sábado, março 26, 2005

(dia 31 de outubro, 2041)

I

Não fosse o barulho da cidade em movimento, neste fim de tarde, suficientemente agressivo, o silêncio dos pássaros tornar-se-ia desesperadamente ensurdecedor. Olho-os, percorro o seu trajecto agitado, e não os ouço. E eles voam em torno das árvores, tantos ... e eu não os ouço ... seria hora de acordar aflito, se ...
... mas não sonho.
Esta angústia remonta a uma antiga intuição,


... com a obra morre a ideia ... ... com a morte vê-se o silêncio ...

“... são almas que choram, ...”


As pessoas que me evitam, apressadamente, afastam-me o pensamento dos pássaros e olho em redor. Encaminho-me para aquela igreja - na falta de uma gruta, uma catedral...
À porta, cumprimento o mendigo (há sempre um mendigo à porta das igrejas). Apetece-me sentar a seu lado e pedir-lhe um pouco de pão, pretexto que a seus olhos seria válido para legitimar, pela fome do corpo, a nossa irmandade na solidão do espírito.


Sento-me e não lhe peço nada ... mas anuncio-lhe com tristeza: "os pássaros morreram".
Ele já sabia, levanta-se e afasta-se apenas para não ter de enfrentar a minha inocência.

Não entro. Deixo-me ficar sentado, indiferente ao que as pessoas vão pensando enquanto por ali passam. Os nossos olhos cruzam-se por vezes, e apesar de a minha aparência não provocar o habitual desviar do olhar e da misericórdia, o insólito da minha postura inexpressiva traz à superfície aquele tipo de sentimentos que, como a compaixão, nunca vêm sós. E é numa mistura emocional que alguns aceleram o passo, enquanto outros, por associações tão pessoais que não se enumeram, não hesitam em contornar-me e, sem deixar de com o olhar mo agradecer, entram na igreja.

5 comentários:

Anónimo disse...

Deixo beijinho e ternura a ler-te...

www.lbutterfly.blogs.sapo.pt

Sara Mota disse...

2041?! Tu andas rápido no tempo, chiça…
Lol ;P

mjm disse...

"Sento-me e não lhe peço nada ... mas anuncio-lhe com tristeza: "os pássaros morreram".
Ele já sabia, levanta-se e afasta-se apenas para não ter de enfrentar a minha inocência."

Nem calculas o que este trecho me provoca! Alucino sempre nestes regressos ao futuro :)

Um kiss na páscoa, (salvo-seja)

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

"...
breve pausa)
E diz então que a catedral era em cima
Tudo isto tem a ver com o conhecimento
de um pequeno jardim no meio da cidade
quando o sono e o silêncio despovoam a terra
e o último vagabundo entra a porta sem número e vai desaparecer correndo pelo telhado
(breve pausa)
..."

Cesarininy, o inquérito

adoro esta série futurista!

Leonor disse...

Boa tarde R..
Li e reli o texto. Os teus textos pedem sempre uma segunda leitura.Dá-me a sensação que palavras se escondem nas entrelinhas. nunca tinha visto o mundo pelo olhar de uma naimal até ler o Miura de, Miguel Torga. Nunca me tinha lembrado de ver o mundo pelo olhar de um mendigo até ler o teu texto.
Muito bom.