terça-feira, janeiro 04, 2005

depois de um dia qualquer


Apesar de morta, continuo a sentir este formigueiro, este prurido incessante, na planta dos pés e por detrás dos olhos. Não vejo nada, mas sinto como se visse, como se olhasse e continuasse a olhar como antes para o fundo das coisas, onde elas já não são o que são, como eu já não sou o que sou, para os outros olhos que me evitam. E só este formigueiro intenso e incómodo me salva do esquecimento.

Lembro-me agora bem como a queda do sentido das coisas começou, lenta e sinuosa, como uma gota perdida no labirinto de uma folha de plátano.

Ontem, cedo, penso que ainda antes do despertador tocar pela terceira vez, senti-me exausta; sabia que seria um dia de turbulentas acções, mas nunca tão nitidamente como agora me apercebi de como tudo começara.
O que sempre se ouve dizer acerca da morte dos outros acaba por ser verdade, porque os outros são todos. E quando se fala em saudade não se sabe o que se diz. Nunca.

Acho que foi a minha beleza.
Sempre fui, e sou, uma mulher bonita; uma jovem de beleza cativante e misteriosa. Essa confiança acompanhou-me durante os últimos segundos. A beleza, atributo que a muitas mulheres atormenta, fez da minha vida um paraíso aparente, uma ilusão de que tudo estaria para mim reservado. E esteve. Mas eu não quis.
As pessoas ...! Estamos sós, mesmo quando pensamos que somos compreendidos. Mesmo quando nos lançam olhares de súplica. Mesmo se o amor nos acompanhou o zunido vital de todos os dias.
E eu apenas quis ver este silêncio.

Começam por nos achar pessoas mais distantes, e eu acho que isso não é verdade; acho que nesses momentos é quando nos sentimos colados aos outros e às coisas, inevitavelmente. Sentimo-nos indiferenciados, talvez, mas não distantes. Indiferenciados ou indiferentes, sim. Mas não distantes. Nem tristes, nem morbidamente presos à vida.
Olham-nos com alguma curiosidade porque acabam por suspeitar que o nosso silêncio é de outra cor, que a nossa vida está lá, do outro lado da janela.

Não procuro hoje uma resposta mais do que antes, porque já a sabia aqui, tão perto. Sim, aqui perto, bem junto ao nariz da alma, onde esse faro incurável nos faz entristecer de inveja pelo futuro dos outros. Porque só nesse lugar Outro é que nos conseguimos realmente sentir mortos; não é como os poetas dizem, não. Ou será, mas noutra língua - a dos sentimentos não vividos.

A saudade não é uma rua de sentido único.
E a vida não é mais que uma obra de arte inacabada. Esboços somos para nada. Milan querido, como te recordo com tantos nomes, com tantas cores e palavras, neste limbo que sou, nesta sensual leveza de não ser, Sabina ou Tereza?

As pequenas distracções que povoam os nossos dias, inócuas e significativas, são interpretadas muitas vezes como acções auto-destrutivas, como flagelações mortíferas incompletas, inconscientes. Acabei por perceber que não eram acções, muito menos auto-destrutivas, nem tão pouco inconscientes. Todos os actos são destrutivos de qualquer coisa. A questão é sempre a da escolha de “o que destruir”. Mesmo quando, por distracção, quase somos atropelados, quem queremos destruir? Que parte de nós morre atropelado? Que parte de nós morre envenenado? Que parte de nós não morre?

Acho que foi a minha beleza.
Sempre que numa relação amorosa, ele me dizia “és linda”, a punhalada era mortal. Não sei porquê, mas sempre o óbvio me soou a falso. Sempre vi a realidade como uma fotografia. Sempre ouvi uma orquestra como um bando de pássaros frustrados por não serem capazes de voar como os outros, tentando apenas, para colmatar esse handicap, imitar grosseiramente a superior mestria e pureza do seu canto distante. Sempre cheirei cebola, não acreditando que aquele fosse mesmo o seu cheiro. A verdade nunca é tão óbvia. Sempre desejei que alguém visse de mim o que sou. “És linda!” Pfff... Claro, mas o que sou? O que era? A que cheirava realmente? Que ruído ensurdecedor emanava da minha voz quando dizia: “amo-te!”?

Por detrás dos olhos, incessantemente, e na planta dos pés, como se uma chama distante aquecesse o ar em meu redor, e esse calor atraísse o sangue que ainda corre a dançar, incómodo, à flor da pele ... a volúpia da morte ...

Azul, o meu silêncio. Porque é que pensamos sempre que é branco? Enquanto vivemos, temos tendência a pensar que vemos o mundo às cores. Mentira, a maior parte das vezes nem o vemos sequer. Mas vivemos com a ideia de que o vemos intensamente colorido, e por preocupação compreensível, absurdamente compreensível, achamos que a cor do silêncio devia ser branca. Por simpatia para com o vazio, talvez, como o de uma página ...
Envolta neste calor estranho, o corpo adormecido num torpor desconhecido, a alma agita-se em arrepios interiores.

Acho que foi ...
Desliguei o despertador e saí apressadamente do quarto como se não desejasse reter a imagem dos lençóis amarrotados, como recordação que me ancorasse ao real. Como noutras alturas, lavei a cara sem me mirar no pequeno espelho. Não me veria, de qualquer forma, de olhos fechados. Não saí logo. Sabia que tinha tempo. Passamos a ter mais tempo quando já não o temos. Na rua, lembrei-me do livro que andava a ler e voltei a buscá-lo. Para enganar o destino? Acho que não. Apenas porque não quis morrer em jejum espiritual. Na rua novamente, fechei os olhos por cinco segundos, com vergonha do sol. Superior a ele em tudo o mais, só no meu crepúsculo me senti menos digna do seu amor. Raiva pela sua capacidade de renascer?

Daqui a duas semanas estaria a apagar uma imensidão de velas, a tentar não ouvir o que cantavam à minha volta, a tentar chorar sem conseguir, a pensar ... uma imensidão ... quase trinta pequenos sopros e a escuridão na sala cheia de fantasmas de felicidade. Seria daqui a duas semanas ... Por detrás dos olhos, sorrio subtilmente, tentando enganar a dor e o formigueiro.

Infantilmente, pés de neblina, percorro o labirinto ... e lembro...
e sinto...
e penso...

Penso!
Penso, já não existo ...
(Março, 2001 revisited)

4 comentários:

v disse...

Arrepiei-me. Sorri. Entristeci. Suspirei. Tive vontade de pender a cabeça entre as mãos e chorar. Revi-me. No vazio, no silêncio. Na indiferença.
Obrigado. Sentir é sempre bom. Ainda que na solidão. Ainda que na verdade intransponível do "Estamos sós, mesmo quando pensamos que somos compreendidos."

r.e. disse...

Obrigado, V.
este é um texto já velhote :) mas fico feliz por ainda ter tido a vitalidade de fazer vibrar uma emoção a quem o lê. conhecendo os teus textos, mais agradável é a sensação de ter conseguido retribuir um pouco do prazer de te ler.
*

blimunda disse...

* como a queda do sentido das coisas começou...* labirintos da nossa mente, labirintos do nosso corpo, labirintos desta existência... leio-te. algumas vezes em silêncio.

Anónimo disse...

Recordo-me deste texto, até mais que o próprio livro, é mágico, sensível e Belo...
sorri ao lê-lo de novo, causou-me uma estranha sensação, está diferente, é público, é de cada um e de todos.
Um beijo.