sábado, setembro 23, 2006

#7

por exemplo, o vitral a preto e branco desenhado com a ponta dos dedos no ar, imitando os contornos dos lábios um segundo antes do beijo, o vitral a preto e branco porque só o aro do risco à volta do vidro que não há pode reproduzir o desejo mais do que a realização.
por exemplo, uma flor em negativo, pétalas negras de veludo, assustadoras e graciosas como a beleza exponenciada sob o efeito da diferença, assustadoras e graciosas como uma memória mais nossa do que desejaríamos e ao mesmo tempo tão nossa como nós.
por exemplo, o negativo de um afecto, a indiferença que é já outra coisa no outro lado da indiferença, ou melhor, que é o amor num outro lugar, irreconhecível e familiar como um fantasma há muito não vislumbrado por ninguém ou confundido com uma sombra ou um reflexo.

viii.05.MMVI

domingo, setembro 17, 2006

1º andamento

II

Na fímbria de veludo do teu passado tens a
cor estampada da melancolia, nobreza que te
afasta do chão em que estou mergulhado há
duas eternidades e meia, sentimento nobre o
que serve de pretexto ao amor pelo eterno
sofrer em vão.

Amar a vacuidade do sentido desdobra em nós,
ontem, para sempre e agora, o véu multicolor
da dúvida e da ira, tanto para fora do limite
da língua que o expressa, o óculo mágico
da metamorfose, como para a profundeza da
angústia que o consome em golfadas de lucidez.

No caleidoscópio da incerteza vemos o que
não foi desenhado por deuses mas por espectros,
fantasmas de sangue mais negro que a noite
de sonho, mais quente que o sol apagado
num espectáculo silente e insano.

E regresso sempre ao veludo ancestral
desbotado numas cores e adulterado nos
tons da memória caprichosa, e brilham
os dias sombrios imaculados pela tristeza
e esfumam-se em tons cinza os beijos
redondos e os farrapos de êxtases
que guardavas em molduras de tempo
num museu que não chegou a abrir.

terça-feira, setembro 12, 2006

9. viagem ao antípoda do sentido

Num lado do cone, o vértice sem cor nem forma. Sem forma, apesar
de se confundir com um círculo imperfeito invisível. Mal desenhado como os dias e
as paredes dos cemitérios. Do outro, a base inútil.
Um cone feito de infinitos é como uma recta, mas as rectas têm cor.
Nos subúrbios da nossa capacidade de pensar, existe um tempo que não
se deixa manipular sem preço. Uma base inútil, porque não há cones que precisem
de tempo para se deixarem nele repousar. Um vértice é suficiente. Nem de cor
precisa.
Um cone tem um preço para se materializar em espaço. Numa dessas
esquinas sem rosto, percorre-se um labirinto infantil para chegar à condição
óbvia da nossa impotência estrutural.
Apesar de se confundir com um círculo imperfeito, o vértice não é inútil.

13.03.03
(in a densidade das almas, 2003)

sem título

refuto a letras lilases a condenação à plenitude
intuída em cada vereda íngreme
do pensamento maduro

27.04.03
(in a incerta permanência da dúvida, 2003)

sexta-feira, setembro 08, 2006

13


minha boca
perdida num
vale de joelhos
escarpados
naufrágio na
tentação

para lá do deserto
ventre duna
um oásis salgado
quente ilusão
húmida

25.05.03

(in um barco de papel para Afrodite, 2003)