domingo, fevereiro 27, 2005

meticulosidade abstracta

A linha mantém-se paralela
à curvatura do joelho – uma película
de luz (insondável, hesitante, não fosse apenas luminosidade, não
seda, desejo). Roça a pele a milímetros de roçar, sustém
o ar e a sombra – até uma borboleta seria
remetida para o mundo etéreo, profano. A perfeição é a distância (
ilusória?) entre o calor do sangue e a estaticidade
luminosa – uma osmose abstracta. Perpendicular é o olhar cartesiano
que devolve o mundo ao número imaginado.


Fev.26.MMV

(in a geometria da inexistência)

sábado, fevereiro 26, 2005

pequena elegia



inspirada p’la tragédia
caminhas segura

uma vela ao fundo
incendeia de amarelo o túmulo
o labirinto

vagueias sem medo
infantil o olhar
pés de neblina

repousas
mistério de quem te lembra
hoje


in memoriam Magda Patita
27.02.01
(nota: a Magda Patita era minha aluna quando faleceu,
num acidente de viação,
com apenas 20 anos.
Ontem falei com um rapaz, seu colega de faculdade na altura, que a tinha convidado finalmente para sair, precisamente na semana anterior - jantar que ela aceitou, não se tendo nunca realizado)

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

memória

passou
os dedos por


uma vez
(outra)

sem dor
afinal.

Fev.17.MMV

(in livro xiii)

sem título

o tempo
impuro ( -vil?
- talvez no
intento de
sentido se
escureça)
líquido –
esgoto sem
escoadouro (
horizonte flácido
nos olhos do desespero
) da existência,
esboroamento
burilar vão, pensar
o tempo.

Fev.12.MMV

(in livro xiii)

impenetrável subúrbio



depois dessa esquina mora um vagabundo
atrás daqueles caixotes, uma velha que talvez já tenha morrido
mesmo aqui ao lado, no vão da escada, uma bebedeira acorda, ensurdecedora
e ali ao fundo, iluminado intermitentemente por uma lâmpada mal enroscada, moro eu

não é um excerto do tratado de filosofia do fracasso, ou a memória moribunda do último homem
é a microgeografia do mundo, de um qualquer mundo em que consigas acreditar

depois dessa esquina mora um vagabundo...
...
etc.


31.08.02
(in despojos de lume e de medo, 2000-2002)

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

sem título

nunca ansiei pela resposta ao que
não sabia porque não sei o que
ficaria colorido ou a preto
ou a branco depois

a lua passaria a vestir mais
cetim vermelho?

perguntar é respirar o sal
e o lume pelos poros que
a juventude abre e limpa

the answered question deixaria
de ter quatro flautas, soaria
somente o clarim da morte

08.05.03
(in a incerta permanência da dúvida, 2003)



[nota: "the unanswered question" é uma obra de Charles Ives para trompete (fora de palco), quatro flautas, e orquestra de cordas]

terça-feira, fevereiro 22, 2005

canção de morte e de vento

Vem...
Abraça-me em ternas ilusões, negra madrugada
Sei que não serás menos minha que de Deus
já que também Deus morreu a teus pés, noite

Sopra-me de angústia
Faz-me tremer a vida em que navego confiante
pois no medo e no lume se encontra a verdade
de nos sabermos sozinhos e por ti amados, escuridão

Arrefece-me ...
deixa-me sucumbir no gelo dos teus beijos
morro por de vento frio me penetrares em hora certa
esperarei por ti em cada verão tranquilo
para te amar em inverno desejado

18.07.01

(in despojos de lume e de medo, 2000-2002)

domingo, fevereiro 20, 2005

sem título



infantil a crença crónica
impúdica no arrebatamento
não cegueira maldição
outra forma de inquietude


Fev.18.MMV

sábado, fevereiro 19, 2005

dança

Não se ouvem os passos, só
os vultos parecem cortar o ar em zumbidos
adivinhados. Se de um filme se tratasse
talvez os pudesse fazer voar. Não se lhes sente
o peso sobre as folhas secas. Ouvem-se as folhas
secas. Umas a dançar com as outras. Não se ouvem
morrer as folhas quebradas pelo
peso silente dos vultos. Apenas ciciam
as folhas que dançam.

Fev.18.MMV

(in a geometria da inexistência)

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

(24 de junho, 2028)


I

Por vezes sinto-me a pensar em mim no passado. Não a pensar em como fui em criança, ou apenas ontem, mas a pensar no meu presente como se ele fosse já um determinado passado. Talvez se possa ilustrar esta visão bizarra com a imagem da relação temporal entre as personagens e o seu autor. De facto, aí encontram-se as três faces do tempo. O presente a que as personagens chamam “hoje” já representa um estado passado para o autor (que primeiro as formulou no seu presente – quando ainda as personagens não existiam sequer). No seu presente, as personagens actuam na memória do seu autor. No entanto, para o leitor, todo esse presente das personagens constitui ainda o seu futuro, já que se considera o acto da leitura posterior ao da composição e este posterior ao da concepção. Nas personagens reúnem-se pois todos os caminhos temporais convergentes. Como dizia há pouco, por vezes penso-me como passado, ou melhor, penso-me como personagem cujo autor sou eu mesmo, obviamente noutro momento temporal. Ser personagem de mim próprio nem é tão angustiante assim, pois faz-me crescer a esperança de vir a ser o meu próprio leitor ...


... com a obra morre a ideia ...


Pois hoje é um desses dias. Sinto-me completamente como personagem observada em fase de revisão pelo seu autor (eu mesmo, algures noutro instante). Mas o hoje em que penso não é o hoje em que escrevo estas linhas. Nesse presente, estou deitado, numa cama desconfortável, a olhar o vazio no escuro, em noite de ar sufocante, à espera que amanheça. O hoje em que escrevo estas linhas é outro, e se queres que partilhe um segredo, nem sempre tenho a certeza se escrevo antes ou depois. E que importa?

(dia 24 de junho)

I



Por vezes sinto-me a pensar em mim no passado. Não a pensar em como fui em criança, ou apenas ontem, mas a pensar no meu presente como se ele fosse já um determinado passado. Talvez se possa ilustrar esta visão bizarra com a imagem da relação temporal entre as personagens e o seu autor. De facto, aí encontram-se as três faces do tempo. O presente a que as personagens chamam “hoje” já representa um estado passado para o autor (que primeiro as formulou no seu presente – quando ainda as personagens não existiam sequer). No seu presente, as personagens actuam na memória do seu autor. No entanto, para o leitor, todo esse presente das personagens constitui ainda o seu futuro, já que se considera o acto da leitura posterior ao da composição e este posterior ao da concepção. Nas personagens reúnem-se pois todos os caminhos temporais convergentes. Como dizia há pouco, por vezes penso-me como passado, ou melhor, penso-me como personagem cujo autor sou eu mesmo, obviamente noutro momento temporal. Ser personagem de mim próprio nem é tão angustiante assim, pois faz-me crescer a esperança de vir a ser o meu próprio leitor ...

... com a obra morre a ideia ...

Pois hoje é um desses dias. Sinto-me completamente como personagem observada em fase de revisão pelo seu autor (eu mesmo, algures noutro instante). Mas o hoje em que penso não é o hoje em que escrevo estas linhas. Nesse presente, estou deitado, numa cama desconfortável, a olhar o vazio no escuro, em noite de ar sufocante, à espera que amanheça.
O hoje em que escrevo estas linhas é outro, e se queres que partilhe um segredo, nem sempre tenho a certeza se escrevo antes ou depois. E que importa?

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

para o mundo, talvez apenas mais uma história...

era uma vez um puto
_______________________________

...

...
_______________________________
...
tocava desde os 9 anos na banda...
os seus amigos eram os da banda e os do prédio...

...
...achava que era feliz, o puto...
_______________________________
aos 12 anos apaixonou-se por uma prima, o pequeno atrevido.
e ela por ele, a malandra, tanta sabedoria em 10 infantis anos

depois dessas férias na praia em que experimentaram os segredos
que segredam as bocas quando estão próximas e mesmo unidas,
nunca mais se viram.

só anos mais tarde, adultos já, de sorriso cúmplice nos olhos
se voltaram a ver e a falar. num casamento de família.
ele, outro; ela, outra também; duvidando da própria memória.
_________________________________
...
...
o rapaz era aplicado no clarinete, e a banda o seu mundo

a família ... uma massa informe de afectos.
uma avó ambígua
(um dia saberei o que isto quer dizer)
...
_________________________________
...
o miúdo até pensava que era feliz, mas duvidava do que sentia
e no seu íntimo sabia que não era.
...
culpas? por aí. umas num homem, algumas numa mulher, ambos
inconscientes da inquietação interior do petiz.
...
_________________________________
aos 15 anos, subitamente, renasce.
vai a uma pequena terriola, de que nunca tinha ouvido falar
vai como "músico de fora", dos "bons", ajudar a banda local
procissões, peditórios, concerto...
e vê-A!

_________________________________
ela tocava clarinete, tinha um olhar maduro
um sorriso escondido, uma forma rebelde de vestir
e de falar, altiva ou algo distante, observando
da colina dos 18 anos, a puberdade do moço da cidade.
...
estiveram perto um do outro, nesse dia. sempre longe
sempre inquietos, cada um envolto no seu próprio manto
um dia... somente um dia, e a viagem de regresso a casa
com um beicinho mental, uma tristeza indefinível

nem três palavras trocadas, entre músicas e barulho,
ele fora do seu meio, ela demasiado no seu meio
ele querendo entrar ali, ela a desejar dali fugir.
um dia, contudo...
até ao mesmo dia do ano seguinte.
____________________________
um ano de silêncio e de esquecimento.
esquecimento?
...
desta vez, reconheceram-se à distância
ou não tivesse ele perguntado logo pela moça.
deu logo de caras com o pai dela
e por ela perguntou, ao que o pai (desconfiado)
respondeu, com ares de importante: ela está em Lisboa
a trabalhar. só vem ao concerto.
!!!
um dia, um ano depois, e só a veria à noite.
a memória fez o trabalho de reconstruir, tentou, o rosto
a forma do corpo, a roupa vestida, o cabelo...
quase em vão
nenhuma imagem, quase não tinha existido aquele dia
quase...
_____________________________
o concerto estava iluminado...
ela estava lá, e ele também.
adivinhe-se em casa de que família os músicos de fora dormiriam...

depois do concerto, foram todos (o rapaz, dois colegas da banda
e ela) para casa. ficaram a jogar às cartas todos, na varanda.
era tarde, e os amigos foram saindo para ir dormir.
a noite acolheu a conversa dos seres que ali se encontravam pela segunda vez
ele a falar de si
ela a falar dela
ele, sobre adorar música e imaginar-se compositor
ela, sobre adorar pessoas e desejar ser psicóloga
ele, sobre o desejo de morrer
ela, sobre a fúria de viver
ele de coração louco de nervos
ela de alma perplexa pelo destino
ainda não tinha amanhecido quando decidiram trocar de moradas
para poderem escrever
ele sentia que algo dependia dele, para desenhar o seu futuro
no papel da morada, escreveu ainda, trémulo, algo mais ...
ela sorriu mais do que naquela noite toda, e apenas respondeu com
a curiosidade sobre o que o tempo poderia estar a reservar

estava a amanhecer quando deram o primeiro beijo
...
__________________________

ela está a dormir agora
e eu estou feliz por ter esta história para recordar e viver

domingo, fevereiro 13, 2005

sem título



um tumulto silente
opostos pilares de nada
só a labuta de asas
quebradas pela ausência
Fev.12.MMV

3. sob um céu serial

Posted by Hello

lua errante



Apago os faróis. Projecto-me lá atrás, onde deixei de existir quando as estrelas me pegaram
ao colo. Chamaram por mim num assobio silente. Acenou-lhes a minha inglória imprudência.
A cada gesto corresponde um desejo. Ou são os sonhos que se desfazem em
perpétuos adiamentos do prazer? Apago os faróis. Respondo ao afago das estrelas
imprudentes. Penso-as em traços e figuras. Tento gritar-lhes que as conheço pelos nomes
mas não me recordo de nenhum. Espaçam-se a intervalos imaginários. São a revelação
da nossa nascença. Do nosso desamparo. Rogo-lhes que se apaguem uma a uma. E me deixem soprar a última. Uma, duas, doze. E de novo duas, três, onze. E tudo por milhões imaginários multiplicado e transposto. Olho o fantasma que deixei lá atrás quando fechei os olhos nos olhos fechados das estrelas. Num assobio silente deslizo por este céu invertido,
de alcatrão. Fecho os olhos, para acender os faróis. E evito o infinito que me condena lá do
alto. E conto mentalmente uma duas dez e outra vez cinco, nove...

10.01.03
(in a densidade das almas, 2003)

olhar

As coisas entram no campo de visão, cada vez mais
elitista, estupidamente - como um crítico musical limitado, um acrobata
cego. As coisas tentam habitar o olhar e
são expulsas pelo não reconhecimento do poder
dessa habit(u)ação silenciosa. Ficam outras. Outras ainda,
passam e regressam como filme rebobinado –
memória, afinal. As coisas desistem. Entram noutro
olhar. Voltam as costas à insensibilidade. A arte insiste.

Não haverá mais coisas um dia.

... ecoa pausadamente, tom circunspecto, o solilóquio das obras-primas.

Fev.12.MMV
(in a geometria da inexistência)

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

sem título

o muro do jardim ruiu no dia em
que brotaram as flores mais bravias

14.04.03

(in a incerta permanência da dúvida, 2003)

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

o triunfo dos insectos

(Não há metamorfoses reais) – É psicossomático
o vómito incontrolado. A goma de saliva que escorre, que
se passeia pelas mandíbulas abertas, que desagua no ventre escamado,
é um rio como outro qualquer. Não são peganhentas as polpas dos dedos, não
há mais do que dois olhos límpidos e sem morbidez. Não são asas
estes membros que almejam chegar ao topo dos abrunheiros, nem asas são
estes sonhos
frios e despovoados. Não são mortais as trémulas dentadas, os golpes
de língua, os beijos de louva-a-nós, de alva viúva. Perdemos.
Na peçonha que não deixamos nas coisas, na invisibilidade que ofuscamos com
os corpos deformados p’lo tempo.
Perdemos. Empatamos com o escorpião

– (mas transfigurações do mal)

Fev.09.MMV


(in a geometria da inexistência)

terça-feira, fevereiro 08, 2005

V

inunda-me
por momentos
breves
mas sólidos
meteoritos
aflitos
em queda
uma paz
que temo
de que fujo
(um sinal
da presença
de deus
debaixo
da almofada
em que
durmo)
hesito
em acordar
de súbito
pássaro
baleado
p’lo sonho
perverso
de um voo
derradeiro
(imerso
na neblina
do desejo
de que a
quietude
irrompa
em pranto
de novo
numa ânsia
de satanás
um beijo)

22.05.03

(in o mundo e um pouco mais, 2003)

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

o meu primeiro fractal


fria incerteza

que me perdoem os especialistas em matemática pela singeleza da tentativa, mas o fascínio por estes "seres" matemáticos permitiu-me o arrojo de tentar explorar o Tierazon, para a manipulação de um
Newton Variation 89: z=z-((z^5)-1)/(5*(z^4)); z= (z^5)*c;
Um dia saberei o que cada uma das variáveis z e c fazem neste mundo de infinitas perspectivas. Um dia. Por agora, o prazer da exploração da beleza, vista por dentro.

plúmbeo ego

num suspiro
arcano, demente
desenha-se a solidão

não é leve a certeza
não é rósea a angústia
uma esfera de chumbo
suspensa sobre o juízo

oscila sobre o quotidiano
não se lhe submete
não venera nem condena
não lhe é indiferente
não lhe é, simplesmente
oscila sobre o limiar da vida

não é certa a leveza
não é angustiante o rosa
que o sonho dá a esse outro
em nós, de nós, por nós, sem nós.


Fev.05.MMV

(in livro xiii)

sábado, fevereiro 05, 2005

sem título

há um equilíbrio
insondável na perda
osmose de afecto
provavelmente harmonia
(Fev.05.MMV)

antes do deserto, a ideia

paira
quase densa
ainda não esquálida
como o pensamento
órfão de razão, triste

não responde
não emerge
não acorre
está

é fome ainda,
(antes do desejo
antes do retorno
à disforme alma
universal)
a ideia,
antes do pulsar
inquieto que respira
a areia dos dias
o pó dos luares

Fev.04.MMV

(in livro xiii)


quinta-feira, fevereiro 03, 2005

I



o mundo está ali
adormeceu
dorme
não acordará

chego-lhe ao rosto
de sal
de pedra
um dedo
tímido e ousado
um afago
ora uma palavra amarga
ou um sopro inútil agora

lamento
não ter derrubado
a tempo o silêncio

tardo em aceitar a hora e
hesito em criar uma ilusão
de lençóis de flanela
num excesso de primavera

não encontro para mim
a oração que me redima
desta invisibilidade construída

dou mais um passo atrás
o mundo parece mais pequeno
e mais pequena a tristeza
de assim o perder

15.05.03

(in o mundo e um pouco mais)


quarta-feira, fevereiro 02, 2005

eco / reverberação / eco

não é um rugido não é um lamento não há morte onde as paredes devolvem o que partiu nem esquecimento onde a vibração cavalga sobre a onda anterior num caleidoscópio de sons sem dono sem memória não se dilui o que permanece não repousa o que se inquieta em reflexos nem desaparece o que retorna ao oráculo involuntário sem distância não há outro sem outro não há distância o oráculo inconsciente emite o que nasce para o reflexo inquieto que não repousa quando permanece sem se desvanecer na memória dos sons em miríades submersas sob as vibrações que não se deixam esquecer por partirem de encontro às paredes que concedem a imortalidade ao troar das feras e às lágrimas contidas

Fev.02.MMV

(in a geometria da inexistência)


o tempo

não são brumas,
as horas, queimadas
sobre incenso,
nem delírios de
poeta, moribundo
de um intenso
sofrer invisível –
são brechas, todos
os minutos, abertos
sobre a tela incolor
da paixão pela vida
e pela dor risível.


23.08.03
(in 2/3 e outros poemas)