quinta-feira, novembro 30, 2006

#14

por exemplo, uma ladeira coberta de outro verde, molhado de lágrimas da noite, íngreme como apetece à aventura, nem demais nem de menos, perfeita para, por exemplo, correr e só parar no asfalto, rebolar até as costas de encontro às silvas, escorregar até o carrinho de rolamentos se voltar ao contrário, para gáudio de todos, principalmente do condutor feliz. por exemplo, um muro, alto como todos os muros eleitos para o risco, alto e estreito, irregular, mágico pelo esconderijo que oferece às lagartixas, deusas para quem se rasteja de calças rotas pelo chão que os ratos pisam de madrugada e que as velhas pisam de manhã cedo quando vão à praça. por exemplo, uma cave aberta ao vento que silva rente ao solo, mas fechada à invasão dos miúdos pela imponente escuridão que são braços de mãos esticadas e negras; que são milhões de morcegos, se calhar mais, a povoar qualquer pesadelo que se preze, especialmente os da vigília; que são, por exemplo, corpos atraentes por estarem nus e aterradores por estarem mortos; uma cave que sobrevive à curiosidade de uma geração ou duas, e onde todos juram um dia lá ter entrado, heróis por dois segundos, até a bazófia ser desmascarada pela sabedoria céptica do grupo. por exemplo, uma oração, uma invocação ao diabo, um ritual, por exemplo, pedras que afinal se mexeram, delírio de medo na fuga do destino que nesse dia se traçou irreversivelmente, sem que nem sequer eu o adivinhasse.

xi.30.MMVI

segunda-feira, novembro 27, 2006

audrey




também nas árvores a imponência
nasce em tons de verde
que lembram mais a leveza
que o poder. também no mar
existe o perigo de nos afundarmos
como no infinito de um olhar.
é também de mistério que fala
o vento quando embate
num sussurro que desperta e atrai.
uma fotografia assim é como a
escuta impossível do mistério
do vento que embala
o verde majestoso que
impele ao abismo profundo
que o mar anuncia.

uma fotografia é apenas e
tanto mais que isso

terça-feira, novembro 21, 2006

# 13

por exemplo, quando chove no coração e é sempre inverno em nós, ou o tempo desliza para fora da pele e somos suspensão sem atrito nem massa, sem matéria nem corpo, sem nome nem traço distintivo, por exemplo, quando o próprio pronome pessoal nos repele e se recusa a sublinhar uma qualquer identidade, ou melhor, uma qualquer alteridade. por exemplo, um apelido sem ascendência, uma herança sem herdeiros, uma ponte sem quaisquer margens, um rio sem foz e de nascente incerta, maré sem direcção, leito sem curso, seco como o coração dos outros, que Agostinho dizia ser sempre de noite para nós, e afinal é sempre verão sem a chuva que atola as planícies do nosso. por exemplo, quando não estamos já no lugar onde o olhar de alguém repousa, quando a voz que emitimos percorre o labirinto do mundo, e regressa à nossa solidão, intacta como antes da primeira vogal, por exemplo, ou como no próprio instante do nascimento do desejo de ser fala, discurso, viagem, travessia aos antípodas de nós, sem o risco da estranheza nem o sorriso do reconhecimento.

xi.21.MMVI

segunda-feira, novembro 13, 2006

contos inconjuntos

III

Dezembro amanhecia.
Levantou-se apenas para ir à casa de banho e voltou para dentro da cama. A noite e o quente refugiavam-se dentro do quarto, por detrás das gelosias fechadas, dentro dos lençóis, contra a teimosia do frio lá fora. O Vasco já havia saído há algumas horas, ainda no ventre da madrugada, mas Margarida acordou só com o tique-taque da bexiga, ou com o chamamento do próprio dia. Dezembro amanhecia mas não era para ela por agora. Agarrou-se à almofada do lado, menos quente já mas ainda acolhedora. O cheiro da noite era inebriante. O sonho interrompido tentava invadir a luz emergente e devolver Margarida à penumbra dos desejos transfigurados – em menos de dez minutos ela dormia de novo, estátua sob o manto, a respirar suavemente.
Acordou e dirigiu-se à casa de banho outra vez, com a leve sensação de que algo se repetia infinitamente naquela manhã, afinal em tudo igual às outras. De caminho, em bicos de pés, viu-se fugidia no espelho do quarto, e murmurou um bom dia sorridente, por debaixo da máscara de sono que ainda lhe ocultava as feições naturais. Sentada na sanita pensava ‘hoje tenho de acabar o terceiro capítulo’. Limpou-se, levantou-se e preparou o duche. Resmungou qualquer coisa a propósito das calças do pijama do Vasco no chão da casa de banho, e perguntou-se onde é que teriam ficado esquecidas as cuecas desta vez. Acabou por descobri-las atrás da porta, atiradas com certeza em gesto aleatório ou, pelo contrário, como que escondidas, naqueles comportamentos imperscrutáveis que as mulheres surpreendem nos seus companheiros. Por detrás da contrariedade manifesta no resmungo, nasceu um sorriso apaziguador que já conhece.
Preparou um sumo de laranja e um café para acompanhar as torradas. ‘Hoje não saio de casa’, comprometia-se consigo mesma enquanto ia desenhando mentalmente o dia à medida tanto da necessidade como do desejo. Sentou-se na varanda ainda molhada, a acabar o sumo e a contemplar a manhã já crescida. Pensou no Vasco e numa manhã distante em que o frio os tinha feito aproximar, desconhecidos então, talvez tanto como, apesar de tudo, continuavam ainda a ser. ‘Todo o tempo é sempre tão pouco e demais’, pensava. Agarrava-se a estes flashes que as primeiras associações mentais traziam, porque sabia que o texto tinha de nascer no seio destes impulsos encriptados pelo inconsciente. Forçava-se a uma liberdade de pensamentos que não tinha. Desejava uma fluidez que desconhecia em si mas para a qual intuía dirigir-se se desse os passos certos, ou pelo menos se evitasse os atritos que têm atrofiado a sua escrita. Era de memória viva que esperava ver surgir em fluxos irreprimíveis, a sequência de imagens, eventos, diálogos com que povoaria o seu romance. ‘Mas qual romance?!’
Nesse momento, ao enunciar com raiva esta dúvida, sentia a emoção escorrer dentro dela num apelo às lágrimas que aí vinham. Perguntar ‘Qual romance?’ a propósito da rarefacção da sua escrita, era um prelúdio a inquirir ‘Mas que vida?’. No entanto, sabia que era injusto perguntar aquilo. Interrogava-se sim porque é que em qualquer fase da sua vida havia questionado assim o seu destino, as suas escolhas, o seu mundo, o seu presente. Porquê? Afinal rodeava-a tanta beleza e dignidade, tanta felicidade espalhadas pelas horas. Porquê então este permanente e inquietante suspirar por algo diferente, algo melhor. Melhor, como, em quê? O que quer que fosse, só dependia da sua noção de liberdade. E a sua própria noção de liberdade estava num ponto muito próximo do zero absoluto. Não a liberdade em si mas o sentido da sua realização. Esse paradoxo era canónico, mas em Margarida assumia os contornos de uma espécie de punição, de uma expiação submersa num passado que quase já não reconhecia mas intuía mais poderoso do que a razão conseguia conceber. Se isto fosse o seu romance...
Depois de almoço pensou em vestir-se para sair, mas hesitou e acabou por decidir ficar em casa o resto do dia e, quem sabe, à noite pudesse reler o produto dessa reclusão forçada e sentir-se orgulhosa. Ligou ao Vasco para solidificar esse auto-imposto sacrifício, tornando-o evidente ao mundo exterior. Ele não atendeu. Nem podia. O beijo de boa noite que haviam trocado na noite anterior quando ela se deitou, ainda cedo, para não comprometer a resolução de aproveitar o dia seguinte, foi o último gesto que os uniu, foram as últimas palavras que proferiram, foi a última imagem que registou do homem que, horas mais tarde, seria obrigada a reconhecer no corpo encontrado sem identificação naquele quarto impessoal, misteriosamente familiar, como pôde sentir com surpresa e repulsa quando morbidamente quis penetrar no antro das quatro paredes vazias que assistiram ao fechar daquele capítulo da sua vida.

nov.11.MMVI


(NOTA: noutro lugar, a morte de Vasco aqui referida é descrita como tendo sido a morte de Vicente. Não é gralha, nem é inocente esse deslocamento narrativo)

sexta-feira, novembro 10, 2006

#12

por exemplo, uma inscrição no tronco morto de uma árvore, com a ilusão de perenidade que tudo o que vive oferece; por exemplo, uma inscrição num grão de areia, lembrando Blake, por exemplo. rabiscar uma anotação de rodapé num livro que não é nosso, trautear baixinho em uníssono com os violoncelos em pleno concerto, por exemplo, uma inscrição inconsequente, morta como o tronco de uma árvore onde um nome e outro nome e uma seta e um esboço de coração de golpes de navalha, por exemplo, um coração feito de ângulos agudos, desajeitados em contraste com a perfeição do sentimento instantâneo dos nomes inscritos.
desenhar no ar com os dedos, em danças coordenadas com o olhar, o contorno de uns lábios que se movem inconscientes do ritual. pisar de novo o verde sobre o qual alguém flutuou, por exemplo, depois de um encontro secreto.
ser eco de um grito calado. recordar em vão todos os detalhes de um momento assaz insignificante. projectar no futuro os sonhos de quem fomos quando éramos outros, permanentemente esquecidos. por exemplo, morrer à nascença ou, o que é o mesmo, no mais completo alheamento que a senilidade autoriza e protege.

xi.10.MMVI

quinta-feira, novembro 09, 2006

sem título

tempo intuição
projecto desgovernado
imprevisível refúgio
de e para dentro de deus


(in mar branco, nudez insular, 2005)

terça-feira, novembro 07, 2006

1º andamento

III


virá o azul inundar o leito seco da
tua forma de cristal, será fugaz mas
indelével como vento soprado num conto
lido à lareira; não extinguirá o lume
mas a ideia infernal; não arrastará as
árvores altas - fechará os meus olhos
como brisa sobre a penugem de uma
gaivota recém-nascida, como hálito
inspirado antes do primeiro beijo;
assim o azul verterá sobre o
deserto a tua paixão revivida na
penumbra de um dia sem noite.

virá a memória líquida dos corpos
calibrar o fiel onde todas as sensações se
comparam e reduzem a uma contínua
e subtil repetição de instantes primordiais
- a dor, o desejo, a angústia e o
alívio de todos os parágrafos perfeitos.

vii.11.MMVI

domingo, novembro 05, 2006

X.




(“... quando tu próprio és o espelho e a réplica
dos que não atingiram o teu tempo...”
Jorge Luis Borges)



... e da ilusão aceitaste o espelho
e do reflexo fizeste a obra

milagre profano da morte da ideia

(da ideia amortalhada em partituras vãs)


...e aos que não te ouviram
o tempo quebrou o tempo

01.03.02
(in instantes de perplexa aprendizagem, 2002)