num tempo abrupto
rasgas o manto quieto e doce
invades a estepe de vento
poluis a essência das coisas então imunes.
atreves-te a sussurrar o mal
emerges do barulho do medo
afundas a dúvida no coração salgado de deus
resgatas depois deus com voz de anjo cínico e duro;
afastas de lugar seguro as coisas valiosas
para saborear o infindável travo a queda
inebriante, como luz psicadélica de tanto
pestanejar em noite de náufragos felizes.
atreves-te a invocar o mal
chamas um nome, outro nome,
outro, mas o mal não vem
não há caminho a calcorrear descalço
o mal é o mar todo em que a voz
se arrasta, medusa, anémona cega, bailarina
no azul esverdeado das almas rudes e graves;
quebras o lápis – refúgio dos pensamentos nocturnos -
e isolas o sentido da grafia e da fonética da dor.
atreves-te a guardar o mal
na redoma do teu íntimo útero de ferro
no casulo de uma crisálida gélida dentro do coração
atrás de um pensamento, debaixo do desejo, dentro [do vazio] do coração;
atiras ao ar a vida multicolor e aguardas
que a chuva ta devolva a preto e branco
como no inverno dos filmes, como nos sonhos
dos outros – nos teus o inverno é cinza vulcânica -
chovem rochedos leves, de esferovite, de brincar;
olhas a tua vida a ficar pequenina pequenina pequenina
como uma moeda ao ar que cairá sempre
de esquina, nunca perfeita, sempre de esquina;
olhas o pontinho lá longe a obrigar a fazer
caretas para o distinguir da imaginada esfera
que todas as vidas são quando se idealizam,
que nunca caem de esquina;
se fechas os olhos a vida cai como um
rochedo que já não é de esferovite mas,
como numa partida de carnaval ou daqueles
desenhos animados, deixa a tua silhueta recortada
na cova funda que abre ao cair-te em cima.
atreves-te a rir do mal
a escarnecer da violência, atreves-te a gozar
como um idiota com o sofrimento do mundo –
não de ti, do teu – do mundo, sim, do deles,
porque já não és um deles, já não és de ti,
não é já o teu mundo que cai, já não é teu;
o lirismo do mal abre uma fenda
na muralha do medo e deixa
escorregar por lá vermes e répteis em
vestes de príncipes bobos e cardeais;
amacias o sabor do mal com ritmos
convictos e palavras ambíguas, poéticas
como magma de alma, inúteis e
estúpidas como cristal tempo eu;
vertes sobre o poema o manto
elegíaco que escreveste para ti num dia
de sol qualquer, e perguntas-te
porque não secou ainda a tinta
e continua a tua vida a esborratar-se
como as cópias na primária ou os
bilhetes de amor escritos à pressa e
com o coração a fazer tremer o punho.
atreves-te a escrever o mal
num gatafunho, em língua nenhuma,
escreves coisas escuras em vez de
vogais abertas, escreves líquidos puros
em vez de mil sinónimos inúteis;
riscas o chão com a ponta do pé
num ritual que a infância aprendeu
misteriosamente, como se aprende a
tocar o corpo, como se aprende a
renunciar à vida, como se aprende a
aprender misteriosamente os rituais todos;
riscas primeiro uma linha, e sabes
que todos os universos têm um risco
mesmo a meio, que divide tudo
em partes diferentes;
o mal está sempre explícito na
parte maior de cada universo
mas a sua essência primordial
o âmago o fulcro a raiz
a sua definição mais límpida
espalha-se como veneno doce
na parte mais pequena, mínima,
insignificante, de todas as coisas;
o nosso pé pisa livremente
todas as linhas fronteiras traços
que se apagam e renascem adiante
fazendo pequenas as partes imensas
tornando monumentos as migalhas
de pão e os grãos de areia que a ventania
arrasta dentro de nós, em silêncio;
o mal ri-se do teu árduo esforço
em redesenhar riscos após riscos,
em apagar linhas e redimensionar
o que parece sempre igual, imutável,
obcessivamente neutro, como um
lírio de cristal, como uma borboleta
de bronze, como um amor de lume.
atreves-te a amar o mal
enrolas as tuas pernas nas suas
coxas, lambes o seu sexo pulsante –
o sexo do mal arde e goteja,
palpita arrítmico como um baterista
de jazz, às vezes como um louco,
outras como um sonâmbulo;
o sexo do mal recebe de ti
a força o calor o dilúvio
o ímpeto a lágrima a queda
a metamorfose, o sexo do mal
inspira-te suga-te absorve
o teu declínio como um néctar
feito do teu sangue – não tens
mais nada – absorve o ar que
expiras e não to devolve,
limpa-te o ego de todas as
vaidades absurdas, de todas
as glórias desonestas, enfim,
de ti e de tudo o que julgaste ser;
o mal ama-te até à noite;
o mal retribui o riso, o
amor, a palavra, a oração,
o murmúrio, o refúgio;
o mal devolve-te ao mundo
vomita-te cospe-te despreza-te
o mal não quer ser teu irmão
teu pai teu amante teu;
o mal renasce-te sem te morrer;
o mal faz um poema com os
teus escombros e lê-o à tua cabeceira;
o mal atreve-se a purificar
a essência das coisas
o mal atreve-se a acalmar
o vento que invadia a estepe
o mal atreve-se a remendar
laboriosa e apaixonadamente
o manto quieto e doce
rasgado num tempo abrupto.
para a marta, luminescências
doze: 07, MMVIII
21 comentários:
és um domingo de agosto:
um dia de luz a ganhar forma
junto ao espelho escondido
o mal atreve-se a purificar
a essência das coisas
_________o mal atreve-se_________
magnifico!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
.
beijo.
imf/piano.
Atreve-te Rudolfo! Atreve-te porque eu já tinha saudades de ler alguma coisa tua assim! Adorei. Um beijo. Até breve. Azul.
Excelente. Sempre fan da tua poesia. Um beijo.
o prazer de re.ler.
______________.
...todos os universos têm um risco mesmo a meio...
.
é um prazer
Primeiro: Aff... enorme :P
Segundo: Atreve-te. Continua assim, a ser atrevido com as palavras...
:)
beijinho
Bonsoir, sublime jorge, ou rudolfo?
Nao sei , mas é magnifico.
Como sempre amigo.
Um abraço com saudades.
Beijinhos
LM
mei mais duas pedras no abismo
meti mais duas pedras no abosmo
Intenso! Gostei muito!
re.invoco apenas a qualidade.
tua.
beijo.S.
(www.wdirum.blogspot.com
poderoso!!!
gostei mesmo muito...
Sofia*
(já tinha saudades daqui)
passei, bati à porta, mas não me responderam... quando?
É também quando se «quebra o lápis e se isola o sentido da grafia e da fonética da dor», que se relê a vida em todas as palavras de sentir.
saudades de te ler.
beijinho, Jorge.
Ana Dagge
talvez os prémios que se foram inventando pouco signifiquem... mas como gostei de saber que alguém me lê e aprecia, também me lembrei de ti e dos (des)encontros.
bjinho*
Sofia
senti a vida no teu poema, um abraço forte
De tirar o fôlego!
deus....que saudade...
beijos.
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