segunda-feira, janeiro 31, 2005

crónicas de viagem

"Almas Cinzentas", de Philippe Claudel

Há lugares – espaço, tempo – onde a tristeza parece ter encontrado definitivamente o seu lar, o seu lugar.

Lírio-do-Vale, podias ter sido um corpo, uma vítima, apenas um corpo de menina, mais uma vítima, como o juiz Mierck fazia gosto em ressalvar nos gestos indiferentes e cruelmente frios, desumanos. Mas em épocas de morte anónima as mortes com nome inscrito doem numa dimensão diferente, à parte.
A tristeza apenas parece duvidar de ali pertencer, quando emigra para a nossa alma, também cinzenta no reflexo que a leitura nos imprime.

Philippe Claudel escreveu um livro triste - daquela tristeza bem intencionada que pretende acalentar sem iludir, daquela Tristeza com que Lysia cognominou o Procurador. Um livro sobre a herança dos instintos - uma herança pesada para quem deixa de ter outra vida que não essa para viver, outro destino que não aquele, traçado cedo demais. Lírio-do-Vale, Clélis de Vincey e Lysia Verhareine (para não acrescentar Clémence, que o próprio narrador hesita em colocar entre as restantes mortes), são os espelhos que devolvem à vida todo o cinzento que, já lá estando antes, se evidencia perante os vazios que estes nomes encerram com eles no túmulo. Mesmo assim, de todo o cinzento que habita o livro, as únicas cores vêm do passado relacionado com estas mulheres.
E não será sempre assim?

after "Funeral Blues"


after "Funeral Blues", W. H. Auden

Esta foi a expressão dada por Abstracto Concreto para o célebre poema de Auden. Para que possam também apreciar a sensibilidade deste criador, que nos encanta com riscos puros e tantas vezes duros, deixo-vos o poema e a sugestão de uma viagem ao seu espaço. Não se arrependerão.

Funeral Blues

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever; I was wrong.

The stars are not wanted now: put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood,
For nothing now can ever come to any good.

W. H. Auden

domingo, janeiro 30, 2005

(89)

Enfª Marisa
Mar.5.2062
__________

O cheiro de quase nada...
como se o vazio também tivesse sido um jardim
de cuja ancestral memória apenas tivesse podido subsistir este aroma
estranho e familiar. A limpeza do quarto
e uma ausência indefinível fizeram-me sentir mais intrusa
que numa cama alheia, ruborizada pela vergonha de viver
como se estivesse a comer frente a uma criança transparente de fome,
inquieta como se não fosse este o mais redundante pormenor
dos meus dias. Já não sei porque escrevo o que já sei. Porque não serei capaz
de inventar a vida que aqui deixo escrita?

O Professor morreu.
Duas horas antes de dizer “Olá, Mar!”
com o seu sorriso terno e azul, como não existirá
em mais nenhum rosto.

O dia continuou
passou
correu
parou
não sei. Não o vivi. Não o admiti em mim.
Não o aceitei da cor dos outros dias. Não...
__________

sem título

tempo comoção
senão verdadeira frágil
estão vestígio de medo
resoluto e belo

(Jan.25.MMV)

sábado, janeiro 29, 2005

aforismo #1


fractal by Doug Harrington


Não chames cego
a quem não vê de ti
o que não tens

sexta-feira, janeiro 28, 2005

5. uma tela sobre a morte

O manto tricolor que veste cada colina ao alcance da nossa estranha curiosidade, suporta
com uma paciência centenária o peso da nossa vida ignorante. Apenas nalguns instantes
irrepetíveis parece desvendar-se o mistério, nobre natureza subliminar de cada curva. Ali
uma perna máscula, de atleta milenar, conduz-nos a uma planície que se fez abdómen
e peito desse apolo invisível. Dos seios daquela ninfa, nasceram sobreiros. O próprio alcatrão
se molda indelevelmente aos contornos de dorsos e membros de animais míticos. Aquela casa repousa numa nádega de guerreiro, e aqueloutra numa madeixa do cabelo negro de antiga prostituta ou feiticeira. Cada vinha alimenta-se do suor do corpo que delira em noites perversamente eternas. O nosso olhar continua a desnudar cadáveres que posam gigantes para os pintores do espírito inferior. A terra amarela está envilecida pela saudade. Os sulcos castanhos já não são rugas, mas frestas doentes. Apenas o verde que nos comove permanece testemunha da vida que transborda ainda para o lado de cá.

13.01.03
(in a densidade das almas)

quarta-feira, janeiro 26, 2005

lume esfíngico

Sobre a mesa, o olhar
submisso - discernir
o reflexo (o deambular
no lago de vinho
esquecido)
do quadro que se espraia
no pó das paredes.

não o bebeu
(um fantasma
derramou-o) pela
ausência
de corporeidade –
razão peso timbre.

sob o olhar, a mesa
altiva - a permanência
contra a mutabilidade
dos ecos dos rastos
de ontem, de qualquer
invenção do desejo.


Jan.24.MMV
(in livro xiii)

limites possíveis da suspensão


fractal: flames


Refulgência apenas quando clarão
não sejas. Perpendicular do mundo tangente
a ti. Deslize biológico na sombra da evolução incerta. Refúgio
das agonias quando não alheias – imaginárias então, para que nasçam
outros, em ti, reflexos sem objecto.
Império de um só nome, território de casas mansas ou asilos. Veneno
incolor. Convite ao absurdo sem nó. Pó triste nos despojos
de um ontem qualquer. Revérbero intenso nas ruelas de solidão em chamas.

(insistência de vida num deserto. teimosia surda de sangue sem leito)


Jan.23.MMV
(in a geometria da inexistência)

domingo, janeiro 23, 2005

a vénia

Sento-me sem olhar muito em redor. Descer as escadas cansou-me. Não sei quanto tempo quero ter ainda. Fecho os olhos, e tento abstrair-me do ruído. Adormeceria. Mas sou sacudido por um grave estertor que me alimenta a curiosidade. Desci por isto. Por isto abro os olhos.

As carruagens sucedem-se numa amálgama de luzes e vultos desfocados, cuja nitidez aumenta com o chiar do ferro nos carris. Eles e elas saem apressados. Nem sempre é a necessidade de chegar a algum lado no próximo instante. Às vezes penso no medo que as pessoas poderão ter de ficar dentro da carruagem, como se alguma ameaça lá as esperasse. Mas deve ser apenas mais um fenómeno de grupo, e os poucos que precisam mesmo de correr, levam nesse impulso todos os outros, como nas religiões ou na arte.
O ferro recomeça o seu namoro de atrito quente, e revejo-me ainda algumas vezes nos reflexos cada vez mais impossíveis das janelas em movimento.
A súbita ausência de volume à minha frente cria-me uma sensação de vertigem horizontal, estimulada pela plataforma distante, do outro lado dos paralelos ainda trepidantes. Demoro alguns segundos a habituar-me ao cenário, quase irreal, que o silêncio agora preenche à minha frente. Apenas circulam na plataforma de lá algumas pessoas que, por isso, parecem conhecer-se bem.
Ele encontra-se de pé, numa posição relativamente ao limite do fosso que não daria para entender se ali se encontrava há muito tempo à espera, ou se teria acabado de sair num anterior combóio e apenas não sabe para onde ir. Contudo, sei que é a primeira hipótese a correcta. O seu rosto já me tinha ficado registado no espírito no instante breve em que olhei em frente, quando me sentei. Vira-se um pouco para a esquerda, ficando praticamente de frente para mim, como se se soubesse observado, mas não desejando o confronto visual. Noutra perspectiva, parece até olhar-me, mas daquela forma de perscrutar o vazio que alguns músicos têm, quando num recital ou concerto varrem a plateia com o semblante enigmático, e ...

... me fixo num ponto que, a ser uma pessoa, passa a partir daí a representar aquele outro elo de uma irmandade dual, que noutras circunstâncias chamaria apenas de compositor. Nestes momentos, ou melhor, a partir daqui, o concerto flui como uma discussão quase sempre indolor com essa figura distante. Estou então pronto a olhar para o chão, sentir o corpo apelar a uma desistência benigna, e começar inesperadamente a tocar. O violino nessa fase do meu desequilíbrio funciona como as varas dos equilibristas, que amplificam controlando as diferenças laterais de peso. Também aqui se dá essa compensação, que a literatura técnica chama de expressão ou intensidade emocional. O meu corpo balança-se, suavemente, mecanicamente ...

... como se a demorada espera lhe estivesse a dar cabo dos nervos, a destruir a paciência que todos levamos connosco em cada manhã para o labirinto do dia. Olho-o já com curiosidade, e não apenas com a antipatia que inexplicavelmente me tinha assaltado. Somos poucos, agora, o que nos devolve aquela sensação familiar tantas vezes perdida ao longo dos caminhos, de que estamos envoltos nas mesmas quimeras e derrotados pelos mesmos dragões.
Mais duas pessoas parecem querer fazer parte do seu ténue movimento, aproximando-se das linhas amarelas de aviso. É já aquela pressa, com o inerente engano de que sairão mais depressa da carruagem se estiverem há mais tempo preparados para entrar. Talvez não seja por outra razão senão a natural estranheza, mas lentamente se afastam do homem absorto no seu ...

... movimento que me embala e ampara, entre duas frases de igual importância. O público não deve ter nunca verdadeira consciência de que está perante apenas mais um mortal a criar a dupla sensação de imortalidade na companhia de outro mortal. Deve, sim, acreditar na plenitude espiritual do instante ali mumificado.
Há certas passagens que me fazem irritar quando as estudo em casa, e que nos concertos se revelam quase sempre novas, como que escutadas interiormente pela primeira vez. São as que dão menos prazer tocar. São as que me fazem sentir inútil. Como esta que agora vou começar, mal a orquestra termine a resposta à minha anterior dádiva. Prefiro nestas alturas fechar...

... os olhos. Às vezes também os fecho para poder contemplar a realidade como surpresa e não como imaginário construído. Mas não sei se é a mesma ambição que o move neste seu cego balançar. Começo a hesitar internamente entre uma atenção descuidada e um controle total das suas emoções. Não me sinto capaz de nenhuma das formas de estar, neste momento. Fecho igualmente os olhos, não pelo prazer de os voltar a poder abrir, mas pela incerteza que se instalou. Não chego a perceber de que cor era a escuridão, pois a trepidação regressou e do outro lado da estação, reacendem-se as rápidas cenas, como de um filme antigo, das carruagens em movimento decrescente. A fúria das pessoas em fuga trá-lo de volta, pois quase o derrubam na sua cegueira. Vejo-o do outro lado das janelas, que já se movem novamente, ainda devagar.
Desvio o olhar infantilmente quando me apercebo que sou tão observado quanto observador. Porque nunca aceitamos o óbvio? (Por o óbvio nunca ser verdadeiro? - penso). Deixo-me de criancices e assumo o meu papel de ser vivo, social, e todo esse blá-blá-blá pseudo-definidor de conjunto. Olho-o frontalmente, e sou humilhado pelo seu desinteresse. Não era propriamente para mim que olhava afinal. Parece que olhava para alguém que pareceu reconhecer...

... na antepenúltima fila da primeira plateia, ao lado do homem que dorme enquanto me esvazio de emoção na cadência. Parece mentira sentir-me capaz de analisar estas futilidades enquanto faço o que amanhã originará uma crítica fabulosa nos jornais da especialidade (onde se realçará a minha quase irreal concentração e inspiração em momentos de tamanha expressividade como este mesmo instante). Porque é que nunca acertamos com os verdadeiros estados internos dos outros? Porque o óbvio é mais seguro (sim, apesar de n...).
A orquestra pega na minha deixa triunfante, e sente-se de novo útil. No fundo, cada músico tem sempre o seu pequeno instante em que sente justificado o dinheiro do bilhete. E este momento é um deles. Não fora toda a orquestra reafirmar, confirmar, relembrar, o que eu acabei de tocar, a cadência ficaria tão ridícula e insolente como um choro de criança contrariada em frente a uma montra de brinquedos.
Nem o estrondo do tutti o acordou. Impressionante.
Estou cansado. Agora que não estou a tocar, consigo desfrutar um instante da beleza do concerto. O tema aparece agora lá longe, onde não estou, e isso dá-lhe um carácter tão sublime quanto inalcançável.
(A música diviniza-se no instante em que se liberta do peso da nossa alma). Quem a tocará nesses momentos?
Por momentos, não sei se já acabaram de tocar. Sinto-me como naqueles truques cinematográficos em que o sujeito fica aparentemente surdo, em que as imagens se passam muito desfocadas e lentas, e onde normalmente se pressente o aroma da tragédia. Já sei onde os realizadores vão buscar essas idéias. Não acabaram ainda, diz-me a quietude da maior parte da audiência. Suspiro novamente ...

... e volta a olhar-me, como quem sorri por detrás da expressão inalterada. Já não sei se sou eu que ainda estou aqui por ele, ou ele por mim. Poderia fazer a prova, levantando-me.
Levanto-me, e aproximo-me da linha amarela no chão. Pergunto-me sempre como calculam a distância onde pintar tamanha segurança. Agora que estamos mais próximos, instala-se outra irmandade que não a anterior. Outro elo. Outro abismo. Nunca mais cruzaremos o olhar.
“Porquê?” – apetece-me perguntar-lhe. Seria tão óbvio, mais uma vez. Que raiva!
Sinto-me estremecer de novo.

É o público que se manifesta exaltante, numa cerimónia quase vazia de sentido já, de gritar, aplaudir, fazer-nos acreditar no que criámos. O chão quase treme...

... apesar de ser apenas a sensação ilusória criada pelo ruído. Num filme veríamos agora a cena, na perspectiva do condutor, ou mais radicalmente através de uma câmara nos carris, à espera da luz ao fundo do túnel (mas de sentido metafórico invertido). Olhamo-nos sem disfarçar. Respiro irregularmente...

... não controlando o fluxo emocional de que nunca somos capazes de falar, porque só o conhecemos assim, nos derradeiros instantes. Olho-o, agora que acorda, e inacreditavelmente não lhe sinto um desprezo maior que à restante plateia. Neste momento todos representam novamente a mesma “outra coisa”. Avanço lentamente para a frente, para a boca de cena, com os cavalheiros e as senhoras da primeira fila a tentarem sorrir de forma diferente, numa cumplicidade que não existe. O estertor da orquestra a elogiar caracteristicamente o meu desempenho, incomoda-me. Batem com os arcos nas estantes, raspam os sapatos no chão, como se se retirassem teatralmente do mérito dos aplausos. Olho-os, de sorriso enigmático no rosto. E encaro a luz dos projectores que obrigam a semicerrar os olhos ...

... como se me perscrutasse a intuição. Como se me interrogasse também do meu porquê. Os carris entre nós são um duplo espelho. O combóio anuncia-se, num ronco já familiar. Não preciso de me afastar para trás da linha amarela. Contudo, num reflexo natural, a proximidade e a ferocidade do monstro de ferro faz-me recuar, como se me protegesse até das vibrações que já se sentem ...

... num tumulto de mãos, e bocas que tecem comentários ao parceiro, e olhares, uns felizes outros verdadeiros. Resta-me retribuir a falsidade com falsidade, a ilusão com ilusão. Jogo o seu jogo uma vez mais.

Vou deixar de o ver quando as janelas brilhantes se interpuserem entre nós. E a multidão sair e o tornar parte dela, ou ele entrar na outra multidão que segue e se tornar novamente incógnito. Vou deixar de o ver, no preciso instante em que ...

... me debruço para a frente, num ímpeto sem cerimónia, de quem agradece sem sentir o dever de agradecer. Num impulso brusco, deixo o meu peito pender e olho o chão ...

... e não vendo, sabendo, fecho os olhos sem conseguir sequer gritar.


Precisámos um do outro, num diálogo de deuses.


31.08.02


agora e na hora

na hora
em que morre
o animal – anónimo (invisível:
absurdo
por não ter do hipócrita
a estima fetichista
da figura do dono titular assassino) –
sucumbe ao peso
dos átomos sobre a vontade
ou à leveza
do corpo sob o vazio escuro

o anonimato da morte
fecha o ciclo da
ignorância
expõe exibe condena denuncia
a distância irracional
das moles de matéria –

indiferença então.



Jan.22.MMV
(in livro xiii)

sábado, janeiro 22, 2005

2. vitrais a preto e branco

O dia avança por ele adentro, de tempo em riste
num acesso de poder inusitado, e desonesto. Violenta-o
na sua inadmitida fragilidade, passeia-se pelo seu medo
como um turista a fotografar um altar, e conduz-se
atrevidamente aos meandros da sua vertigem de futuro,
destruindo o parapeito de esperança com que se resguardava
dessa queda abnegada. O dia passeia-se pelo seu medo, e destrói-lhe
a esperança. Fotografa-lhe instante a instante, a preto e branco, cada
trémulo gesto, cada desconforto ou delírio, cada futilidade. E cola-as num álbum
só seu, a que vai chamando ontem. O dia não sabe disso. Ignoto da própria
crueldade, desliza apenas como quem pensa morrer em cada poente. Avança por ele adentro, e atreve-se na sua vertigem de amanhã.


(in a densidade das almas, 2003)

sexta-feira, janeiro 21, 2005

Diálogos Possíveis - I

Classes Laborais - Superiores e Subordinados



Sub. – Você é incompetente. Ponto final.
Sup. – Como? Atreve-se a repetir isso?
Sub. – E não reconhecer uma evidência como esta, a da sua incompetência, só pode revelar uma de três coisas...
Sup. – Veja lá o que está a dizer, ou terei de agir consigo de acordo com os direitos que me assistem...
Sub. – Típico... a Ignorância a puxar galões de autoridade para transformar a Mediocridade em Poder. Mas estava eu a dizer, se é que também não lhe falta, para além do resto, a boa educação de ouvir quando os outros falam, que não reconhecer uma evidência, e sendo esta a da própria incompetência, pode ser sinal de: uma estupidez simples de não ver o que é evidente, daquelas que não há nada a fazer senão lamentar que tenha calhado em alguém que infelizmente tenha alguma coisa a ver com a nossa vida; ou o não reconhecer a incompetência, que se subdivide por sua vez em duas hipóteses: ou não sabe que é incompetente, o que é gravíssimo em quem devia ser capaz de distinguir a competência da incompetência (coisa que não me parece ser de pedir muito a quem coordena, dirige, controla ou comanda); ou sabe que é incompetente e não o admite (demitindo-se, por exemplo), o que revela a má-fé que normalmente nunca é filha única nas mentes de integridade duvidosa.
Sup. – Você acaba de escrever oralmente a sua carta de demissão!
Sub. – Não comentando o absurdo do “escrever oralmente”, disparate que no meio dos do costume até passaria despercebido, lamento informá-lo de que tomar uma resolução de líder, como um despedimento, baseado na própria incompetência como justificação é um erro de meter dó e bradar aos céus.


(E brademos todos aos céus, ou pelo menos oremos para que qualquer semelhança com pessoas ou situações reais seja pelo menos, não podendo ser coincidência fruto da ficção, longínqua do nosso quotidiano)

quinta-feira, janeiro 20, 2005

evidente vacuidade do nome

Escorre uma ironia nos
teus lábios de marfim, desequilíbrio entre
o verdadeiro prémio e a glória que roubas –
fazes-te julgar na posse do que
lamentamos perder, e não tens mais
que um nome vazio – vazio o teu nome.

Não mora ninguém onde exaltas o negro
no teu olhar (não se reflecte nenhum pavor,
ninguém te segue, auto-proclamado e mudo oráculo).

Julgas conter o que anulas. Finges absorver
até o que pelo devir é dissipado em vida maior. Reverbera
em ti apenas o eco do nome. O eco vazio, repetido
à estridência – camada de nada sobre som nenhum.

Jan.20.MMV

(in a geometria da inexistência)

quarta-feira, janeiro 19, 2005

Noite Transfigurada - Parabéns, Eugénio

Nocturno com Gatos lembrou-nos ontem do 82º aniversário de Eugénio de Andrade, bem como do silêncio que envolve os poetas e criadores, nestas datas pessoais ou de efemérides marcantes da sua obra. Se compararmos com a contaminação verborreica que move imprensa e instituições em torno da mesquinhez da política medíocre, o assombro é evidente. Deixemo-nos envolver então pelas palavras de Eugénio...



NOITE TRANSFIGURADA


Criança adormecida, ó minha noite,
noite perfeita e embalada
folha a folha,
noite transfigurada,
ó noite mais pequena do que as fontes,
pura alucinação da madrugada
- chegaste,
nem eu sei de que horizontes.

Hoje vens ao meu encontro
nimbada de astros,
alta e despida
de soluços e lágrimas e gritos
- ó minha noite, namorada
de vagabundos e aflitos.

Chegaste, noite minha,
de pálpebras descidas;
leve no ar que respiramos
nítida no ângulo das esquinas
- ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.

(in As Mãos e os Frutos, 1948)


(a quem o título do poema remeter incondicionalmente para a obra homónima de Schoenberg, sugiro a versão de sexteto, mais soturna e cristalina, simultaneamente, que a avassaladora versão para orquestra de cordas)

terça-feira, janeiro 18, 2005

a vã beleza de deus

visceral o encontro
com a subtil nudez de deus

polimorfismo (hiperbólico
diriam o próprio e alguns
alados da casa) sem pudor

sem que a vergonha
ruborize as faces diáfanas
ou que arfe o peito
pelo amor que não há
ele sublima o vício
(voyeur desonesto) e
espreita a miséria dos
corpos finitos, exibindo(
-se) apenas a ausência
- beleza comparável
de translúcida
à diabólica vanidade.

Jan.18.MMV
(in livro xiii)

luz em pó

sobre a cómoda resta um fio
que o existir das coisas
não consegue quebrar – só
refractar (
o frasco de perfume há mais
de vinte anos bem pesados,
um santo, outro, aquele
iluminado, uma maçã
que não está ainda mais
engelhada que as do cesto
ao lado, um homem antigo
daqueles que sabemos
terem morrido mesmo
que vivos, fotografia nunca
olhada com amor,
uma caixinha, minúscula
para os comprimidos que
dali a vida tem tirado, um
livro, orações que usei para
a ajudar a dormir nas asas
de deus, uma caixinha que
nem ela soube nunca para
serve, um retalho de pano
que servirá para o quase
imperscrutável, e pó
)
- pó que reflecte sem
refractar a luz das frestas
da persiana suja.

para a minha avó, que fez 91 anos

(Jan.17.MMV)

nota sobre crime em linha recta...

a orgânica do declínio, o amor em queda livre, teatro de pele e crime em linha recta, espiral invisível são os primeiros poemas de um conjunto intitulado A Geometria da Inexistência, nome pelo qual serão identificados os poemas que a estes se somarem ao longo do tempo. Constituem portanto um ciclo distinto do anteriormente mencionado livro xiii. Sempre que forem publicados outros poemas ou textos que não integrem nenhum destes grupos em construção, serão devidamente datados e identificados segundo o nome do livro a que pertencem.

segunda-feira, janeiro 17, 2005

crime em linha recta, espiral invisível

Lembras-te de quando sentiste
pela primeira vez o peso da consciência fratricida? Ocorre-te,
quando acordas, recuperar o perdão? É indolor já
a tenacidade com que despontas do crepúsculo,
indelével talvez? Foi por acaso violentado
o céu, e és filha de um deus que fugiu? Precisavas de aniquilar
o sangue de luz a correr pelas horas?
(Tinhas de ser filha única. Não suportaste a ameaça
da comparação de cores, dos brilhos, das reverberações. Foi-te prometido
um jardim que não há. Não toleras a verdade, mas
não existem deuses deste lado)
Lembras-te, noite, de quando choraste pela primeira vez?


Jan.17.MMV

notas sobre o Diabo


The Fall of the Rebel Angels, by Pieter Bruegel

O último post constitui a terceira e última parte de um "tríptico" ... para agradar ao Diabo. Foram todos publicados aqui, e podem ser lidos na íntegra a partir do post de 03 de janeiro. "... para agradar ao Diabo" é o grupo de poemas que abre "livro xiii", título do conjunto a que pertencem também "flor íngreme" e "grão", igualmente publicados por estes dias. Os poemas que se lhes juntarem serão identificados no final por "livro xiii", para os distinguir de outros textos, recentes ou já datados.

... para agradar ao Diabo: terceira parte – cristais para lúcifer

I
Estaco, quedo-me
resoluto - decido (pel)o
silêncio.

II
Aprecio o deambular
sonâmbulo, do hipnotizador
sodomizado pela própria cauda.

III
Esvaio-me, um sorriso,
malícia sobre sangue, esperma
derramado em vão.

IV
Toco o vermelho sem
repulsa sem desejo
sem indiferença.

V
Acasalo com o demónio
sem contraceptivo
– o domínio silente.

VI
Ele toma a forma de
serpente, eu reinvento-me
covil e vara - antídoto envenenado.

VII
Metamorfose em corpo
de mulher, cadáver, imagem
- resisto, não definho no nojo.

VIII
Vagueio pelo corpo corrompido
como pelo virginal – cubro-o de
de saliva como de sémen.

IX
Passeio pelas entranhas da luz
(decrepitude última que o fim
admite) – “Sentes-me? Dói?”

X
Não te chamei em vão
nem foi a ambição móbil
faustiano da invocação silente.

XI
Vejo a tua morte num assomo
de lume aos olhos que me inundam
desta destemida volptuosidade.

XII
Cedeste tarde ao prazer que
injectaste, esvais-te cedo no amplexo
que te nego, ego saturnino.

XIII
Queda-te tu agora (infinito e
esquálido), seco pelo vento árido
que te prolonga o uivar eterno.

último cristal
Oco de ti, sobrevive pouco
do brilho que enunciou o canto
- ecoa livre agora, o silêncio.

domingo, janeiro 16, 2005

teatro de pele

O gesto nunca chega, o braço recusa
o contorno desavergonhado do impossível. O corpo sabe a lógica da emoção
proibida. O sonho conhece-a também -
semântica secreta do fio
de lume subliminar do desejo.

(O corpo sacrifica à linguagem o imaginário nu e indefeso, numa entrega
desonesta interesseira premeditada sobre o prazer antecipado)

A vereda do ventre continua deserta, onde habita ainda a mão cega.

Jan.16.MMV

pedaços de letras... de Philippe Claudel


Philippe Claudel

“Não sei muito bem por onde começar. É bastante difícil. Há todo esse tempo passado, que as palavras não recuperarão, e também os rostos, os sorrisos, as chagas. Mas ainda assim preciso de tentar dizer. Dizer o que me vai no coração há vinte anos. Os remorsos e as grandes interrogações. Preciso de rasgar o mistério à faca como um ventre, e de o remexer com ambas as mãos, mesmo se não mudar nada de nada.
Se me perguntassem por que milagre conheço todos os facto que vou contar, responderia que os sei, ponto final. Sei-os porque me são familiares como o entardecer e o nascer do dia. Porque passei a vida a querer juntá-los e alinhavá-los, para os fazer falar, para os ouvir. Outrora, era de certo modo o meu ofício.
Vou fazer desfilar muitas sombras. Uma delas, sobretudo estará em primeiro plano. Pertencia a um homem que se chamava Pierre-Ange Destinat”
(in Almas Cinzentas, Philippe Claudel, trad. Isabel St. Aubyn, ASA 2004)

POR ONDE ANDO...

I - Os livros que acompanham os dias presentes,
espalhados pelas horas que esperam por mim em lugares incertos.



Almas Cinzentas, de Philippe Claudel – uma sugestão de leitura que aceitei pela possibilidade de instantes de pensamentos partilhados. Ainda li demasiado pouco para poder emitir um juízo que não o interesse estimulado pela forma de contacto directo que o narrador estabelece connosco, talvez um dos atributos que tenham proporcionado ao autor o Prémio Renaudot 2003.

O Fio das Missangas, de Mia Couto – outra forma de fazer nascer palavras das mesmas coisas. Simples, com o encantamento que é reconhecido à escrita de Mia Couto.

Para Além da Morte, de John Galsworthy – leitura mais descontraída, embalada pelo realismo inglês, em pedaços que respiro quando nada mais parece apelar ao silêncio da leitura.

O Conceito de Amor em Santo Agostinho, da Hannah Arendt – não esquecendo que é uma dissertação de doutoramento de uma das maiores pensadoras do séc. XX, não deixa de ser uma delícia que poucos livros proporcionam, a erudição no feminino, delicada e profunda, exigente e livre. Um passeio inesquecível...

As Confissões, de Santo Agostinho – apesar de ainda só ter lido até ao livro VIII, até onde se descrevem ainda muitas das vivências anteriores à conversão e à entrega a Deus, é um dos textos que apetece beber até sermos capazes de dizer de nós mesmos aquelas verdade. Mesmo o impossível parece estar ao nosso alcance, ainda “sermos” homens e mulheres ao alcance do pensamento. Do mesmo autor, acabei na última semana o seu brilhante Diálogo sobre a Felicidade, que recomendo também.

História da Filosofia IV, de Nicola Abbagnano – um clássico que não tenho dispensado. Não o leio com o fim definido de preparar um exame, nem com o estímulo de conhecer a fundo os pensadores ocidentais, e não só. Tem sido uma leitura pela ajuda organizada e descomprometida que a sua linguagem de pedagogo dá na arrumação cronológica de eventos e homens, livros e revoluções no pensamento da humanidade. Acabei ontem (dia 15) o terceiro volume, aprendendo muito sobre a filosofia árabe e judaica, que tanto ensinaram ao Ocidente sobre Aristóteles, e tenho o quarto tomo a fazer beicinho por ainda não o ter desflorado. Apenas o marcador já dirige o seu lugar para Alberto Magno.

A Angústia da Influência, de Harold Bloom – tem sido um livro duro de fruir, um desafio, uma luta. Lembra-me de como me senti quando li a primeira vez a Obra Aberta. É daqueles livro que ainda sinto que se pode dar ao luxo de escolher o seu leitor, e tenta ironicamente chamar-me à sua leitura para me dizer devagarinho e com sadismo, que não sou ainda um leitor para si. Mas a minha teimosia por vezes é insensata. E tenho entrado no jogo. Leio, lentamente, como quem disfarça o desejo de o devorar, com medo de denunciar a ansiedade ou o temor de chegar depressa demais ao fim e sentir o gosto amargo de reconhecer que não devia ter lido ainda.




Rembrandt: Philosopher in Meditation (1632)


II - Impostos pelo estudo que a presente época académica intensifica, deixo-me perder ainda por:


Meditações Metafísicas, de Descartes – Depois das Regulae, e do Discours, as Meditações são uma leitura mais prazerosa. Não fosse o trabalho que tenho de fazer, o prazer seria ainda maior.

Categorias, de Aristóteles – já em fase final (de leitura, não de integração), é sem dúvida um grande texto, de interesse geral sobre a organização do pensamento e das coisas. Não tenho a certeza de estar a ler uma excelente tradução. Desconfio que não. Mas o apetite de continuar em busca da compreensão não é abalado por acidentes desta natureza.

O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente, de Karl R. Popper – ainda comecei a ler antes do Natal, mas só agora me encontro com disponibilidade de continuar. Estou muito curioso para penetrar na justificação de Popper da função de chave-mestra que ele atribui ao seu Mundo 3.

Do Cancioneiro de Amigo, de Stephen Reckert e Helder Macedo – Cantigas medievais como significantes poéticos de significados antropológicos – um outro olhar sobre a imagética medieval, dos mitos e ritos que a nossa poesia de excepção permite sublimar em versos de aparente ingenuidade. Grandes ensaios e análises de texto.



III - Os livros de que nem me dou conta de andar a ler,
de tão naturais que são os minutos em que neles tenho repousado:



Teoria Literária, org. de Marc Angenot – ler devagar, tema por tema, problema a problema.

Dicionário das Ciências da Linguagem, de Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov - referências incontornáveis da teoria literária e linguística

Source Readings in Music History: I. - Greek Views of Music – o Platão e o Aristóteles que ouviam música.

A Linguagem Harmónica do Tonalismo, de Christopher Bochmann - professor de quem guardo boas memórias, e cujo trabalho continua a ajudar-me a organizar as minhas aulas.

O Declínio da Idade Média, de quem não precisa de apresentações - Johan Huizinga é mestre na arte de fascinar, seja que esfera de pensamento for.

História da Literatura Portuguesa, de António José Sariava e Óscar Lopes – como o Abbagnano, leitura de longa duração, sem destino, sem pressa, ao sabor do tempo.


Ein-Blick (aquarell 54x62), by Birgit Blumenstock

um livro por escrever

Através das cortinas sujas, diáfanas apesar disso, consegue observar a desorganizada aleatoriedade das pessoas que dia após dia lhe passam diante da janela. Nunca a sua memória visual lhe permitiu reconhecer alguém (embora admita que possam ter havido casos, espera que poucos, de pessoas lhe terem passado despercebidas ou inadvertidamente irreconhecíveis). Já não sabe o que ali faz, horas a fio, mas continua na convicção plena de que algo ali espera por si.
Escreve em folhas sujas - sujas de tinta em descuidadas pinturas e sombreados, sujas de pó pela ausência de palavras, sujas dos rastos deixados pelos insectos que consigo privam e ajudam a devorar não só os encadeamentos dos segundos, como também os resquícios de papel resultante de inúmeras rasuras. Mas no meio deste labirinto que viola a desejável brancura do receptáculo literário, sempre consegue encontrar um canto onde anotar cada nova descrição.

Almoçou parcamente, como de resto acontece com todos os momentos vitais da sua presente existência. Deixou-se cair novamente na poltrona que, desde o dia em que a comprou à família do vizinho falecido, acredita proporcionar o contacto misterioso com uma certa forma de dormir, necessária à sua tarefa diária – um dormir de olhos despertos, um sono de guarda vigilante, que revê no sonho confuso a dança de rostos desfocados apreendidos durante a manhã. Apenas o leve roçar de alguns sapatos na calçada lhe faz tremer levemente a dormência, mas retorna de seguida o estranho sono, até acordar pelo despertador interno que lhe diz que a matéria anda à solta e é preciso trabalhar, o que acontece quase sempre de manhã e ao fim da tarde, horas de maior afluxo de deambulantes almas à mercê da sua janela de olhos atentos.

Com sapatos de roçagar leve pelo chão, submissos e arrastados, em cadência quase morta, o vulto que mais perto se encontra de si e dos seus olhos no vidro é um homem ainda novo. Em tanta gente uniforme e monotonamente igual, já quase nada lhe permite distinguir da multidão um ser individual por alguma característica especial. Quando tal acontece, o punho começa a tremer levemente, e a alma tenta respirar silenciosamente para não acordar a ansiedade que ao lado espera. Nesse momentos sabe que escreverá uma frase, uma descrição breve que seja, um suspiro em forma de palavra, qualquer coisa, mas influenciado pela característica observada.
O homem que esta tarde lhe perturbou o sono a ponto de pensar que ia escrever, apenas se distingue da alucinada nebulosa viva, pela incongruência do seu vestuário com a leveza do andar. E pormenores destes acabam por não chegar para escrever seja o que for. É daqueles casos em que a ideia fica no espírito a acumular com outras não realizadas, à espera que o conjunto suficiente de pormenores mereça o esforço de violar o vazio, arriscando a perdição da inocência do não-escrito.

Apesar de tudo, não é uma pessoa distante do mundo.

Ouve também muito bem. Por vezes, joga toda a sua confiança na audição. Deixa-se estar de olhos fechados, mesmo depois de saber que os devia abrir. Mesmo por saber que a material transmutação das suas personagens anda lá fora, deixa-os estar fechados e testa-se nessa coragem angustiada. Cada som de vestido esvoaçante, cada murmúrio de passos distantes, cada assobio de passagem veloz, se podem tornar sinais de presenças a reter.

Tem ao lado da poltrona uma estante de madeira, muito velha também. Cheia de livros que não abre há muito tempo. Nem sempre leu muito. Há alguns anos que a vida se tem organizado em torno da ilusão da escrita, e não da miragem da leitura. Antes, em cada vulto reconhecia algum traço de um personagem lido, e revivia nesse momento a alegria de partilhar com um grande escritor a revelação da universalidade do ser humano, como se em todos e em cada um de nós um livro já escrito se desfolhasse a cada dia volvido.
E não é em destino que pensa ... seria em poesia metafísica, se pensasse nisso.

Quando arrisca escrever uma palavra, sabe o peso que a tinta exerce na sua alma, mais do que no papel ansioso, à sua frente. Ao tentar iniciar uma descrição, pondera primeiro a forma como relacionará determinada particularidade observada com outros aspectos que queira atribuir a um ou outro transeunte. Porque não só do observado se constrói uma imagem...

Escreve desordenadamente... dolorosamente, ordena de novo o branco em pinceladas de censura e desilusão.

Anoitece lentamente...
...

Um passo ...

Acorda sobressaltado ...

(17.07.01 - rev. 2005)

rainy night, by Michael J. Russell

sábado, janeiro 15, 2005

ontem, o céu

naquela apenas
solitária, não morta
ou silenciosa,
madrugada
vieste embrulhada
em nuvens e choveste


22.12.03

(in Horizontes de Ouro, 2004)

sexta-feira, janeiro 14, 2005

... para agradar ao Diabo: segunda parte - a invocação silente

II
Na esfera do reduto
final do grito iniciático
ergue-se uma sombra
uma dúvida, inquieta
paixão pelo derrubar
sem dó do preconceito
e da descrença vazia.

Desliza nos bicos
dos pés, dilacera o ar
com esgrimas de viuvez,
afila o sorriso negro
num gume sarcástico
de vitória antecipada.

Julga fortuna a desdita
do chamamento de sereia
em que a metamorfose
da culpa me transforma.

Assoma às ameias da
alma suplicante com
tréguas nas narinas e
golpes de olhar nos
lábios, trémulo, a baba
enunciado, eloquente,
a volúptia do sangue
prometido no grito
em fingida agonia
renascido, edificado.

Sabe que perdeu, que
perde sempre que aceita
o desvario de quem
o invoca –desocultamento
da sua impotência
face ao desejo de
servir a súplica do
desesperado. Perdeu
porque se vulnerabiliza
ao poder do sacerdote
profanador do mal.

“Acede ao meu temor
vem à pele ensanguentada
beber a tua vida, e aqui
exercerás o último resgate”,
proclamo, derrotado e
silenciosamente triunfante.

o amor em queda livre

Ela murmura ainda, como num rascunho, uma experiência de despedida adiada
antes de desligar - um “sabes...”, um “espera...”, um “tenho ainda tanta coisa para...”, um “foda-se...”.
O diâmetro de um círculo mede-se com os olhos fechados.
O olhar foge à perfeição e à completude. Para o número redondo
é preciso escutar o tempo entre duas interjeições banais. Medir é caber, primeiro,
e comparar com a ausência, depois. Ele suspira, como um olhar gélido de cansaço a descer por um rio sujo, suspira sem som, sem comunicação. Sem sentido. Sem um “diz...”, sem um “falamos depois...”, sem um “é tarde...”, sem um “foda-se...”.
O volume de uma esfera é medido pelo tacto, pela palma da mão
sobre a pele das nádegas, pela profundidade a que os dedos se perdem, pelo cheiro que transborda das narinas para fora. Caber, primeiro. Deixar de estar, depois.
Não comparar. Cair.
A palavra e o corpo. Geometria do indizível e do impalpável.


quinta-feira, janeiro 13, 2005

quarta-feira, janeiro 12, 2005

a matilha

Como num dia de outono, a luz incide-lhe nos olhos, a uma certa distância, ao de leve. Paira um pouco antes de lhe lamber o rosto, mas acaba sempre por beijá-lo docemente. Dá-lhe uma nuance pálida aos contornos, mas enobrece-lhe o olhar, já que para recebê-la ele os deixa por alguns instantes vazios – abertos, mas vazios. Encantadores. Mais do que a sua consciência consegue projectar para fora de si, sente-se mal. Olha em frente sem ver, pensa sem existir fora do pensamento.
Apercebe-se da minha presença e respira de cansaço.

Ao longe, as nuvens desenham corvos azuis claros e unicórnios. Na sua mente qualquer construção natural tem o seu quê de inexistente e fantástico. Porque o real tem sempre o mistério de não ter ainda existido.
- Mais um dia assim – diz-me, numa apatia familiar, sem se voltar.
- Mais um dia assim – replico com tranquilidade, sem desviar o olhar dos unicórnios.

(São lobos)

Abraça-me, como eu o tivesse pedido, mas sem me encarar, sem me deixar mexer, sequer. Estamos sozinhos, perante árvores distantes, relva húmida, sol inquiridor. Mas ainda me toca como se de uma oferenda se tratasse, uma generosa aplacação do meu desejo ou da minha sensibilidade.

Aos quinze anos ele já sabia sobre o que é que o sol perguntava com tanta insistência. Eu só mais tarde compreendi o julgamento celeste. Os nossos desaguares foram recebidos nos antípodas dos afectos – os meus amigos são meus amigos; os seus ex-amigos são estranhos com nome. Moveu-os o comportamento fácil da incompreensão, ou o mecanismo mais complexo do medo. Os meus escolheram o labirinto da turbulência relacional, mas navegaram por esse mar de dúvidas com a resolução de uma questão pessoal – se tinham fantasmas pessoais a respeito da sua identidade, enfrentaram-nos e sobreviveram. Os seus ex-amigos, sucumbiram aos seus fantasmas sexuais, e continuam sem saber como lutar se um dia a tempestade não for bater à porta ao lado.

- A que horas chegaste?
- Há praticamente duas horas. Ainda não fui a casa. Calculei que estivesses aqui. Queres ficar sozinho?
- Não. Acho que não. Quer dizer, não sei se quero ficar sozinho ou não. Mas, pelo sim pelo não, fica. Posso descobrir, entretanto – acaba por dizer, sorrindo, e pela primeira vez depois de três semanas sem nos vermos, olha-me e beija-me, como se já tivesse encontrado a resposta.

Depois de algum tempo sem pensarmos em mais nada senão no nosso idealizado futuro e no banal presente, começamos por vezes a querer vasculhar o passado, passá-lo a pente fino. Queríamos descobrir um gesto, uma palavra, um dia diferente, uma oferta, um abuso, um trato, um carinho, algo... Fosse o que fosse, acho que nos satisfaria. Depois de alguns anos deixamos de ambicionar a verdade. Serve-nos o que encontrarmos. Nessa altura duas coisas podem suceder: encontramos algo que achamos digno de nos reprimir o sentido de culpa por um número de anos que consideremos suficientes; ou não encontramos mesmo nada, e temos de construir para nós um novo passado prenhe de coisas a encontrar se procurarmos com determinação teleológica. Na melhor das hipóteses não temos consciência de qual das duas situações nos corresponde. Na pior, sabemos ser uma delas e estamos conscientes da infelicidade que esse conhecimento comporta.

Retribuo o beijo, sem desejo, sem vontade de pensar nos porquês da indiferença. Sei que ele prefere assim. Não saber que não se é amado faz com que o tempo pareça distender-se à nossa frente até decidirmos olhar para a verdade. Saber que não se é amado faz caber a eternidade numa hora, como o Blake pensava que sabia.

(Somos lobos)

- Não vou ficar muito tempo, provavelmente. Acho que está a ser ridículo demais para a nossa condição e idade. E mais ainda para o que pensamos de nós próprios e mutuamente. Tens pensado no vazio que nos espera?
- Não. Tenho pensado no vazio que habito. Como tu, pelos vistos. Que vazios temes tu ainda?
- O anonimato e a vulgaridade. Ambos definições do passado, ambos à nossa espera. Eu pelo menos só encontrei um nome em ti. E sei que perderei o meu quando sair.
- Voltar a ser uma boca ou um pau apenas, às escuras ou debaixo da luz amarela refractada no pára-brisas embaciado, não será propriamente original, mas talvez por isso mesmo não me assuste. Assusta-me poder não reconhecer de novo becos sem saída como o nosso.

Não me emociona ouvi-lo mentir. Como não me emocionou antes dizer a verdade. Afinal de contas ambos sabemos que a emoção maior vive sempre fora do que se vive emotivamente. O que se vive com entrega nunca pode ter nada de precioso, ou a eventual perda surgiria como uma ameaça que ninguém ignoraria. É estúpido pensar assim, sabendo que não se tem razão no que se pensa.

Os corvos clarearam ainda mais, não sendo mais que alguns riscos brancos já, penas soltas. Ele levanta-se. Passa-me a mão no cabelo. É uma despedida típica. Como se nos fôssemos encontrar logo à noite em casa, depois de cada um ter ocupado parte do dia na camuflagem diurna da cidade. Sem me voltar, ouço a porta do carro fechar-se. Pelo arranque, percebo que palavras não me disse. No cavalgar do último unicórnio ouço as palavras que eu próprio não quis dizer.


(Sem lhes vestirmos a pele)

...para agradar ao Diabo: segunda parte - a invocação silente

I


Oxalá o dia não nasça
um dia, e só ameace
espreitar por detrás de
uma manta de sombra.

Quem sabe o que eu
veria nessa velada dança
de um dia coberto de
pó areia cal ou cinza.

Centelhas de imaginário
se cobririam de ouro
ou de pólen, que é ouro
para brincos de mel.

Oxalá o coração pare
num silêncio teatral
num suspiro fingido
de surpresa ou ânsia.

Quem sabe o sabor
do erguido instante
acima do ruído vital
e da alvorada escura.

Um exército onírico
me derrubaria de mim
abaixo, como árvore
pelos ventos do norte.

Oxalá não sinta outro
inferno a nascer-me
atrás de cada instinto
nem dentro dos sons.

Quem sabe o que dirá
o Diabo, assim invocado
sem aviso nem piedade
por este nado-morto.

Palavras impetuosas, as
que bramará por esferas
abaixo, até estrangular
o meu atrevido gemido.

terça-feira, janeiro 11, 2005

A recordação de coisa nenhuma

Dentro de poucos minutos o concerto estaria a começar. Estava no meu lugar, como quase todos os outros elementos. Como em quase todas as vezes, inundava-me a letargia profunda que só se dissolveria em breves momentos, fugazes, numa ou noutra peça, caso do programa constasse alguma obra que me enlevasse ao ponto do exorcismo. Em todas as outras alturas, como esta, o estado de dormência espiritual manter-se-ia ao longo do concerto, ou agravar-se-ia até ao limite de uma fobia ao som, uma fobia de música, de espectáculo, de público, que me faria regressar, terminada a performance, a um alívio de silêncio e de introspecção sem rumo mas desejada.

A poucos minutos do início do concerto, já com o instrumento montado, com algumas notas emitidas, para enganar os lábios e os fazer sentir relaxados e eficazes, dei por mim numa paralisia (in)voluntária, ou in(voluntária), caso assim se entenda melhor a ambiguidade da vontade.

Tenho por hábito remeter as crenças místicas que envolvem os sentidos e a razão, para a quadratura a pontilhado dos produtos da criatividade intelectual – como mais um elemento do mundo 3 de Popper. Não tenho por hábito, assim, valorizar os comportamentos misteriosos, mesmo que do meu próprio espírito.

Desta vez suspendi o meu juízo mental sobre tais fenómenos e, talvez por força da necessidade de escapar à inevitabilidade da fuga impossível, comecei a anular todos os sinais da minha presença e, simultaneamente, da presença de tudo o que me rodeava.

Naquele momento, tinha algo no meu colo. Penso que um livro, talvez uma partitura. Os meus olhos dirigiam-se aparentemente para o seu conteúdo. Mas na verdade os meus olhos eram os meus ouvidos, os meus pulmões, os meus músculos, o meu coração. Os meus olhos eram a única coisa que eu acreditei, naquele instante, existir ali, de mim. A sensação é comum a outros momentos, mas ali adquiriu uma função terapêutica, ou uma anti-função, dado que constituiu um atenuar de sensibilidade e dados vitais. O corpo atingiu uma imobilidade que não me recordava de já ter alcançado. Os músculos pareceram decidir respeitar um minuto de silêncio, numa atitude de reverência para com a estaticidade da mente, como os amigos de um defunto, em redor do caixão, antes de para os cigarros e as anedotas típicas de todos os velórios. Só os olhos viviam. Sem ver. Tenho de acreditar que os pulmões tenham continuado a representar o seu papel, que o sangue tenha conseguido manter o seu rumo no seu leito do costume, que o mais recôndito espaço intestinal tenha cumprido a sua razão de existir perante o jantar. Tenho de acreditar em tudo isso com uma fé mais intensa que a necessária para acreditar em Deus (porém, não tão enigmática e majestosa como a que recrutamos para acreditar na Morte).

Senti-me possuído por mim. Num sentido desabitual da posse de nós mesmos a que nos habituamos. Senti-me possuído pelo que de mim costuma diluir-se no que de mim possui outras coisas, dos sons aos movimentos que rodeiam qualquer minuto de vida. Senti-me possuído por nada mais que mim mesmo. Eu era só o meu olhar que não olhava para nada. Era só o meu olhar, que em vez de ver, respirava, tremia, pulsava, ouvia, abraçava o silêncio, gritava de músculo para músculo ordens inconsequentes.

Como um buraco negro à escala da realidade que me rodeava, tudo foi absorvido pela expulsão do meu olhar. Deixei de ser ali para que o próprio ali fosse eu - o meu olhar cego.

Mesmo assim, senti descolar-se de mim, deste olhar grávido de escuridão, uma outra consciência que me colocava ligeiramente atrás de mim mesmo. Podia intuir o meu olhar, vê-lo por detrás da própria visão, espreitar por cima dos ombros dos olhos e aceder ao que o olhar surdo e quieto me ocultava. Intuí assim a presença do maestro no estrado, a ovação que o recebeu. O início do concerto foi-me dado, clandestinamente, por este outro sentido, por esta possibilidade de passar por mim até ao real sem mim. Confiei nesta percepção difusa e levei o clarinete à boca, aos lábios já quase esquecidos da sua função antecipadamente preparada. Os sons de reminiscências espanholas, de um pseudo poema sinfónico de má qualidade, ecoaram na sala e confirmaram-me a necessidade de tocar. Toquei. Lá, e algures entre lá e mim.

Na viagem de regresso a casa, tento recordar-me do repertório, da reacção a cada obra, do final do concerto, dos aplausos do costume. Nada. Apenas a memória daquela lânguida ausência de breves minutos. É a recordação mais vívida, a de coisa nenhuma.


um passeio pel'O Navio de Espelhos

deixo aos leitores que por aqui passem por estes dias a sugestão apresentada por Divas e Contrabaixos, de um encontro na Livraria O Navio de Espelhos, em Aveiro. Para informação mais detalhada, deixo o link (perdoem-me não saber apresentar o link de forma mais profissional :) , mas assim não se perdem por esse espaço fora)

http://divasecontrabaixos.blogspot.com/2005/01/bloggers-vossa.html

Pela qualidade e profissionalismo deste blog, não hesito em remeter-vos a ele.

segunda-feira, janeiro 10, 2005

grão

vincos que o tempo
alisa. perde-se
a rugosidade - fica um grão
uma filigrana de dor. espasmos
sem pulsação. só pulsão
vómito agonia.

(vibração de dentro
para dentro fora
de tempo à margem
do tempo em vão)

rugas dobras
uma conivência com
a textura das flores violentadas.

Jan.08.MMV

a orgânica do declínio

Vazio. Queda. Desordem. Um apelo breve. Incisivo.
Um sussurro de podridão.
Há sempre uma vida feita numa rodilha
à procura das mãos que a ajudem a cumprir o destino.
Uma desconjunção constitutiva. Um descarrilamento ancestral.
Um mito do pecado original extensível ao que não surge da crueldade da vileza da torpeza da malignidade da promiscuidade da irresponsabilidade da inveja da perversão da corrupção do desejo da degenerescência das paixões do desequilíbrio dos sentidos da malvadez gratuita do vilipendio desavergonhado da miséria dos valores da insensatez existencial.
Um mito extensível ao que surge apenas do ar da água da terra do fogo.

domingo, janeiro 09, 2005

... para agradar ao Diabo: primeira parte - o encantamento ancestral

III

Medeia mais de uma
vida vazia entre as
mortes consequentes
dos príncipes idílicos
que me povoam em
cada eternidade vivida;
esqueço-te/-me/-vos
sem que seja alto ou
ridículo sequer o preço.

Inicio, reinicio a queda
sem aparato nem nojo
agora, porque o verão
fará apodrecer agora
os resquícios de vida
que as palavras tiverem
deixado acesos ainda
como brasas em casa
de campo, madrugada
adentro, manhã afora.

Penso que sei afinal
mais do mundo do
que quando cheguei;
os primeiros dias
foram estranhos e
inquietantes, mas a
fome a sede e a fé
dão ao sentido o que
de sentido lhe falta;
depois é uma questão
de espaço – para ser
para criar destruir
e acima de tudo odiar.

Agora parto? Ou resta
aniquilar alguma alma
mais? Ou deambular
mais uma eternidade
p’las pantanosas areias
de mais um espírito
estúpido e crédulo?

Resistem em mim mil
vermes ainda sãos.
Ou quase mil, já que
tu também por agora
desfaleces pálido e nu.

sábado, janeiro 08, 2005


morte perpendicular (beco em ruínas, Santarém)

as casas morrem

XXII

as casas mantêm
a nobreza de um velho...

ano após chuva
... após roupas estendidas
leite no pátio derramado após desmaio fatal.
as casas morrem

e o seu corpo permanece
sábio
com respeito por tudo
que as não habitou

as casas não vegetam
eternamente imaturas
viajam sim pelo
silêncio inquieto do
vento que as acariciou
e depois as vela
num sopro de luto.

(in Infinitas Impossibilidades, 2002)

sexta-feira, janeiro 07, 2005


Amantes: claustro da abadia de Sto. Domingo de Silos (século XV - Burgos)

Que soydade ...

Que soydade de mha senhor ey,
quãdo me nembra d’ela qual a ui
e que me nembra que bem a oy
falar, e, por quanto bem d’ela sey,
rogu’ eu a Deus, que end’ á o poder,
que mha leixe, se lhi prouguer, ueer


Cedo, ca, pero mi nũca fez bem,
se a nõ uir, nõ me posso guardar,
d’enssandecer ou morrer cõ pesar,
e, por que ela tod’ en poder tem,
rogu’ eu a Deus, que end’ á o poder,
que mha leixe, se lhi prouguer, ueer


Cedo, ca tal a fez Nostro Senhor;
de quãtas outras [e]no mũdo son
nõ lhi fez par a la minha fe’, nõ,
e, poy-la fez das melhores melhor,
rogu’ eu a Deus, que end’ á o poder,
que mha leixe, se lhi prouguer, ueer


Cedo, ca tal a quis[o] Deus fazer
que se a non uyr, nõ posso uiuer.

D. Dinis

... para agradar ao Diabo: primeira parte - o encantamento ancestral

II

Vai-te para dentro
de mim agora, ou
respira para longe
esse bafo a sorte
a agoiro a felicidade;
rastejas como um
fio de sangue aos
pés da estátua do
meu corpo erecto
mas não semearás
mais vermelho no
pálido tecido da
minha angústia.

Ignoro o dia hora
e cor do instante
perplexo em que
te abracei, com o
nojo pintado nos
olhos e o medo a
sorrir de inocência,
mas sei o cheiro a
que fazes cheirar,
à distância de um
pensamento azul
como o fedor de
uma cobra na sua
labuta de câmbio
vítreo e iniciático.

Encaro-me com a
paixão do cadáver
pelo escuro, pela
profundeza do
inquietante ermo
onde divaga, além;
mas não me sujeito
a um poder que não
tens, a uma vontade
que não é tua, nem
a um pensamento
que inventei para ti.

quinta-feira, janeiro 06, 2005


são asas... o lume os corpos ... são chamas

untitled

a imagem é um trabalho de susanna corrias. vale a pena percorrer as restantes fotografias deste grupo em http://www.gruppogarage.com/

coro



cantos
silêncios de um azul de azálea
percorrem veias
inundam sepulturas
nas almas
nas peculiares cavidades
onde se escondem
o passado e a eternidade

leveza e melancolia



Esparsas penas
sobrevoam silenciosas
sobre as árvores
nas madrugadas
dessa densa e efémera
tristeza.

(... mais que uma folha
decide cair com a lágrima
deste pássaro que sobrevive ...)

(eu sabia que um dia voltaria a precisar de escrever isto)

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Quatro Melros e Eu



uma escultura ao fundo, depois do lago. quer dizer, não é ao fundo. atrás ainda espreitam prédios desalinhados. mas a escultura é um fundo. marca o limite de até onde o meu olhar se detém com interesse. os vários seres que flutuam sobre a água verde (que hesito em chamar patos para não ofender nenhuma plumagem mais nobre) provocam riscos na superfície. riscos, sim. traços. traços móveis. traços curvos móveis. ondulação ténue que o olhar teria de supor apenas, não fossem os traços curvos móveis que os flutuadores provocam. a escultura é branca. já tinha dito? ... não. mas é. fica bem com o verde (apesar de eu desconfiar que o motivo da escolha pelo artista foi mais prosaico e tentadoramente mais económico para o mecenas). mas as aves que perturbam a perfeição do reflexo não querem saber de política cultural. dá-lhes apenas prazer desfazer a pose líquida da sereia. isto já tinha dito, não? ... ... escultura... vários seres... ... não. mas é uma sereia, sim. daí ser evidentemente compreensível (ou compreensivelmente evidente, conforme o sujeito do enunciado) que os ovíparos (espero que nenhum tenha optado por modernas técnicas reprodutivas) não engracem com “aquilo” ali deitado sobre a água, que parece tão forte e se desfaz em riscos quando eles simplesmente mergulham a cabeça, ou até quando somente defecam. sim. já contemplaram a maravilha de um pato a defecar num lago? porque é que pensavam que a água era verde? pelo reflexo das árvores? sim, à volta existem árvores, mas isso nem vou confirmar se já vos tinha dito. antes, no entanto, que o meu olhar chegue ao lago serenizado (modificado pela imagem da sereia, entenda-se), detém-se num pequeno palco, baixinho, de pedra, feito de paralelipípedos cinzentos e de rebordos desenhados a verde pelas ervas que os tentam separar uns dos outros. chamei-lhe palco? talvez pela ideia que promove de que a qualquer instante ali se possa passar algo que mereça o aplauso de quem, arbitrariamente, se sente nos lugares de pedra que circundam metade do espaço - (tenho quatro melros a olhar para mim. dois machos e duas fêmeas. será normal? Ou fará parte do espectáculo iminente?) – há um paralelismo entre as superfícies. O lago onde os mandarins e os marrecos dançam sem saber que dançam, e o palco de pedra onde os pombos se exibem sem saber que são as estrelas. eu tinha falado dos pombos já? isso é lamentável, até porque sobre eles não hesitei em chamar-lhes pombos. e nenhum desaprovou (sim, houve um que quando viu os melros sentiu uma pequena inquietação de identidade, mas disfarçou). os pombos não têm uma imagem de sereia para riscar. não têm jeito para dançar. a bem dizer, só partilham com os vizinhos do lado o fascínio pela acção de defecar. e isso não me atrevo a duvidar de que já tenham presenciado. De resto parece não terem ali mais nada a fazer. como eu. não. não se preocupem, porque só partilho com eles esta inércia. mas eu tenho um propósito. importante, e bem definido. Vim fazer de conta que vinha estudar. e fiz.

(16.00 h)

terça-feira, janeiro 04, 2005

flor íngreme

desejo um azul

em forma de nunca,
(nuca
nua
nu
)

não

em vez de um
domingo, que se adapte
ao olfacto como
uma tulipa, ao prazer

branco,
não
vertigem, apenas.

um fluido,
telúrico e acre
-
noite sem penumbra.


Jan.04.MMV

depois de um dia qualquer


Apesar de morta, continuo a sentir este formigueiro, este prurido incessante, na planta dos pés e por detrás dos olhos. Não vejo nada, mas sinto como se visse, como se olhasse e continuasse a olhar como antes para o fundo das coisas, onde elas já não são o que são, como eu já não sou o que sou, para os outros olhos que me evitam. E só este formigueiro intenso e incómodo me salva do esquecimento.

Lembro-me agora bem como a queda do sentido das coisas começou, lenta e sinuosa, como uma gota perdida no labirinto de uma folha de plátano.

Ontem, cedo, penso que ainda antes do despertador tocar pela terceira vez, senti-me exausta; sabia que seria um dia de turbulentas acções, mas nunca tão nitidamente como agora me apercebi de como tudo começara.
O que sempre se ouve dizer acerca da morte dos outros acaba por ser verdade, porque os outros são todos. E quando se fala em saudade não se sabe o que se diz. Nunca.

Acho que foi a minha beleza.
Sempre fui, e sou, uma mulher bonita; uma jovem de beleza cativante e misteriosa. Essa confiança acompanhou-me durante os últimos segundos. A beleza, atributo que a muitas mulheres atormenta, fez da minha vida um paraíso aparente, uma ilusão de que tudo estaria para mim reservado. E esteve. Mas eu não quis.
As pessoas ...! Estamos sós, mesmo quando pensamos que somos compreendidos. Mesmo quando nos lançam olhares de súplica. Mesmo se o amor nos acompanhou o zunido vital de todos os dias.
E eu apenas quis ver este silêncio.

Começam por nos achar pessoas mais distantes, e eu acho que isso não é verdade; acho que nesses momentos é quando nos sentimos colados aos outros e às coisas, inevitavelmente. Sentimo-nos indiferenciados, talvez, mas não distantes. Indiferenciados ou indiferentes, sim. Mas não distantes. Nem tristes, nem morbidamente presos à vida.
Olham-nos com alguma curiosidade porque acabam por suspeitar que o nosso silêncio é de outra cor, que a nossa vida está lá, do outro lado da janela.

Não procuro hoje uma resposta mais do que antes, porque já a sabia aqui, tão perto. Sim, aqui perto, bem junto ao nariz da alma, onde esse faro incurável nos faz entristecer de inveja pelo futuro dos outros. Porque só nesse lugar Outro é que nos conseguimos realmente sentir mortos; não é como os poetas dizem, não. Ou será, mas noutra língua - a dos sentimentos não vividos.

A saudade não é uma rua de sentido único.
E a vida não é mais que uma obra de arte inacabada. Esboços somos para nada. Milan querido, como te recordo com tantos nomes, com tantas cores e palavras, neste limbo que sou, nesta sensual leveza de não ser, Sabina ou Tereza?

As pequenas distracções que povoam os nossos dias, inócuas e significativas, são interpretadas muitas vezes como acções auto-destrutivas, como flagelações mortíferas incompletas, inconscientes. Acabei por perceber que não eram acções, muito menos auto-destrutivas, nem tão pouco inconscientes. Todos os actos são destrutivos de qualquer coisa. A questão é sempre a da escolha de “o que destruir”. Mesmo quando, por distracção, quase somos atropelados, quem queremos destruir? Que parte de nós morre atropelado? Que parte de nós morre envenenado? Que parte de nós não morre?

Acho que foi a minha beleza.
Sempre que numa relação amorosa, ele me dizia “és linda”, a punhalada era mortal. Não sei porquê, mas sempre o óbvio me soou a falso. Sempre vi a realidade como uma fotografia. Sempre ouvi uma orquestra como um bando de pássaros frustrados por não serem capazes de voar como os outros, tentando apenas, para colmatar esse handicap, imitar grosseiramente a superior mestria e pureza do seu canto distante. Sempre cheirei cebola, não acreditando que aquele fosse mesmo o seu cheiro. A verdade nunca é tão óbvia. Sempre desejei que alguém visse de mim o que sou. “És linda!” Pfff... Claro, mas o que sou? O que era? A que cheirava realmente? Que ruído ensurdecedor emanava da minha voz quando dizia: “amo-te!”?

Por detrás dos olhos, incessantemente, e na planta dos pés, como se uma chama distante aquecesse o ar em meu redor, e esse calor atraísse o sangue que ainda corre a dançar, incómodo, à flor da pele ... a volúpia da morte ...

Azul, o meu silêncio. Porque é que pensamos sempre que é branco? Enquanto vivemos, temos tendência a pensar que vemos o mundo às cores. Mentira, a maior parte das vezes nem o vemos sequer. Mas vivemos com a ideia de que o vemos intensamente colorido, e por preocupação compreensível, absurdamente compreensível, achamos que a cor do silêncio devia ser branca. Por simpatia para com o vazio, talvez, como o de uma página ...
Envolta neste calor estranho, o corpo adormecido num torpor desconhecido, a alma agita-se em arrepios interiores.

Acho que foi ...
Desliguei o despertador e saí apressadamente do quarto como se não desejasse reter a imagem dos lençóis amarrotados, como recordação que me ancorasse ao real. Como noutras alturas, lavei a cara sem me mirar no pequeno espelho. Não me veria, de qualquer forma, de olhos fechados. Não saí logo. Sabia que tinha tempo. Passamos a ter mais tempo quando já não o temos. Na rua, lembrei-me do livro que andava a ler e voltei a buscá-lo. Para enganar o destino? Acho que não. Apenas porque não quis morrer em jejum espiritual. Na rua novamente, fechei os olhos por cinco segundos, com vergonha do sol. Superior a ele em tudo o mais, só no meu crepúsculo me senti menos digna do seu amor. Raiva pela sua capacidade de renascer?

Daqui a duas semanas estaria a apagar uma imensidão de velas, a tentar não ouvir o que cantavam à minha volta, a tentar chorar sem conseguir, a pensar ... uma imensidão ... quase trinta pequenos sopros e a escuridão na sala cheia de fantasmas de felicidade. Seria daqui a duas semanas ... Por detrás dos olhos, sorrio subtilmente, tentando enganar a dor e o formigueiro.

Infantilmente, pés de neblina, percorro o labirinto ... e lembro...
e sinto...
e penso...

Penso!
Penso, já não existo ...
(Março, 2001 revisited)

segunda-feira, janeiro 03, 2005

Divas & Contrabaixos

Divas & Contrabaixos

pedaços de letras... de Mircea Eliade...

...do livro que estou a ler

“Eu já tinha ouvido falar dele mas nunca o tinha visto. Estava à espera que aparecesse. A vivenda onde eu tinha alugado um quarto nesse Verão ficava no alto de uma colina. Chamava-se Vila Cornélia. Era a última da aldeia. Foi por isso que o jovem tártaro só passou pela minha casa depois de ter estado em todas as outras. Mas foi, de qualquer maneira. Era o seu ofício: ganhava a vida a exterminar as moscas. Chegou uma tarde, pelas duas horas. Eu estava a dormir a sesta. Ouvi-o bater à porta e fazer a pergunta: «Tem muitas moscas?» Saltei logo da cama. Estava ansioso por o conhecer. Tinha moscas, é claro, como toda a gente em Tekirghiol, mas o que me interessava mais era conhecê-lo. «Bastantes», respondi-lhe eu. «Que vai fazer com elas?» «Vou expulsá-las e durante uma semana não tornam a aparecer. Se vier alguma, o senhor não me paga». «Quanto quer pelo serviço?» «Um leu. Metade agora e o resto para a semana. Se nessa altura me mostrar uma só mosca que seja, devolvo-lhe o que me deu por conta.» «Combinado», disse eu. «Vou ver como o senhor faz.»"

in Rua Mântuleasa, de Mircea Eliade (trad. Ricardo Alberty) para a Ulisseia.

"Rua Mântuleasa", de Mircea Eliade Posted by Hello

... para agradar ao Diabo: primeira parte – o encantamento ancestral


I

Eclodiram em mim
mil vermes doentes;
mais de um milhão
de parentes sujos
vieram assistir ao
parto doloroso, e
cada um abençoou
o que lhe aprouve
abençoar, e tornou
a maldição verdade
sobre os mesquinhos
bichos que em mim
nasciam aos dois, três
de cada vez, ou em
ninhadas de cinco.

À miséria chamo
agora tempo, e ao
suplício, oferenda
de um anjo incógnito;
e o frémito que os
animou cá dentro
não nomeio nem
desejo ouvir chamar
senão por uma boca
fechada, por detrás
de um manto de
branco tingido, no
corpo impossível
de um demónio
qualquer, ou outro
personagem deste
grau de malvadez e
sanidade espiritual.

Não me lembro da
oração que me expôs
à violência, à invasão;
lembro-me da nuvem
de tabaco num beco
desconhecido, e do
cheiro a gasóleo ou
petróleo ou apenas
óleo queimado - não
sei porque disto me
lembro, ou saberei?

Italo Calvino Posted by Hello

Crónicas de Viagem - "As Cidades Invisíveis" de Italo Calvino

Conheci-te algures, numa noite de inverno... não tenho a certeza se não te teria visto antes... já ouvira falar da tua magia ... quem não ouvira?
Percorri cada cidade-fantasma, cada cidade-alma, cada cidade-vida... com o olhar mergulhado na sensação de contactar com Deus, o Belo e não Deus, o Criador.
Cada cidade-nome-de-mulher que crias e descreves existe já no nosso imaginário do futuro, naquela zona que só homens como tu puderam vislumbrar inteiramente, como se se mirassem no nosso espelho redentor, o que os faz libertarem-se da dúvida de estar a alucinar criativamente.
Adorei o contraste da tua fantasia livre com a simetria das tuas formas... lembrei-me de mim, e dos meus medos, das minhas ousadias infantis, das inseguranças presentes... porque a música é apenas uma aproximação grosseira, mesmo que a mais adequada de todas, à zona que as tuas palavras deixam magicamente entrever.

Ler-te é confiar. Confiar em ti é sonhar que se está morto e se pode mesmo assim contemplar a beleza. Acreditar nisso é viver na esperança de te encontrar de novo, Italo, seja em cima das árvores, às cavalitas na Lua, vestido de capa negra a cobrir o lado ausente do teu corpo, em qualquer início de romance inacabado para gáudio da nossa fantasia, em armadura falante e sentimental, ou simplesmente no brilho dos olhos dos afortunados que já te viram como eu.
(2001)

Quero ler-te. de novo. em breve. recordar-me de mim, em ti, perdido...

domingo, janeiro 02, 2005

o início de mais um fim

a náusea antecipada de mais uma incompletude anunciada pelo esquecimento e pelo desvario de deus em mim, por mim, de mim...
o imenso infinito indefinível tormento da estreiteza dos horizontes que não são de ouro, de cinza quanto muito.
o primeiro relance de um olhar apagado pelo facto de a luz se consumir na extensão da madrugada não onírica, de vigília à beira de um sopro.