sexta-feira, janeiro 28, 2005

5. uma tela sobre a morte

O manto tricolor que veste cada colina ao alcance da nossa estranha curiosidade, suporta
com uma paciência centenária o peso da nossa vida ignorante. Apenas nalguns instantes
irrepetíveis parece desvendar-se o mistério, nobre natureza subliminar de cada curva. Ali
uma perna máscula, de atleta milenar, conduz-nos a uma planície que se fez abdómen
e peito desse apolo invisível. Dos seios daquela ninfa, nasceram sobreiros. O próprio alcatrão
se molda indelevelmente aos contornos de dorsos e membros de animais míticos. Aquela casa repousa numa nádega de guerreiro, e aqueloutra numa madeixa do cabelo negro de antiga prostituta ou feiticeira. Cada vinha alimenta-se do suor do corpo que delira em noites perversamente eternas. O nosso olhar continua a desnudar cadáveres que posam gigantes para os pintores do espírito inferior. A terra amarela está envilecida pela saudade. Os sulcos castanhos já não são rugas, mas frestas doentes. Apenas o verde que nos comove permanece testemunha da vida que transborda ainda para o lado de cá.

13.01.03
(in a densidade das almas)

9 comentários:

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

1. Densidade, sim, é o que sentimos. Cada frase é um verso. Um verso, uma imagem. Um verso esculpido.
2.Apetece perguntar: e neste cenário, o que vai acontecer? de quem é a perna máscula? para onde se dirige?

hfm disse...

Gostei de ler.

A. Narciso disse...

Um texto soberbamente escrito. Tens um dominio da escrita notável Jorge. Está a ser um autentico prazer ler-te. Os meus parabéns.
Forte Abraço e bom fds

Amélia disse...

Junto-me ao Alexandre.Um beijo

blimunda disse...

belo. muito belo. ( saqueei-te e já publiquei o saque). beijo.

Unknown disse...

Tanto "paganismo" prosaicamente feito poesia do mundo... que bom lê-lo.

Menina Marota disse...

Poéticamente lindo! Gostei muito. Abraço e bom fim de semna :-)
http://eternamentemenina.blogs.sapo.pt/

Anónimo disse...

A minha vida do lado de cá foi sugada para dentro do retrato desenhado pelas tuas palavras. Palavras imensamente vivas num cenário onde o que já foi abre os braços para engolir o que ainda está para chegar. E dois mundos se unem. Se juntam. Se amam nos opostos não tão opostos de si.

Adorei!

Beijinho :)

Sandra
(http://www.void.weblog.com.pt)

r.e. disse...

obrigado a todos, amigos. esta tela sobre a morte é um dos retratos que ficam na memória, de tantos kms que percorro semanalmente, e cujas paisagens estimulam a fantasia. depois de algum tempo de miragem, espero a cada instante que uma colina se mova, que uma árvore me acene por me ter reconhecido, que a própria neblina da aurora se levante como o pano de um palco. obrigado pela vossa leitura. J.