segunda-feira, fevereiro 14, 2005

para o mundo, talvez apenas mais uma história...

era uma vez um puto
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tocava desde os 9 anos na banda...
os seus amigos eram os da banda e os do prédio...

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...achava que era feliz, o puto...
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aos 12 anos apaixonou-se por uma prima, o pequeno atrevido.
e ela por ele, a malandra, tanta sabedoria em 10 infantis anos

depois dessas férias na praia em que experimentaram os segredos
que segredam as bocas quando estão próximas e mesmo unidas,
nunca mais se viram.

só anos mais tarde, adultos já, de sorriso cúmplice nos olhos
se voltaram a ver e a falar. num casamento de família.
ele, outro; ela, outra também; duvidando da própria memória.
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o rapaz era aplicado no clarinete, e a banda o seu mundo

a família ... uma massa informe de afectos.
uma avó ambígua
(um dia saberei o que isto quer dizer)
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o miúdo até pensava que era feliz, mas duvidava do que sentia
e no seu íntimo sabia que não era.
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culpas? por aí. umas num homem, algumas numa mulher, ambos
inconscientes da inquietação interior do petiz.
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aos 15 anos, subitamente, renasce.
vai a uma pequena terriola, de que nunca tinha ouvido falar
vai como "músico de fora", dos "bons", ajudar a banda local
procissões, peditórios, concerto...
e vê-A!

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ela tocava clarinete, tinha um olhar maduro
um sorriso escondido, uma forma rebelde de vestir
e de falar, altiva ou algo distante, observando
da colina dos 18 anos, a puberdade do moço da cidade.
...
estiveram perto um do outro, nesse dia. sempre longe
sempre inquietos, cada um envolto no seu próprio manto
um dia... somente um dia, e a viagem de regresso a casa
com um beicinho mental, uma tristeza indefinível

nem três palavras trocadas, entre músicas e barulho,
ele fora do seu meio, ela demasiado no seu meio
ele querendo entrar ali, ela a desejar dali fugir.
um dia, contudo...
até ao mesmo dia do ano seguinte.
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um ano de silêncio e de esquecimento.
esquecimento?
...
desta vez, reconheceram-se à distância
ou não tivesse ele perguntado logo pela moça.
deu logo de caras com o pai dela
e por ela perguntou, ao que o pai (desconfiado)
respondeu, com ares de importante: ela está em Lisboa
a trabalhar. só vem ao concerto.
!!!
um dia, um ano depois, e só a veria à noite.
a memória fez o trabalho de reconstruir, tentou, o rosto
a forma do corpo, a roupa vestida, o cabelo...
quase em vão
nenhuma imagem, quase não tinha existido aquele dia
quase...
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o concerto estava iluminado...
ela estava lá, e ele também.
adivinhe-se em casa de que família os músicos de fora dormiriam...

depois do concerto, foram todos (o rapaz, dois colegas da banda
e ela) para casa. ficaram a jogar às cartas todos, na varanda.
era tarde, e os amigos foram saindo para ir dormir.
a noite acolheu a conversa dos seres que ali se encontravam pela segunda vez
ele a falar de si
ela a falar dela
ele, sobre adorar música e imaginar-se compositor
ela, sobre adorar pessoas e desejar ser psicóloga
ele, sobre o desejo de morrer
ela, sobre a fúria de viver
ele de coração louco de nervos
ela de alma perplexa pelo destino
ainda não tinha amanhecido quando decidiram trocar de moradas
para poderem escrever
ele sentia que algo dependia dele, para desenhar o seu futuro
no papel da morada, escreveu ainda, trémulo, algo mais ...
ela sorriu mais do que naquela noite toda, e apenas respondeu com
a curiosidade sobre o que o tempo poderia estar a reservar

estava a amanhecer quando deram o primeiro beijo
...
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ela está a dormir agora
e eu estou feliz por ter esta história para recordar e viver

15 comentários:

mjm disse...

Li esta história ao som de Chris Botti, no ordinary love. Pareceu-me ter sido a justa medida.

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

eu achava que ia acabar mal, pq há um tom trágico na maior parte das tuas poesias e divagações. mas o final é muito doce e tranquilo, fiquei feliz (por ti)

Anónimo disse...

...história de candura terna
eterna na memoria de quem le
e sente... no aqui e sempre
das letras...

Beijinho grande
www.lbutterfly.blogs.sapo.pt

v disse...

Um dia disseram-me que deus criou o homem porque gostava de ouvir contar histórias. Não há mais uma história. Há histórias. Muitas. Eu ouvi o coração dele bater mais forte. Na expectativa de um encontro ou de um desencontro. E senti-lhe o sorriso na serenidade final que só o sono pode representar.

Amélia disse...

raro...uma história de amor e de ternura que acaba feliz...

musalia disse...

Ainda estou a sorrir! E a imaginar um afecto tão lindo, que se reencontrou após tanto tempo...invulgar.
beijinhos.

Anónimo disse...

Bela homenagem à mulher que escolheste para companheira.
Espero que a sua fúria de viver tenha feito desaparecer o teu desejo de morrer. :)

Anónimo disse...

Li esta bela história a ouvir " Mon Dieu" cantado pela E. Piaff.
Magnífica conjugação.
Mas, sabes Amélia, não é assim tão raro estas histórias de amor e ternura acabarem bem ... Muitas vezes acabam é cedo demais!

A. Narciso disse...

Uma linda historia de amor. Julgo que todos nós desejamos esse "final", nessa paz, nesse carinho, nessa serenidade que só o verdadeiro amor trás. Uma linda homenagem ao teu amor.
Forte Abraço Jorge

Anónimo disse...

Gostei. Ainda bem que há histórias destas que acabam bem...
(Marta)

Rita disse...

Olha, não sei porque te imaginei solitário...

História bonita, como a minha, como a de muitas mais pessoas.

Ainda bem! :)

Amélia disse...

M.F.M.

Sim, eu sei disso.Mas que é raro, na literatura ocidental( eu eu cá tenho as minhas teorias sobre o assunto)haver histórias de amor feliz...lá isso é.O Denis de Rougemont escreveu num livro que já terá para cima de 50 anos - O Amor e o Ocidente - que, no ocidente, «o amor feliz não tem história»-as grandes histórias de amor são trágicas-Heloísa e Abelardo,Tristão e Isolda,Romeu e Julieta. Inês de Castro e Pedro, Paolo Malatesta e Francesca di Rimini,porque fora da moral e regras sociais estabelecidas-e ele entroncava isso nos cátaros (eu talvez fosse buscar as raízes e razões mais longe ainda,mas li o livro há tantos anos que até acho que já há muito o «emprestadei»...
e não posso ir conferir).Ao contrário, no oriente, o amor feliz é quase sempre de conjuga-
lidade, sem qualquer sentido de pecado.`

Daí o ter ficado contente porque o Jorge nos contou a sua história de amor feliz...e tu confirmas que há histórias de amor felizes,mesmo que breves.«Que não seja imortal, posto que é chama/mas que seja infinito enquanto dure»

Anónimo disse...

É verdade, Amélia,tens toda a razão.As "grandes " histórias de amor da literatura ocidental são trágicas como todas as que rememoraste.Tornaram-se belas e grandiosas graças ao seu cariz marginal, excitante e invulgar.Assim, se elevaram acima dos amores rasteirinhos, porque como disseste e bem, "amor feliz não tem história".
Mas vê como a felicidade do amor simples e sem tragédia que o Jorge nos contou conseguiu fazer-me falar, a mim, que testemunho quase sempre em silêncio, que, mesmo breves - porque a vida foi breve- esses amores existem e que " são infinitos para além da mortalidade humana".A beleza do amor feliz sem história do Jorge sensibilizou-nos pela magia da simplicidade.Que essa história seja abençoada e que, como relembras "«Que não seja imortal, posto que é chama/mas que seja infinito enquanto dure».
Como vê, Jorge, "para o mundo, NÃO É talvez apenas mais uma história ..."

r.e. disse...

Obrigado a todas as pessoas que receberam em si o afecto que este texto levava seguro entre as palavras, afecto que devolveram temperado com o sabor da vossa vivência pessoal. É bom receber-vos nesta madrugada, sempre. Jorge

Anónimo disse...

Voltei a ler, hoje, esta história (devo confessar que não foi nada fácil encontrá-la) passado um ano mais ou menos da primeira vez que me deparei com ela numa das minhas deambulações nocturnas pela madrugada.
Devo confessar que a sensação foi a mesma, a intensidade manteve-se. Arrepiei-me mais uma vez.

Obrigada, Jorge.
Um beijinho, AK.