quinta-feira, março 03, 2005

3. imponderável charme de morte

(deste lado)

I


Ao fundo, o negro das roupas que vestem o silêncio confunde-se com as paredes nuas e sujas. Mesmo a luz que consegue tenebrosamente entrar, apenas contribui para o contraste dos cinzentos (quase amarelecidos, é certo, em algumas horas do dia).
A regularidade a que os bancos corridos se distanciam faz-nos recordar as ondas, as nuvens, os socalcos ou os telhados dessa cidade que já não há – cidade invisível, dos nossos sonhos de ontem...
De cada lado, as figuras perguntam-nos silenciosamente as horas, ou melhor, questionam-nos sobre o tempo (pois para a eternidade da pedra ou da madeira o tempo é o único assunto que realmente lhes importa). Os seus olhos levam-nos sempre a tentar localizar historicamente a sua origem, como se o sofrimento que lhes deu “vida” pudesse ter outra explicação que não os vícios da nossa própria falta de fé, a maldade sobre-humana de alguns de nós ou a miséria escondida nos intestinos da alma de todos. Mas quando paramos muito tempo diante de cada uma destas santas representações, a infantilidade do espírito ultrapassa a mera contemplação e quase nos deixa voar pelo imaginário, que está sempre iluminado pela presença ingénua da esperança.
Sob os nossos pés, aqui e acolá, emerge um grito abafado até então pelo pó da história. Nessa altura escutamo-lo encantados, como se sempre tivéssemos sabido que da morte se levantam hinos surdos, à nossa procura, e que nem a pedra que se lhes assenta em cima os faz cair na luz do silêncio.
Em cima, o céu deixou-se esculpir na pedra em formas severas – como se Deus se estivesse sempre a espreguiçar, para com os braços eternamente abertos melhor nos guardar e proteger; ou ainda, para de forma piedosamente infeliz nos tocar a todos com carinho e nos fazer acordar do sonho de existir sem Ele.

As roupas que vestem de negro o silêncio movem-se imperceptivelmente para junto do leito macabro, almofadado para conforto dos vivos na assunção de cumprido o atemorizador dever para com os mortos. O jardim que em redor se desenvolve, em formas curiosamente circulares, quase faz esquecer o significado da cor das faixas de seda que o ornamentam.

O morto, como cidade invisível também, repousa de olhos por outrém fechados, e espera...

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nota do editor do blog:
este texto foi escrito no dia 6 de março de 2062, data que já foi aludida antes: o Professor morreu na véspera, dia 5. ainda não é possível determinar com rigor a relação entre este texto e o escrito em 2028. não foi possível determinar também, com certeza, se este texto se refere ao facto do dia anterior, ou se teve um carácter completamente ficcional, que apenas por coincidência macabra se inscreve nessa sequência cronológica. Talvez apenas quando se nos tornar clara a relação real ou possível entre o Professor e o narrador deste texto esta questão seja ultrapassada. Temos em mãos o estudo de algumas cartas que esperamos venham a trazer alguma luz sobre a origem destes textos. Também ainda não foi possível escutar o quarteto de cordas de cujas notas de programa é citada a frase com a obra morre a ideia. Esperamos que o interesse de cada um dos fragmentos que vamos partilhando não diminua pela falta de dados biográficos. Os leitores serão elucidados sempre que alguma informação relevante seja revelada.

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