domingo, agosto 03, 2008

ou da luminescência involuntária dos graves

num tempo abrupto
rasgas o manto quieto e doce
invades a estepe de vento
poluis a essência das coisas então imunes.


atreves-te a sussurrar o mal

emerges do barulho do medo
afundas a dúvida no coração salgado de deus
resgatas depois deus com voz de anjo cínico e duro;

afastas de lugar seguro as coisas valiosas
para saborear o infindável travo a queda
inebriante, como luz psicadélica de tanto
pestanejar em noite de náufragos felizes.


atreves-te a invocar o mal

chamas um nome, outro nome,
outro, mas o mal não vem
não há caminho a calcorrear descalço
o mal é o mar todo em que a voz
se arrasta, medusa, anémona cega, bailarina
no azul esverdeado das almas rudes e graves;

quebras o lápis – refúgio dos pensamentos nocturnos -
e isolas o sentido da grafia e da fonética da dor.


atreves-te a guardar o mal

na redoma do teu íntimo útero de ferro
no casulo de uma crisálida gélida dentro do coração
atrás de um pensamento, debaixo do desejo, dentro [do vazio] do coração;

atiras ao ar a vida multicolor e aguardas
que a chuva ta devolva a preto e branco
como no inverno dos filmes, como nos sonhos
dos outros – nos teus o inverno é cinza vulcânica -
chovem rochedos leves, de esferovite, de brincar;
olhas a tua vida a ficar pequenina pequenina pequenina
como uma moeda ao ar que cairá sempre
de esquina, nunca perfeita, sempre de esquina;
olhas o pontinho lá longe a obrigar a fazer
caretas para o distinguir da imaginada esfera
que todas as vidas são quando se idealizam,
que nunca caem de esquina;
se fechas os olhos a vida cai como um
rochedo que já não é de esferovite mas,
como numa partida de carnaval ou daqueles
desenhos animados, deixa a tua silhueta recortada
na cova funda que abre ao cair-te em cima.


atreves-te a rir do mal

a escarnecer da violência, atreves-te a gozar
como um idiota com o sofrimento do mundo –
não de ti, do teu – do mundo, sim, do deles,
porque já não és um deles, já não és de ti,
não é já o teu mundo que cai, já não é teu;

o lirismo do mal abre uma fenda
na muralha do medo e deixa
escorregar por lá vermes e répteis em
vestes de príncipes bobos e cardeais;
amacias o sabor do mal com ritmos
convictos e palavras ambíguas, poéticas
como magma de alma, inúteis e
estúpidas como cristal tempo eu;
vertes sobre o poema o manto
elegíaco que escreveste para ti num dia
de sol qualquer, e perguntas-te
porque não secou ainda a tinta
e continua a tua vida a esborratar-se
como as cópias na primária ou os
bilhetes de amor escritos à pressa e
com o coração a fazer tremer o punho.


atreves-te a escrever o mal

num gatafunho, em língua nenhuma,
escreves coisas escuras em vez de
vogais abertas, escreves líquidos puros
em vez de mil sinónimos inúteis;

riscas o chão com a ponta do pé
num ritual que a infância aprendeu
misteriosamente, como se aprende a
tocar o corpo, como se aprende a
renunciar à vida, como se aprende a
aprender misteriosamente os rituais todos;
riscas primeiro uma linha, e sabes
que todos os universos têm um risco
mesmo a meio, que divide tudo
em partes diferentes;
o mal está sempre explícito na
parte maior de cada universo
mas a sua essência primordial
o âmago o fulcro a raiz
a sua definição mais límpida
espalha-se como veneno doce
na parte mais pequena, mínima,
insignificante, de todas as coisas;
o nosso pé pisa livremente
todas as linhas fronteiras traços
que se apagam e renascem adiante
fazendo pequenas as partes imensas
tornando monumentos as migalhas
de pão e os grãos de areia que a ventania
arrasta dentro de nós, em silêncio;
o mal ri-se do teu árduo esforço
em redesenhar riscos após riscos,
em apagar linhas e redimensionar
o que parece sempre igual, imutável,
obcessivamente neutro, como um
lírio de cristal, como uma borboleta
de bronze, como um amor de lume.


atreves-te a amar o mal

enrolas as tuas pernas nas suas
coxas, lambes o seu sexo pulsante –
o sexo do mal arde e goteja,
palpita arrítmico como um baterista
de jazz, às vezes como um louco,
outras como um sonâmbulo;
o sexo do mal recebe de ti
a força o calor o dilúvio
o ímpeto a lágrima a queda
a metamorfose, o sexo do mal
inspira-te suga-te absorve
o teu declínio como um néctar
feito do teu sangue – não tens
mais nada – absorve o ar que
expiras e não to devolve,
limpa-te o ego de todas as
vaidades absurdas, de todas
as glórias desonestas, enfim,
de ti e de tudo o que julgaste ser;
o mal ama-te até à noite;
o mal retribui o riso, o
amor, a palavra, a oração,
o murmúrio, o refúgio;

o mal devolve-te ao mundo
vomita-te cospe-te despreza-te
o mal não quer ser teu irmão
teu pai teu amante teu;
o mal renasce-te sem te morrer;
o mal faz um poema com os
teus escombros e lê-o à tua cabeceira;

o mal atreve-se a purificar
a essência das coisas

o mal atreve-se a acalmar
o vento que invadia a estepe

o mal atreve-se a remendar
laboriosa e apaixonadamente
o manto quieto e doce
rasgado num tempo abrupto.


para a marta, luminescências

doze: 07, MMVIII

quinta-feira, julho 03, 2008

livro de orações

/décima




meu amor de lume fresco
e claridade ardente


lírio pintado a sombras e
sepultado num bloco velho


meu delírio de sonâmbulo
vulto que projecto na noite branca
contra a luz do meu luar


meu amor inumano e
eternamente triste,



desnuda-me uma última vez
quero banhar-me no ácido da tua bondade
inventa para mim outra canção
que grite mais alto que a esperança
dilui-me no teu tempo à medida eterna
da imaginária morte antiga
leva-me a ver o mar de baixo para cima
enclausura-me num rochedo submerso e
canta luz para mim, difusa, difractada,
como os sonhos que ajudaste a apagar,

meu amor de lume fresco
e claridade ardente
trinta: 06, MMVIII

quinta-feira, junho 12, 2008

livro de orações

/nona



tu, que desenhaste o meu epílogo a tinta da china
sobre uma tela pautada povoada de pausas


tu, que me insinuaste perguntas em tons de resposta
e me fizeste crer na infinita curiosidade


tu, arquitecta dos meus sonhos, poetisa da minha dor,
que me inscreveste no panteão negro dos caídos,


liberta agora o teu lirismo todo
e restabelece a minha ausência

não quero ser mais o personagem
dos teus dramas e tragicomédias

- quero o branco do céu
como cenário vazio
da minha translúcida
presença.



onze: 06, MMVIII

terça-feira, abril 22, 2008

livro de orações

/oitava




senhora do sal, do marmóreo ventre, das rugas aveludadas

senhora das pedras graníticas sob o musgo espiritual

senhora do grave acorde do vento entre as ruínas, escombros meus

senhora do abismo, vertigem quente, arriba sem fim




vem ao encontro dos meus olhos cerrados
vem para as minhas mãos fechadas
vem rasgar-me a noite no peito
vem abrir ao meio o medo



grito com o corpo todo
estanque



vinte e um: 04, MMVIII

domingo, abril 13, 2008

livro de orações

/sétima





voz de cascata vermelha e dura
entoa devagar o hino desse jardim
onde o meu olhar morto perpetua
o perscrutínio da vontade



timbre azedo e cremoso e branco
deposita no silêncio uma consonância
que se abra em flor busto vento e
ilumine o dia lilás antigo




confio no som, no nosso som,
no teu imponderável canto
sobre a minha terra ferida.


doze: 04, MMVIII

sábado, abril 05, 2008

livro de orações

/sexta






tu, que verteste o lume sobre as minhas feridas
manto líquido e quente do teu hálito


tu, carpideira silente das noites sem lua
mulher de lágrimas afiadas e agudas


tu, que enuncias a litania do meu lugar vazio
sacerdotisa na língua das pedras




inscreve-me fora do tempo
num tronco de árvore mítico
numa duna sem maré que me apague


inscreve-me em cinza e carvão
num rasto verde de primavera
numa fantasia de inverno sonhado


inscreve-me indelevelmente
numa rua do coração do mundo
num abismo qualquer e vago.



cinco: 04, MMVIII

segunda-feira, março 24, 2008

livro de orações

/quinta



mulher de nunca, senhora, luz
não fantasies sobre a minha morte
renuncia ao ímpeto criativo
não sou teu personagem
não sofro mais por ti
não me vivas mais


mulher de lume, de sempre, lírio
deambula por mim adentro mas
sem o peso do amor, sem a
liberdade da influência, com
o voto de silêncio nos dedos
e a renúncia na voz


mulher colibri, de agora, harmonia
deixa-me perpassar o mundo
num acorde só, numa nota
suspensa nas tuas vogais, no
timbre do teu gemido quando
choras pelos teus filhos


mulher, senhora, do tempo morto
fecha-me os olhos com tua saliva
acre e límpida, num beijo de
mãe sobre um órfão de ti
- aceito a tua morte anterior
ao meu renascimento.



vinte e quatro: 03, MMVIII

domingo, fevereiro 24, 2008

livro de orações

/quarta







senhora, responde sem pressa ao meu lamento
não te precipites sobre a minha dor
não te deixes levar pela minha dignidade
responde quando me conheceres melhor


senhora, perscruta em todos os meus gestos
a ínfima subtileza que os distingue
não te iludas com a arquitectura
não te deixes influenciar pela sua cor


senhora, exorta-me a devolver-te tudo
não perdoes uma só grama de alma
não olvides nenhum pensamento oculto
não deixes para trás o mais precioso


senhora, fala comigo uma língua qualquer
que seja bonita e incompreensível
não deixes de dizer que me amas
mesmo que só ouça o vento rouco.



três: 02, MMVIII

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

livro de orações

/terceira




alma de mil perfumes,
inebria o vento para que pare
e te inale inconsciente e submisso


perfil de nenúfar,
extasia o olhar do poeta e
conduz as palavras até mim,
por mim adentro


reflexo de pureza,
espelha a minha angústia
para que a contemple na
alteridade libertadora




prende-me aos meus sentidos
não me deixes cair já
de mim abaixo




trinta: 01, MMVIII

terça-feira, fevereiro 05, 2008

livro de orações

/segunda



tu, que habistaste o tempo antes de mim,
que viverás onde já não estou

concede-me um retorno mais apenas
esquece por uma eternidade e meia
o nosso nome

deixa cair todo o ouro sobre o
meu tempo inequívoco



tu, que morreste no meu vagido,
que anseias por nascer no estertor dissonante

esconde atrás dos olhos o desejo
do meu gesto
nu



vinte e três: 01, MMVIII

terça-feira, janeiro 22, 2008

livro de orações





/primeira



senhora, em teu poder finito e aleatório confio
as minhas preces de ontem e de hoje.

entrego às tuas mãos lânguidas a seiva das
minhas lágrimas
para que nelas banhes o rosto e absorvas
a cor e o sal da minha interioridade.

senhora, em teu poder finito e imperfeito deposito
a esperança de uma luz – não tem de ser brilhante -
basta o calor da verdade e a frescura da paz
para desenhar a pastel um dia com outro tempo.

imploro o abraço das tuas pernas,
dos teus cabelos ondulantes,
dos teus fios de ouro suspensos das asas,
das tuas raízes profundas cravadas no mundo,
o abraço que faça de mim lugar fértil da tua curiosa misericórdia.

senhora, em teu poder finito e inconstante entrego humildemente
o rumo do meu sangue – todo
: do que corre nas veias
e
do que inunda os carris onde desfila inglório
o meu azul final.



vinte: 01, MMVIII

domingo, janeiro 13, 2008

in memoriam Pedro Silva (1977-2008)

Estive hoje na tua terra, Pedro.

Sim, estive lá, e vi a beleza daquele verde que te povoava os sonhos
e cheirei o perfume da terra, Pedro

Ah, e passei pela igreja também, e no caminho pareceu-me reconhecer aquela colina
por onde fugias a correr e aos trambolhões depois de roubar fruta.
Se não era aquela era tal e qual, Pedro, porque eu quase te ouvi a rir.

Estive lá e acho que te encontrei em cada lugar que me descreveste com aquela nobreza só tua, como se cada minuto da tua infância tivesse sido descrito ao teu ouvido por um deus muito pequenino que vivia em ti há tanto tempo. Estive lá, Pedro.

E o que chorei hoje dava para fazer um lago para nadares todo nu se te apetecesse,
e a força que o meu corpo fez contra o peso esmagador da dor teria dado para abrir um vulcão só para aqueceres as mãos no inverno.

Estava lá tanta gente, Pedro. E todos pareciam adivinhar o que eu estava a pensar
porque queriam todos encher o lago e abrir o vulcão.

Quando quiseres vai lá ver se conseguimos.