idade. E mais ainda para o que pensamos de nós próprios e mutuamente. Tens pensado no vazio que nos espera?
- Não. Tenho pensado no vazio que habito. Como tu, pelos vistos. Que vazios temes tu ainda?
- O anonimato e a vulgaridade. Ambos definições do passado, ambos à nossa espera. Eu pelo menos só encontrei um nome em ti. E sei que perderei o meu quando sair.
- Voltar a ser uma boca ou um pau apenas, às escuras ou debaixo da luz amarela refractada no pára-brisas embaciado, não será propriamente original, mas talvez por isso mesmo não me assuste. Assusta-me poder não reconhecer de novo becos sem saída como o nosso.

Não me emociona ouvi-lo mentir. Como não me emocionou antes dizer a verdade. Afinal de contas ambos sabemos que a emoção maior vive sempre fora do que se vive emotivamente. O que se vive com entrega nunca pode ter nada de precioso, ou a eventual perda surgiria como uma ameaça que ninguém ignoraria. É estúpido pensar assim, sabendo que não se tem razão no que se pensa.

Os corvos clarearam ainda mais, não sendo mais que alguns riscos brancos já, penas soltas. Ele levanta-se. Passa-me a mão no cabelo. É uma despedida típica. Como se nos fôssemos encontrar logo à noite em casa, depois de cada um ter ocupado parte do dia na camuflagem diurna da cidade. Sem me voltar, ouço a porta do carro fechar-se. Pelo arranque, percebo que palavras não me disse. No cavalgar do último unicórnio ouço as palavras que eu próprio não quis dizer.


(Sem lhes vestirmos a pele)

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