quinta-feira, fevereiro 17, 2005

(dia 24 de junho)

I



Por vezes sinto-me a pensar em mim no passado. Não a pensar em como fui em criança, ou apenas ontem, mas a pensar no meu presente como se ele fosse já um determinado passado. Talvez se possa ilustrar esta visão bizarra com a imagem da relação temporal entre as personagens e o seu autor. De facto, aí encontram-se as três faces do tempo. O presente a que as personagens chamam “hoje” já representa um estado passado para o autor (que primeiro as formulou no seu presente – quando ainda as personagens não existiam sequer). No seu presente, as personagens actuam na memória do seu autor. No entanto, para o leitor, todo esse presente das personagens constitui ainda o seu futuro, já que se considera o acto da leitura posterior ao da composição e este posterior ao da concepção. Nas personagens reúnem-se pois todos os caminhos temporais convergentes. Como dizia há pouco, por vezes penso-me como passado, ou melhor, penso-me como personagem cujo autor sou eu mesmo, obviamente noutro momento temporal. Ser personagem de mim próprio nem é tão angustiante assim, pois faz-me crescer a esperança de vir a ser o meu próprio leitor ...

... com a obra morre a ideia ...

Pois hoje é um desses dias. Sinto-me completamente como personagem observada em fase de revisão pelo seu autor (eu mesmo, algures noutro instante). Mas o hoje em que penso não é o hoje em que escrevo estas linhas. Nesse presente, estou deitado, numa cama desconfortável, a olhar o vazio no escuro, em noite de ar sufocante, à espera que amanheça.
O hoje em que escrevo estas linhas é outro, e se queres que partilhe um segredo, nem sempre tenho a certeza se escrevo antes ou depois. E que importa?

Sem comentários: