quinta-feira, fevereiro 17, 2005

(24 de junho, 2028)


I

Por vezes sinto-me a pensar em mim no passado. Não a pensar em como fui em criança, ou apenas ontem, mas a pensar no meu presente como se ele fosse já um determinado passado. Talvez se possa ilustrar esta visão bizarra com a imagem da relação temporal entre as personagens e o seu autor. De facto, aí encontram-se as três faces do tempo. O presente a que as personagens chamam “hoje” já representa um estado passado para o autor (que primeiro as formulou no seu presente – quando ainda as personagens não existiam sequer). No seu presente, as personagens actuam na memória do seu autor. No entanto, para o leitor, todo esse presente das personagens constitui ainda o seu futuro, já que se considera o acto da leitura posterior ao da composição e este posterior ao da concepção. Nas personagens reúnem-se pois todos os caminhos temporais convergentes. Como dizia há pouco, por vezes penso-me como passado, ou melhor, penso-me como personagem cujo autor sou eu mesmo, obviamente noutro momento temporal. Ser personagem de mim próprio nem é tão angustiante assim, pois faz-me crescer a esperança de vir a ser o meu próprio leitor ...


... com a obra morre a ideia ...


Pois hoje é um desses dias. Sinto-me completamente como personagem observada em fase de revisão pelo seu autor (eu mesmo, algures noutro instante). Mas o hoje em que penso não é o hoje em que escrevo estas linhas. Nesse presente, estou deitado, numa cama desconfortável, a olhar o vazio no escuro, em noite de ar sufocante, à espera que amanheça. O hoje em que escrevo estas linhas é outro, e se queres que partilhe um segredo, nem sempre tenho a certeza se escrevo antes ou depois. E que importa?

7 comentários:

Anónimo disse...

Incrível: ligar o computador, ir à net, entrar no teu site, e dar de caras com uma frase que eu própria disse a um amigo ontem. Eu também tenho dado por mim, muitas vezes, “no futuro” a pensar no meu passado (hoje). Uma tentativa de garantir que não me vou arrepender das escolhas do presente... Tretas!, pois não posso garantir nada. Se me imagino lá, é com o que sou hoje, com a minha capacidade de visão hoje, e não com o que serei quando já lá estiver. Enfim, pode ser que ajude nalgumas coisas, mas talvez não me deva importar muito com isso... quem sabe?

Gostei muito de ler o teu “24 de Junho, 2028”!
Já agora, esta data tem algum propósito, ou surgiu do “nada”...? Ou... “que importa?”
Beijo grande. :)
Lua.

Caty disse...

Gostei muito do jogo de palavras que permitiram a ti mesmo, mostrar o que sentiste, e a mim permitiu repensar claramente o que noutros momentos já havia pensando, mas nunca soube esclarecer assim de forma tão clara.Tenho algumas perguntas a fazer-te, melhor tinha, porque depois de pensar em como coloca-las, e reavalia-las, perguntei-me eu mesma: "Que importa?"...então deixei-as de lado.
Gostei muito, como sempre.
Cathy

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Talvez possamos criar uma associação ou um clube de "egos projectados no tempo". Sim, é um exercício espontâneo em que tb me descubro às vezes. Mas, mais recorrente, a duplicação do ser, como num filme: eu aqui deitada, eu ali de pé a observar-me deitada.

E esta impressão quase culpa de não me deixar existir una plenamente. no presente.

Anónimo disse...

sim a quem e a que importa?
Boa reflexão esta tua
Beijinho
www.lbutterfly.blogs.sapo.pt

musalia disse...

É assim o devir do Ser. No segundo seguinte já não somos os mesmos, modificámo-nos.
Não creio que a ideia morra na obra, porque toda a leitura, de cada um de nós, a interpreta a faz viver de formas diversas. Reinventa-se. Não morre.

beijinhos, presente/passado/futuro.

r.e. disse...

o fragmento em itálico é uma citação que o narrador faz de um texto escrito em 2015, e que constava das notas de programa de um quarteto de cordas. tem, no texto original de 2015, um sentido praticamente literal, dado que a passagem à partitura de uma ideia musical cristaliza-a numa notação que inibe a dinâmica interior dos sons ainda em ideia. a sua interpretação não será mais "a ideia", mas uma terceira essência dela. em 2005 o autor da citação ainda não a tinha escrito. de notar que o autor da citação não é nem o narrador do texto, anos mais tarde (como o conteúdo do texto poderia supor), nem o autor destas linhas que agora escrevo. só em 2022 é que o narrador conhecerá a obra do autor da frase citada, e seis anos mais tarde ainda lhe ocorrerá citá-la tal foi a influência que o referido quarteto erxerceu sobre si.

v disse...

Eu narradora do meu presente num futuro que é agora. Transporto-me assim para um passado relativo.
Como te compreendo...