sexta-feira, março 31, 2006

xxxii

afinal sei
a cor do tempo minuto negro
dor de coisa nenhuma esquecimento
afinal era ontem
o futuro por cumprir inteiro
e falhei o lugar inviolável do rito
afinal escuto
outras vozes chamamentos antigos
sobre a modorra do silêncio

fev.06.MMVI

terça-feira, março 28, 2006

XIV

aloja-se
réptil
no covil
escurecido
do meu peito
(do meu choro
cândido redil
de emoções
antigas)
a morte
que de longe
espreito
e me espia
silente
de cansaço
ou ardil

27.05.03

(in o mundo e um pouco mais, 2003)

domingo, março 26, 2006

xxix

vem o vento derrubar a verdade suspensa nas caixas
de cartão duro esquecidas neste hangar vazio. és o gesto que anula a distância
entre as folhas de papel de todos os diários do mundo.
o próprio restolhar das ideias que passeiam pelos dias como
pólen. não há horas tristes dentro das caixas vazias.
somente pó. memórias das coisas que te preocuparam, que te dilaceraram
a alma incauta. as caixas são fantasmas. imensamente pesadas
de tanto nada levarem dentro.

derrubar a verdade suspensa revela-se redundante –
uma lucidez lábil caiu já no passado ou no futuro.

jan.25.MMVI

terça-feira, março 21, 2006

xxviii



não há poema que quebre o cristal sob o pensamento mas
apenas poesia onde a razão se abre voluntariamente ao olhar turvo do delírio
e há quem saiba disso
do lado de cá da lucidez e não saiba dizer
o que vê sem parecer ter-se fundido já
com o próprio reflexo

um sol a escorrer pela calçada recebe os passos afogueados
de alguém que foge tremendo da sua própria sombra
inunda-se acolá um recanto onde outro se afoga todos os dias
depois de saltar borda fora do titanic
o mundo é criado sete vezes antes do almoço e outras tantas
antes do medicamento da noite
o verde é ruivo para aquela mulher que se debruça quase nua
num parapeito gradeado

outro mundo outras pessoas
outra beleza outros medos

a morte é outro mito

a vida outro lugar


há poemas que aguardam que o peso da razão se disperse pelo
azul todo para nascerem sob os pensamentos do outro lado do cristal
há almas que cantam já esses versos
aguardo-te

leio-te ternamente

jan.25.MMVI

xxvii

fui ao rebordo da muralha e de lá via-se o centro vermelho
do teu coração. não precisei de saltar. não precisei sequer
de sair da noite. estavas à minha volta em cada pedra.

jan.21.MMVI

sábado, março 18, 2006

vacilo

vacilo por uma tenebrosidade acentuada p’la morbidez
do desejo de trevas que faço nascer numa libido fiel a
Thanatos

trepido sem comoção por esta perda, este proveito que
aceito tenazmente em cada despedida de mim rumo a
Tebas

tomo nos braços o deus que me recebe enquanto chora
pela desilusão na hora em que termina a profecia de
Tirésias

devolvo-me a Eros e a Édipo, hóspedes na transmutação
da alma, até Ulisses ao Tejo regressar sob o canto das
Tágides.

02.12.03
(in a língua secreta do egoísmo, 2003)

segunda-feira, março 13, 2006

xxiv

afinal a verdade da luz era imensa quando se escoava por terreiros desertos brilhantes em poeira de dia distante de um tempo de que me lembro só a hora e era tarde já para tudo o que prometia a luz fragmentada nas roupas nos fios de cobre sobre o azul na imensidão do mar exalado pelo próprio deus nu em que o mármore se imaginou deleite e a ânsia foi um rosto de querubim esquecido num altar sem ninguém sem gloria in excelsis deo como a cor que fugiu ao fresco mural a pausa longa que gritou no meio da orquestra morta não fosse o silêncio azul e vermelho das harpas a consonância mais que perfeita o vazio dedilhado a ouro sobre o pensamento

a máquina clara pulsa um conforto piedoso pleno de empatia por toda a inércia minha e das árvores pálidas mesmo sob o signo do sol escuro e timbrado a prata como artigo falso mas bonito quente estretecido na bruma do desejo dos rouxinóis ou de outra folha de papel qualquer que isto da vida do mundo não cabe numa resma bíblia pardo ou manteiga e falta o resto da arte toda por matar

e o vento que já não é verde entretanto pela erosão da realidade cheira a madrugada despida pelas horas que lá passam e a tocam com dedos impressionistas em acordes de uma nota só ritmada a contratempo com os piares discretos como confissões de pã

afinal não custa aceitar a vida encerrada num pisa-papéis sem nada lá dentro

jan.17.MMVI

xxx

a escrita não pode nunca parar de executar
a terrível vontade do amor pelo absoluto

(o absoluto, sim, o inexistente e inútil absoluto)

a caneta é um assassino lírico.


jan.26.MMVI

domingo, março 12, 2006

xxiii

olha tão de ouro se fez a noite
virgem de luz e de mim era um vazio estranho
brilhava desumana e altiva ainda perene num trono de saudade

jan.13.MMVI

quinta-feira, março 09, 2006

xxii

quando a minha alma significava alguma coisa
fosse o mistério que a assolasse, eu não saberia, se o
desejasse, distinguir um de outro signo seu.
branqueado o desejo de regressar à indiferença, hoje, ontem, não sei,
que angústia me prende ao chão, por não saber pedir-lhe
que se revele, e porventura seria desilusão quando agora não
significasse nada.

jan.12.MMVI

segunda-feira, março 06, 2006

hoje deixei-me ficar por aqui...

hoje deixei-me ficar por aqui, amarrotei a roupa já gasta sobre a superfície de granito,
dormi sem dar por isso, e não me lembro de ganhar alento

nenhum gesto de coragem foi loucura, nem a vida é
gentil e gratuita -
sobra sempre um dia de glória, um mistério...

a lua gritará por mim dentro em breve,
sonho, girando
sob a grande cúpula do possível.

12.10.03
(in a língua secreta do egoísmo, 2003)

sexta-feira, março 03, 2006

xx

plêiade. diz. plêiade.
não penses. não definas. diz.
plêiade. uma explosão doce dentro da boca. e no fim
a carícia da língua num roçagar lânguido e lento.
plêiade. o prazer simples e enigmático. dádiva das estrelas
ou de quem descobriu o lugar delas
no gesto de as nomear.
dentro da boca a alumiar o prazer.


jan.05.MMVI

quarta-feira, março 01, 2006

xviii

depois de o vento descer
não lhe resta destino que não a conversa entabulada com as árvores e
os pintores cegos. é vício do olhar erudito saber mais
do que pode. é vício bem remunerado e perverso. não inútil. simplesmente
tão ingénuo como o vento passear entre rebanhos e entabular conversas com o cinzento seco ou com a própria indefinição de cor em que as árvores se descrevem aos pintores cegos.

estendo-lhe um ramo. e depois outro. e é uma dança
onde era submissão. e é quase amor o roçar dele por mim afora, as folhas
arrepiadas ao toque gentil de um sopro, a copa aconchegada por cascatas descendentes de energia, de brisa inodora e leve. recolho os ramos
num amuo fingido e o vento brinca também numa voluta irrequieta, volteio de circo, rodopiar exibicionista que faz recordar ao pintor cego
a primeira mulher que tocou.

o vento tem conversas de velho e eu tenho palavras feitas de
infinito. as minhas sílabas são melismas para a velhice do vento. sou uma
infinda reserva de vocalisos abstractos que o vento contrapõe à sua desfiada história. desceu por falta de força ou vergado pela solidão.
não há nuvens eloquentes. o azul já não vibra
nos pensamentos dos pintores. nem o branco. sei de um lugar
onde se esconderam mas o sigilo impera entre os espectros.

o pintor aproxima-se e começa a trabalhar. escuta.
invade-me o desejo de sussurrar-lhe algo que o vento não entenda.
mata-me outra vez. faz amor comigo.
o vento exibe a indiferença que o esquecimento trouxe. o pintor
seca os olhos, fechados por dentro e por fora e pega num pastel
qualquer.

jan.04.MMVI