quinta-feira, março 31, 2005

horizonte (vil)


“sim. porque não?
uma ave, também...
sorrir, alma diagonal;
... só de longe, nascer.


20.12.03
(in horizontes de ouro, 2003-2004)

segunda-feira, março 28, 2005

aforismos

Sonho com o dia em que a visão mística do som se confunda em tal medida com a realidade do que ouço,

que a morte me soe apenas como um pizzicato de contrabaixos,

em sinfonia rarefeita quasi weberniana

sábado, março 26, 2005

(dia 31 de outubro, 2041)

I

Não fosse o barulho da cidade em movimento, neste fim de tarde, suficientemente agressivo, o silêncio dos pássaros tornar-se-ia desesperadamente ensurdecedor. Olho-os, percorro o seu trajecto agitado, e não os ouço. E eles voam em torno das árvores, tantos ... e eu não os ouço ... seria hora de acordar aflito, se ...
... mas não sonho.
Esta angústia remonta a uma antiga intuição,


... com a obra morre a ideia ... ... com a morte vê-se o silêncio ...

“... são almas que choram, ...”


As pessoas que me evitam, apressadamente, afastam-me o pensamento dos pássaros e olho em redor. Encaminho-me para aquela igreja - na falta de uma gruta, uma catedral...
À porta, cumprimento o mendigo (há sempre um mendigo à porta das igrejas). Apetece-me sentar a seu lado e pedir-lhe um pouco de pão, pretexto que a seus olhos seria válido para legitimar, pela fome do corpo, a nossa irmandade na solidão do espírito.


Sento-me e não lhe peço nada ... mas anuncio-lhe com tristeza: "os pássaros morreram".
Ele já sabia, levanta-se e afasta-se apenas para não ter de enfrentar a minha inocência.

Não entro. Deixo-me ficar sentado, indiferente ao que as pessoas vão pensando enquanto por ali passam. Os nossos olhos cruzam-se por vezes, e apesar de a minha aparência não provocar o habitual desviar do olhar e da misericórdia, o insólito da minha postura inexpressiva traz à superfície aquele tipo de sentimentos que, como a compaixão, nunca vêm sós. E é numa mistura emocional que alguns aceleram o passo, enquanto outros, por associações tão pessoais que não se enumeram, não hesitam em contornar-me e, sem deixar de com o olhar mo agradecer, entram na igreja.

terça-feira, março 22, 2005

ars nova

revérberos antecipados
, fulgor por nascer –
opõe-se à memória
o limite (não foram
escuros os dias) –
não serão – as horas
– rendilhados de
espectros (cromáticos
e
) –


Mar.21.MMV

(in livro xiii)

domingo, março 20, 2005

(dia 24 de junho, 2028)

III
Em fase de revisão? De há quanto tempo, no futuro, me observo? Que pena um personagem não poder partilhar com o seu autor um só momento de mútua existência. Sobrepor-se-iam como dois espectros coloridos? Atravessar-se-iam como fantasmas? (de quem? Mais confusão, por agora não, obrigado) ... No entanto, a perspectiva de um encontro não deixa de ser mais angustiante do que a noção da irrealidade da nossa vida. Ser em alguém (mesmo num futuro interior) não será melhor que Ser em si ?
Futuro interior ... o Tempo aqui dentro bem junto ao nariz da alma, meu caro amigo...

sábado, março 19, 2005

heresias de sal

pela tarde
ardem sem lágrimas
os olhos

deuses da minha melancolia
salgados e tristes
de te ver

mar

29.12.00

(in despojos de lume e de medo, 2000-2002)

sexta-feira, março 18, 2005

sem título



inelutabilidade indolor
o limite adivinhado
desejo desenhado na sombra
inerte vazio de futuro

quinta-feira, março 17, 2005

para o TCA


feelings, by TCA




– Uma andorinha,
tal qual a do sonho
de ontem
– diz o
infante, da verdade
seguro.

Não pressente
o odor da resina nas
crinas em atrito
lento sobre um dó
grave de violoncelo.

Fosse universitário já
e talvez evocasse
o diálogo, no tempo
moldado, entre Goethe
e o Mestre.

– Azul –
dirá a infância de novo
– será o céu da tentação
de criar, sempre –
donde
nasce a lucidez?

Na idade do Verão era
o Vermelho o condor
da Liberdade, e seria
de amor o poema de
pastel.

Mas o risco
lento e doloroso
sobre todo o grão
de cor é, para ti, só
um grito, um canto.

Não fosse o silêncio
e era tal qual, dos
sonhos, as aves todas;
das crianças, todos
os amanhãs.


___

Um Obrigado muito especial ao TCA pela oportunidade que proporcionou para este trabalho conjunto. A minha admiração pelo seu talento faz da passagem pelo Abstracto Concreto um prazer diário de contemplação.

domingo, março 13, 2005

V

Sobrevoa o mundo um
alinhamento de asas – força aérea da
Natureza em demonstração acrobática.

Primeiro pensamento: afinal nem tudo eram fábulas –
Os pássaros voam, definitivamente; migram, mesmo; têm o seu ciclo
iniciático. A magia de um bando ao longe sai da memória e
habita o céu todo – todo o céu é o céu onde se recorta a negro
a formação em V.

(segundo pensamento: em que geometria, formação, bando, desapareço? Que lugar ocupo? Vértice ou curva impossível?)

Mar.12.MMV

(in a geometria da inexistência)

sábado, março 12, 2005

Manhã Fratricida

madrugada extensa,
não infinita, inexistente -
desprende-se dela a poeira
que o esquecimento absorve.

exala o perfume do real,
que se evola, silente;
a essência nela se queda,
por toda a extensão.

a luz de uma manhã
relança o olhar do real
sobre o sonho vivo -
aniquila o tempo onírico.

sexta-feira, março 11, 2005

a luz e a lisura



uma sombra
de rugosidade –
plausível? verosímil
?


o traçado minucioso
misterioso (delicado)
de uma lisura
perdida, de um
grão, de
um atrito.

é isso.

a sombra
lembrada
do próprio atrito
é isso –
a feliz
saudade.


Mar.10.MMV

(in livro xiii)

quinta-feira, março 10, 2005

3



as serpentes e os livros

em fios
ininterruptos
de sentidos
ocultos
me oculto

e vagueio como um bailarino surdo
por entre o mundo
e nos livros encontro o traçado
da coreografia imprevista
e sobre líricas sem balanço
me deito quando de mim me canso


(donde se extrai o veneno que fica
a arder nos lábios depois de Andrade
ou Sophia?)


e adormeço sobre o linóleo
da capa ou do epílogo
e vislumbro o sonho
do silêncio que nasce depois

em fios
de sentidos
me descubro

03.02.04

(in
imanências, 2004)

domingo, março 06, 2005

Retratos - I


Entrevista com
António Sereno Rodrigues


Conheci-o como António, o Milas. Num café em Lisboa. Há alguns anos já. No início, das primeiras vezes em que lá entrei, sem a cumplicidade que hoje me permite tratá-lo pelo epíteto anedótico, antipatizava com o seu ar, com os seus modos indiferentes. Não me tratava de forma distinta da que usava ao servir outros clientes, que eu deduzia serem já de longa data, dada a familiaridade do Milas com que o chamavam à mesa para um pedido ou dois dedos de conversa. Mas mesmo não me tratando com tal má cara que me tivesse feito deixar de frequentar o local, foi lenta a tomada de confiança mútua, ao longo de pequenas trocas de comentários banais e de repetidas situações que os meses foram somando, dando lugar a um sorriso sincero de cada vez que me trazia um café ou vinha, com cumplicidade, partilhar algum pormenor que imaginava ser do meu interesse sobre alguma cliente que se lhe afigurava “interessante”, ou sobre si mesmo. A partir de certa altura soube que teria de o incluir neste conjunto de entrevistas. Conhecer o Milas, conhecer o António.


ASR – Vamos lá ver o que sai daí... ainda não percebi muito bem o que queres que te diga. Já me conheces. Que mais posso dizer que te interesse?

RE – Calma, Milas. O que te disse é que gostava de te ouvir. Não quero saber nada especialmente. Quero que participes neste ciclo de entrevistas porque tens uma vida dentro de ti que não é menos vida que a de mais ninguém. Se quiseres, podes começar por dizer, a quem nos lê que não te conhece, quem és, o que dizes para te apresentar quando vais, sei lá... à repartição de finanças ou ao banco...

ASR – Vão todos chular para a estrada ou levar no cu à borla, que aqui pelo Milas é igual ao litro. (ri, com gosto, e alguma timidez à mistura, que poucos detectariam no quotidiano; acende um cigarro).

RE – Sim, senhor, estás apresentado! Quer dizer que a ti não enganam eles. Roubam, mas não saem em ombros.

ASR – Foda-se, era o que mais faltava era um gajo ser comido e calar. Da maneira que um tipo já anda feliz todo o dia, só estes caramelos às vezes para nos foderem os cornos com papelinhos e papeletas do arco da velha para no fim dizerem que estamos fodidos na mesma.

“Já pediram? Ainda não. Então o que vai ser? Para mim é uma água castelo com gelo e limão, e tu Milas, o que é que queres? Pode trazer-me, por favor, uma imperial. Muito bem. É pá, faz-me sempre uma confusão do caralho quando estou num café mas deste lado. Quando disseste que querias a água castelo, quase que gritei p’ó gajo do balcão “sai uma castelo”.(ri)


RE – Mas quem te vê muito calado e senhor de si, de mesa em mesa, “mais dois cafés, Rute”, “passa a quatro”, sem uma exaltação, sem um repente – pronto, confesso que às vezes és mesmo um bocado sisudo demais, mas isso não mata ninguém – quem te vê só ali toma-te um bocado por de-relações-cortadas-com-a-vida, se é que me entendes. Sentes isso na maneira como te falam?

ASR – Ó pá, quer dizer, sinto e não sinto. (coça a orelha, e evita o olhar). Às vezes é fodido não saber o que vai na cabeça de certas pessoas. Um tipo às vezes já vem virado do avesso de casa, quando chega ali e encontra a pasmaceira de todos os dias, e aparece algum marmelo que fala como se eu lhe tivesse cuspido ou mandado à merda, só me apetece mesmo mandar. Estou a fazer meu trabalho. O patrão não me pede que entretenha os clientes com palhaçadas, para que é que me hei-de andar a rir, né?


Ora aqui está a sua água. E a imperial fresquinha. Muito obrigado. Desejam mais alguma coisa? Por agora não, obrigado. (Só se fosse a ti, ‘mor.[murmura entredentes, e de olhar pegado ao rabo que se afasta]. Então, pá? Deixa lá a colega agora, e continua. É pá, é que aquele par...bom, adiante)


Estava eu a dizer que apesar de tudo também sei ser amigo do meu amigo quando as pessoas começam a ser mais porreiras ou quando passam a ser quase da casa, como é o teu caso. Ao princípio também não te topava muito bem, com a mania de ficar ali de livros na mesa uma hora ou duas, e a chamar ora para um café, ora para outro, e agora um copo de água, se faz favor, e podia trazer-me um cinzeiro, e mais um café... Mas é o ofício. Depois vi que não eras daqueles doutores de merda com o rei na barriga a puxar galões de inteligentes, como se toda a gente que não foi colega ou aluno deles fosse uma cambada de analfabetos. Esses a mim não me vêem os dentes.

RE – Que idade tens, Milas?

ASR – Vou fazer 47 agora em Março. Ainda falta tanto e já estou tão farto.

RE – Não percebi.

ASR – Se não me atropelarem para aí, ou isso, ainda sou novo, na volta morro quando já estiver p’ra aí para um lado qualquer a borrar-me todo e a chamar nomes à desgraçada da mulher, e por mim às vezes sinto que se morresse hoje já era tarde. Isto há dias em que um gajo pensa em tudo, né? Há alguns anos era pior. Foi uma altura complicada. Ainda não me conhecias. A miúda, a mais velha, começou a andar com um tipo... É pá, não me venham com merdas, há gajos que se vê à primeira que não valem nada. A malta fala fala mas quando é a nossa filha a coisa muda de figura. Às vezes lá no café bem topo os casalinhos, e vê-se logo quando é o tipo que vai aproveitando agora a sacudir umas migalhinhas da camisola na gaja, agora a pôr-lhe a mãozinha na perna, e elas a fazer que é tudo muito normal, mas a rir sem à-vontade nenhum.

RE – Mas estavas a falar da tua filha...

ASR – Quando ela conheceu o pai da Raquel, a minha neta, eu vi logo que aquilo ia dar molho. O gajo era do tipo arruaceiro, de botinhas para assustar palermas, de óculos apaneleirados, que a Sara achava que tinham estilo, de modos parvos e, pelo que eu via, era burro como as portas. Não tenho cursos mas sei distinguir um idiota de um paz de alma. O Paulo era um idiota. Ainda por cima, andava na altura com um grupinho que, meu deus, era bem de ver que boa coisa não faziam. Isto para dizer que o raio da miúda lá viu ali alguma coisa que a encantou, aquela liberdade toda, não sei – não é que lá em casa andassem como num quartel, que eu nunca me armei em general, nem para ela nem para o Renato, mas é sempre diferente, né? – sei que começaram as noites em casa dele, começou a ficar para os fins de semana, e ao fim de dois meses estava a viver lá, num trapel desgraçado, ela sem trabalho ainda e ele, sei eu lá bem o que ele fazia? A minha mulher a chatear-me os cornos que eu é que tinha sido sempre um bruto, e que agora é que se via o resultado, que se eu não fosse tão casmurro às vezes, a cachopa não se sentia tão deserta de sair dali pra fora. O puto a foder-me também a cabeça que a mana é que estava certa, que viver ali parecia que estavam todos os dias num velório sem morto. Um fedelho daqueles que tinha 15 anos na altura, já lá vão quase sete. Foram dos piores anos da minha vida. Nessa altura, com tudo a desandar dos carris, pensei muitas vezes a sério em estourar os miolos ou amandar-me lá do 5º andar abaixo. (acende outro cigarro, e bebe mais um golo)

RE – E no entanto a vida foi encarrilhando de novo, e aqui estás tu ainda a poder contar a história. Como é que as coisas estão agora com a Sara?

ASR – Como é que haviam de estar? Estão uma merda. Claro que podia ser pior. Ela abriu os olhos à custa dela. E da pequena, que não tem culpa nenhuma. O filho da puta pôs-se na alheta assim que viu que ter meninos não era tão económico como fazê-los. Ela voltou para casa. Entretanto o Renato também casou, mas esse tem tido mais tino e sorte. Sim, porque também é realmente preciso sorte com quem nos aparece à frente na vida. Hoje faz-me bem ter lá a pequenita em casa, a gatinhar por mim acima. Mas quando olho para trás e tento perceber o que podia ter feito de maneira diferente, é fodido, mas não consigo imaginar o que poderia ser. Se recuo muito vou sempre bater ao mesmo lado, só se não tivesse nascido é que alguma coisa teria sido diferente. Será assim com toda a gente?

RE – Não sei, Milas. Nunca dá para comparar. Mas tu e a morte nunca se deram nem muito bem nem muito mal. Ora ela parece chamar-te com ar de sonsa, ou tu a tratas como a uma puta. Já uma vez me chegou lá no café aos ouvidos que tu mesmo tinhas andado uma vez com um tipo debaixo de olho para o mandares fazer tijolo. Como é que essa cena aconteceu?

ASR – Foda-se, quem é que te foi contar essa merda?

RE – Calma, já sabes como é que estas coisas são, um dia uma boca, outro dia uma brincadeira, e mais dia menos dia de tudo se fala. Um não estavas lá, e a Rute e o Sérgio lembraram-se a propósito já nem sei de quê, do tipo que viu a vida mal parada. Quem era o gajo?

ASR – Sei lá eu quem era o gajo! Ele tinha-se mudado ali para o bairro à pouco tempo... Bem, aos anos que isso foi já! Deixa ver, é só fazer as contas... vai para 10 anos, mais coisa menos coisa. Eu nessa altura morava perto do café. Era melhor para mim à noite que não tinha de apanhar transportes à noite, e para a mulher era mais perto também da loja que ela limpava às manhãs. A Sara andava no 11º ano, já estás a ver ao tempo que isto foi. Bom, o tipo começou a aparecer por lá pelo café. Ao princípio era cara nova, a malta está sempre mais observadora. Comentámos que o tipo devia ser solteiro. Às vezes vinha assim para o desalinhado, não foi uma nem duas as vezes que vinha com peúgas desirmanadas, enfim, aquelas coisas que quem vive sozinho acaba por se desleixar. Ou na prisão, ou na tropa. Tu sabes. Quem seria, o que fazia na vida, nunca soube. E não se teria passado nada se ele um dia, já depois de umas semanas de lá ir beber o café depois de almoço, não tivesse dito à Guida, que já tu não conheceste lá, “ó menina, pode vir aqui fazer companhia um bocadinho?”. E isto vinha de onde? Ele tinha-me visto a trocar umas palavras noutra mesa (olha, com o Sr. Leonel que morreu o ano passado, esse tu lembras-te, coitado. Já lá está). Devia vir com o miolos queimados, queria que ali estivesse se calhar especado a olhar para ele à espera que sua excelência tivesse algum desejo. Conclusão, o cabrão estava a meter-se com a Guida (na altura um gaja espigada, e toda penteadinha, como na época não se via muitas, na idade dela), como se fosse serviço do café fazer companhia aos clientes. Eu topei o gajo, e vim perguntar-lhe se desejava alguma coisa. Ela ainda disse “deixa lá, Milas, que eu atendo o cavalheiro”. E logo ele “Milas ou Pilas? Não percebi”. Eu perguntei-lhe o que é que ele queria dizer com aquilo. Vá-se lá saber o que passa pela cabeça das pessoas, é o que eu digo. Sei que ele insistiu “Sei lá, pelo jeitinho até podia ser o Pilas. E pelos vistos é esquisito. Deve haver noutras mesas algo que satisfaça mais”. Diz-me lá se não estava a pedi-las. Até podia ter bebido. Ou era simplesmente anormal. Não me interessa. Perguntei-lhe se ele queria ajudar a mudar o nome de Milas para Pilas pela fama de lhe rebentar com o cu. Eu sei que isto não se faz, eu estava a trabalhar e tudo, arrisquei-me a ser corrido. Mas o Velho Antunes sabia mais da vida que nós todos. Ele mandou-me lá para dentro, que ele acabava de atender o tipo. Depois dessa vez, começou a deixar cartas debaixo da porta do café com ameaças. Ora a mim, ora indirectas com insinuações sobre a Guida. A gente acabou por se acostumar àquilo. Ele nunca mais entrou no café. As cartas deviam ser deixadas durante a madrugada. Um marado dos cornos qualquer que ali tinha vindo calhar, era o que era. Até que uma das cartas começava por perguntar-me se eu gostava de passar o testemunho da alcunha do Pilas para o Renato.

RE – Foda-se, a sério?

ASR – Podes crer. Até me caíram os tomates ao chão. O gajo devia seguir-me. A mim e aos miúdos, para lhe saber o nome, e assustei-me pela primeira vez na vida com uma merda assim. Estás a imaginar o que a cabeça começa a construir. É fodido, mas quanto mais tentava pensar que ele era só um maluquinho, mas medo tinha que ele fizesse alguma merda ao puto. Nessa altura comprei uma arma. Nunca tinha pensado até aí que pudesse ver-me metido numa destas. Corri a cidade. Durante a noite, fazia directas, de beco em beco, de bar em bar. Fui a bairros famosos pelas merdas mais fodidas. Tentei lembrar-me de merdas que ele tivesse dito que me dessem alguma pista. Mas nada. Nunca mais o vi. Mas foi melhor assim. Ele não se tinha safado, e agora não estava aqui a contar esta porcaria passados estes anos.

RE – Eu farejava uma boa história e ia entrevistar-te à prisão.

ASR – Não me terias chegado a conhecer (ri, satisfeito provavelmente por essa possibilidade mesmo, de poder estar a rir daquilo).

RE – Então, mas agora confundiste-me. É Milas ou Pilas, afinal?

ASR – Olha lá... Olha que eu desfiz-me da canhota, mas ainda te assentava um bom murro se não soubesse que estás a brincar.

RE – Mas já agora, e fora de brincadeiras, donde é que vem essa de te chamarem Milas?
(ri-se de repente, como se a própria pergunta já contivesse a piada que originara o nome)

Olhe, faz favor, podia trazer mais uma imperial? É só? O senhor não quer beber mais nada? Nem comer? Não, obrigado. Olhe, espere. Afinal, pode trazer-me um café, por favor. (Tens razão, foda-se, que belo par de mamas... bolas, tenho que te reconhecer o olho. Ó pá, passa lá p’lo café tanta coisa que um tipo acaba por apurar o gosto) [rimo-nos]


RE – Mas ias a dizer...

ASR – O Milas já vem do tempo da tropa. Fiz a recruta nas Caldas, e vinha aos fins de semana a casa... Alguns, que a maior parte das vezes acabava por ficar lá com eles, ora na jogatana ora a roçar o cu p’las paredes. Na altura.... Foda-se, é engraçado teres perguntado isso, porque ainda anteontem me lembrei do Valinhos, um gajo de Barcelos, que na altura era mais que meu irmão. Caramba, ao tempo que estas merdas foram, e como há caras que parece que estou a ver ainda... (acende um cigarro, e pisca-me o olho, imperceptivelmente)

O café e a imperial... Posso levar esta? Obrigado. [sorrimos, sem mais]


Bom, mas das vezes que íamos a casa, toda a malta tinha de trazer grandes histórias para contar. E, ou eram grandes misérias ou grandes tangas. Naquela época era difícil ir à terra, no cu de judas, e trazer na sacola uma história de encantar. Como eu nunca quis fazer da minha família motivo de conversas, inventava outras aventuras. E, naquela idade, quem passasse por mais “homem”, dominava a cena, tás a ver? Ainda deve ser um bocado assim hoje em dia, não é? A maior parte tinha sempre algo para alardear – e eram sempre mulheres o troféu a gabar. Ora era uma tia mais velha e toda p’as curvas, que os tinha apanhado a jeito e os tinha ensinado sobre o que é uma mulher; ou era a filha de um vizinho que tomava banho nalgum regato, e que eles miravam deliciados e de pau feito; ou para quem não tinha força de imaginação, como eu, eram putas. Porque essas, nas histórias faziam tudo o que nas fantasias sonhávamos. Comecei uma vez a falar de uma puta, que disse que era de lá da aldeia, e que se teria apaixonado por mim – chamei-lhe Mila. E do que contei, acho que ainda consegui que alguns mais ingénuos se tivessem apaixonado por ela. As semanas passavam, e os nomes iam rodando. Mas o nome Mila voltava sem que eu me apercebesse já. Os tipos um dia começaram em brincadeira a dizer que eu tinha ficado tão apanhadinho pela primeira puta, que agora só me vinha com gajas chamadas Camila, ou Ludomila ou outras Milas. E fiquei o Milas. É fodido como uma coisinha de nada, uma história de rapazolas, acompanha a vida toda de um gajo.

RE – E sempre é verdade?

ASR – Hã?

RE – Só com Milas? (ri-me)

ASR – Engraçadinho. (sorri)

RE – Sabes, António, agora sem nomes de putas aqui à mistura, por vezes quando te escuto, como hoje, não reconheço o empregado de mesa que convidei para esta entrevista. Há bocado, estava a pensar uma coisa absurda – que tu é que me tinhas enganado, e bem, fingindo ser empregado de mesa nos dias em que lá ia ao café, para me fazer vir até esta conversa. Mas então, teria de te imaginar com outra profissão. E não consigo.

ASR – Queres uma dica? Imagina-me polícia à paisana. Acho que foi das primeiras coisas que me lembro de em puto querer ser quando fosse grande, como se costuma dizer. Lembro-me do meu pai me apontar algumas vezes uns tipos, de ar discreto, de poucas falas, que apareciam lá na terra. “Olha, lá andam estes à caça do contrabando. Fixa-lhes as caras, porque nunca se sabe o dia de amanhã.”, dizia-me ele, ainda a resmungar algumas coisas lá para os seus botões, que eu não chegava já a entender. Só depois, se o ouvisse a falar com o meu tio, ou com algum vizinho – “a guarda anda por aí a meter o nariz”, “vasculhem aí, seus filhos da puta, o que vocês querem não hão-de encontrar nem que tivessem focinho de cão”. E eu ficava com a ideia que aquilo era assunto sério. Imaginei-me depois muitas vezes, já maiorzinho, a entrar numa aldeia, e a ser o alvo de comentários assim, de quem caga doutorices mas que o tem mais pequeno que o buraco de uma agulha. E vê tu onde cheguei! Às mesas, de saca-rolhas e caneta no bolso. Bem, é capaz de ter sido melhor assim.

RE – Foi com toda a certeza, senão em vez de te ir eu ver à prisão, se tivesses encontrado o outro filho da mãe, eras tu que me ias de vez em quando interrogar espremer para me sacar algum nome ou alguma informação que metesses na ideia que eu tivesse.

ASR – E toda esta conversa teria sido ao contrário.

RE – Com a diferença de que tu não sais todo negro daqui.

ASR – Por falar em sair... Já escureceu, já viste? Tenho de ir andando, se por ti não quiseres perguntar mais nada. Disse em casa que durante esta folga ia a uma entrevista, e ficaram a pensar que era para tentar mudar de emprego (ri-se). De polícia à paisana para empregado de mesa... se continuasse à procura ainda acabava a fazer entrevistas como tu a gajos como eu! (rimo-nos muito, enquanto nos levantamos para pagar)

RE – Obrigado pela tarde de folga que te fiz desperdiçar.

ASR – Deixa lá, não é todos os dias que alguém está sentado à mesa de um café este tempo todo só para me ouvir falar. Obrigado.

sábado, março 05, 2005

2



era uma vez no infinito


o requinte de deus consiste na distância

palavras onde nem uma gota de sangue
cabe sem que o sentido se dissolva
em
heresia capital


“há uma lúcida entrega
onde deixou de haver fé”

no infinito, não há palavras esquecidas


sempre que vier o demiurgo
ao mundo incriado
será estrangeiro


“pela mesma lógica
que fez nascer fé”

e deus será filho ilegítimo
de um pai onírico e sem memória


“no lugar da oferenda cega”



morre-se em silêncio, lá.


02.02.04
(in imanências, 2004)

quinta-feira, março 03, 2005

3. imponderável charme de morte

(deste lado)

I


Ao fundo, o negro das roupas que vestem o silêncio confunde-se com as paredes nuas e sujas. Mesmo a luz que consegue tenebrosamente entrar, apenas contribui para o contraste dos cinzentos (quase amarelecidos, é certo, em algumas horas do dia).
A regularidade a que os bancos corridos se distanciam faz-nos recordar as ondas, as nuvens, os socalcos ou os telhados dessa cidade que já não há – cidade invisível, dos nossos sonhos de ontem...
De cada lado, as figuras perguntam-nos silenciosamente as horas, ou melhor, questionam-nos sobre o tempo (pois para a eternidade da pedra ou da madeira o tempo é o único assunto que realmente lhes importa). Os seus olhos levam-nos sempre a tentar localizar historicamente a sua origem, como se o sofrimento que lhes deu “vida” pudesse ter outra explicação que não os vícios da nossa própria falta de fé, a maldade sobre-humana de alguns de nós ou a miséria escondida nos intestinos da alma de todos. Mas quando paramos muito tempo diante de cada uma destas santas representações, a infantilidade do espírito ultrapassa a mera contemplação e quase nos deixa voar pelo imaginário, que está sempre iluminado pela presença ingénua da esperança.
Sob os nossos pés, aqui e acolá, emerge um grito abafado até então pelo pó da história. Nessa altura escutamo-lo encantados, como se sempre tivéssemos sabido que da morte se levantam hinos surdos, à nossa procura, e que nem a pedra que se lhes assenta em cima os faz cair na luz do silêncio.
Em cima, o céu deixou-se esculpir na pedra em formas severas – como se Deus se estivesse sempre a espreguiçar, para com os braços eternamente abertos melhor nos guardar e proteger; ou ainda, para de forma piedosamente infeliz nos tocar a todos com carinho e nos fazer acordar do sonho de existir sem Ele.

As roupas que vestem de negro o silêncio movem-se imperceptivelmente para junto do leito macabro, almofadado para conforto dos vivos na assunção de cumprido o atemorizador dever para com os mortos. O jardim que em redor se desenvolve, em formas curiosamente circulares, quase faz esquecer o significado da cor das faixas de seda que o ornamentam.

O morto, como cidade invisível também, repousa de olhos por outrém fechados, e espera...

__________

nota do editor do blog:
este texto foi escrito no dia 6 de março de 2062, data que já foi aludida antes: o Professor morreu na véspera, dia 5. ainda não é possível determinar com rigor a relação entre este texto e o escrito em 2028. não foi possível determinar também, com certeza, se este texto se refere ao facto do dia anterior, ou se teve um carácter completamente ficcional, que apenas por coincidência macabra se inscreve nessa sequência cronológica. Talvez apenas quando se nos tornar clara a relação real ou possível entre o Professor e o narrador deste texto esta questão seja ultrapassada. Temos em mãos o estudo de algumas cartas que esperamos venham a trazer alguma luz sobre a origem destes textos. Também ainda não foi possível escutar o quarteto de cordas de cujas notas de programa é citada a frase com a obra morre a ideia. Esperamos que o interesse de cada um dos fragmentos que vamos partilhando não diminua pela falta de dados biográficos. Os leitores serão elucidados sempre que alguma informação relevante seja revelada.

terça-feira, março 01, 2005

(24 de junho, 2028)

II
Ainda bem que nenhum vértice representa o fim, mas apenas uma mudança de direcção. Quando nos sentimos próximos do fim, não temos sequer a ilusão de caminhar para lá de vértice algum; ou seja, o horizonte plano e tranquilo da visão do fim acaba por ser mais perturbador que a sensação de viragem de rumo, mesmo para o desconhecido. Quantos ângulos tem a vida? Provavelmente não será a circunferência a forma mais perfeita, mas sim o triângulo (sem quaisquer conotações teológicas, por enquanto – estou só a tentar compreender as vantagens metafísicas de três vértices ...).
Enquanto penso nesta idiota construção geométrica da existência, medida em vértices de esperança assustadora, a escuridão que me envolve murmura ruídos de lado nenhum, barulhos ínfimos que só se ouviriam por um louco ou por mim, tal a minha concentrada imaginação. Cerca-me o vazio, eu sei, mas o vazio não é só silêncio.


(“As cousas que me cercam, silenciosas,
São almas, a chorar, que me procuram”
Teixeira de Pascoaes )